Elas no Processo

A inteligência artificial em apoio ao sistema de justiça: Projeto Mandamus.

A inteligência artificial em apoio ao sistema de justiça: Projeto Mandamus.

18/2/2022

Desde 2018, com o desenvolvimento do Projeto Victor, a discussão sobre aplicação da inteligência artificial ao Direito vem ganhando espaço no cenário brasileiro. Argumentos contrários e favoráveis permeiam os debates de juristas que se debruçam em examinar as consequências da introdução de novas ferramentas no sistema de justiça brasileiro.

O processo jurisdicional passa a conter novos elementos que buscam otimizar o trabalho dos servidores diminuindo ou acabando com o tempo morto do processo, assim como agregando novas unidades de trabalho.

Nesse sentido, não é suficiente pensar o processo jurisdicional com a visão conservadora e privatista que sempre existiu. Ao lado da introdução de novas tecnologias, o processo e o judiciário ganharam outra roupagem com o CPC/15. Hoje, o ideal é que uma decisão proferida pelas altas Cortes brasileiras seja replicada pelos demais órgãos judiciais e administrativos, formando uma cadeia argumentativa convergente capaz de trazer mais isonomia e previsibilidade aos jurisdicionados. Essa cadeia argumentativa deve possuir um tempo razoável e, para tanto, o judiciário vem investindo em tecnologia para aperfeiçoar e apoiar a prestação da tutela jurisdicional. 

Ao lado dessa visão aberta é preciso incorporar, em seus conceitos, definições e natureza jurídica, elementos como vulnerabilidade digital, acesso às Cortes e atuação universalizável da decisão.

A inteligência artificial vem contribuindo muito para a aproximação da tecnologia ao Direito. E as mudanças são surpreendentes! O que dizer sobre a exponencial exposição que tem-se sobre informações (dados) que podem significar encaminhamentos estratégicos em atividades profissionais. Uma pesquisa em desenvolvimento, no MIT-CSAIL, mostra um inovador sistema de ativação de cores e atualização de imagens em superfícies de objetos pode revolucionar todo um sistema “estável” de designs de objetos de nosso dia-a-dia, com potencial para torná-los - assim como nossas telas de computador, smartphones - objetos fornecedores de informações permanentemente atualizáveis (como uma caneca de chá ou café), que pode apresentar em sua superfície nossa agenda de compromissos, notícias profissionais relevantes, processos de notificações ou redes profissionais/sociais. E o ChromoUpdate é apenas um exemplo do que indica que a era da inteligência artificial propõe em relação a novos paradigmas e desafios.

Este processo de ressignificação de estruturas tradicionais de recebimento de dados, associado à fluidez nos tempos atuais, apresenta novas demandas de velocidade. A construção, comunicação e ajuste da decisão ao tempo em determinada sociedade é um destes processos impactados e fator de profundo estresse e desafios. Neste contexto, há um papel muito interessante da tecnologia, no sentido de incrementar as capacidades humanas, ampliando sua percepção, atenção ao detalhamento, robustez, coerência, agilidade, entre outras.

A reflexão aqui exposta pretende apresentar alguns elementos para contribuir para este debate, pois a ideia de volatilidade, incerteza e especialmente insegurança e instabilidade estão na base das maiores preocupações sobre a inter-relação do Direito com a tecnologia. Por outro lado, a tecnologia também se perfila como instrumento de apoio, de racionalidade sistêmica e de estabilidade coerente.

Nesses último anos, as pesquisas e o desenvolvimento de ferramentas de IA para o Judiciário realizados por diferentes patrocinadores confirma a necessidade de revisão de conceitos clássicos ao processo e traduz concretamente o apoio ao desenvolvimento comportamental. Entre os projetos que demonstram essa necessidade de revisão destacam-se: a) Projeto Victor (STF), b) Projeto Mandamus (TJ/RR), c) Projeto COnFIA (certificação ética em IA), d) Projeto JuLIA-IA  na logística jurisdicional, e) Projeto PNUD/CNJ/UnB (IA aplicada a precedentes), f) Projeto PG/DF ( IA aplicada à execução fiscal), g) Projeto JF/DF (IA aplicada a precedentes para JF do DF), h) Projeto Sabiá  (IA aplicada a precedentes para TST) , i) FAP/DF - Projeto Centro de Inteligência Artificial do DF. Todos esses projetos foram ou estão ocorrendo em parceria com o laboratório DR.IA da Universidade de Brasília.

Especificamente, o projeto de pesquisa e desenvolvimento denominado Mandamus busca aplicação de machine learning em dataset formado por dados de processo judicial, constituindo apoio à prestação jurisdicional.1

No Mandamus, a aplicação de machine learning foi utilizada para aprimorar a comunicação dos atos processuais via mandados, atuando diretamente nas varas e na central de mandados do TJRR. O projeto buscou fazer um apoio na identificação de mandados, estruturação de formatos considerados adequados pelo Tribunal e a distribuição das intimações mais recorrentes dos processos para o cumprimento da diligência prevista no mandado, com ganho de eficiência e em associação a um sistema de localização do agente e da pessoa que vai receber o mandado.

Esse projeto surgiu da identificação do tempo consumido nos fluxos de processamento do processo judicial, que dificulta a concretização de compromissos na administração da prestação jurisdicional. Mandados sem cumprimento, mandados com cumprimento equivocado, muito trabalho para a produção do mandado e muito tempo consumido nestes procedimentos acabavam por dificultar a rotina e a gestão das varas e do Tribunal no cumprimento de suas respectivas metas e compromissos.

O Mandamus foi desenvolvido para processamento e classificação de textos processuais e informações, podendo ser enquadrado como um classificador complexo para apoiar a execução do mandado e, com isso, contribui para a estruturação de dados2 judiciais, a identificação de padrões, a otimização do tempo de cumprimento (agilidade), a eficiência no cumprimento (qualidade de documentos/certidões) e aprimoramento dos recursos humanos envolvidos (estratégia para recursos humanos).

O projeto Mandamus, a partir do tagueamento de decisões e mandados do banco de dados disponibilizado pelo TJRR, permite associar tipos de decisão geradora de mandado a documentos construídos a partir de templates e referenciais estabelecidos e validados pelo próprio tribunal. Desta forma, o robô de geração de mandado atua sobre dados textuais de decisões jurisdicionais, identificando e associando as classes prioritárias definidas por critério de frequência e oportunidade. Os mandados gerados integram a central e o robô de distribuição, que a partir de outros referenciais estabelecidos ao corpo de oficiais e respectiva geolocalização, otimizam e auxiliam o cumprimento.

Na busca de um equilíbrio entre o potencial de velocidade de ações dado pela inteligência artificial com a estabilidade, coerência e compromissos axiológicos do sistema de justiça, o foco de interesse das investigações e desenvolvimento realizados pelo Laboratório de pesquisa DR.IA da UnB, foi a perspectiva de otimização e apoio impactada pelo contexto de aperfeiçoamento da compreensão de racionalidade sistêmica e pelas possibilidades de enfrentamento de grandes desafios sistêmicos postos.

Esta é a linha de pensamento que se desenvolve no DR.IA, um laboratório de aplicação, a partir do grupo de pesquisa e constitui um ambiente de investigações e aplicações de inteligência artificial voltada ao Direito. Inspirado nas redes neurais concebidas por McCullock e Pitts (1943) e reconcebidas por Fukushima (1975) ao estabelecer com a ideia de pesquisas, projetos, produtos e cursos em redes e interconexões, agrupando conhecimentos em formatos de multicamadas com a proposta de melhorar continuamente.

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1 Para maiores informações sobre o projeto consultar aqui e aqui.

2 Uma ideia da complexidade do sistema de governança de dados e das possibilidades especialmente em face da LGPD foi abordado no artigo Governança de dados aplicada a Big Data analytics (CARVALHO, et al., 2020).

3 ACKERMAN, Dan. With a zap light, system switche object’s colors and patterns. Reportagem CSAIL-MIT. Disponível aqui.

4 BONAT, Debora; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. Inteligência Artificial e Precedentes Coleção Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial. 1 ed. v. 3. Curitiba: ed. Alteridade, 2020. ISBN 978-65-991155-0-9.

5 DEZAN, Matheus Lopes; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. Soluções de inteligência artificial como forma de ampliar a segurança jurídica das decisões jurídicas. Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico, v. 1, n. 18, 2019. Disponível aqui.

6 HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. Inteligência Artificial e Direito: convergência ética e estratégica. Coleção Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial. 1.ed. v. 5. 2020. Curitiba: ed. Alteridade. ISBN 978-65-990587-2-1.

7 LAGE, Fernanda de Carvalho; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. A Inteligência Artificial nos Tribunais brasileiros: princípios éticos para o uso de IA nos sistemas judiciais. In: GUEDES, Jefferson Carús; PINTO, Henrique Alves; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira. Inteligência artificial aplicada ao processo de tomada de decisões. 1.ed. Belo Horizonte, São Paulo: Editora D’Plácido, 2020. ISBN 9786555890945

8 MOZETIC, Vinícius Almada. Os sistemas jurídicos inteligentes e o caminho perigoso até a teoria da argumentação de Robert Alexy. Revista Brasileira de Direito, IMED, v. 3, n. 3, 2017. Disponível aqui.

SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; HARTMANN PEIXOTO, Fabiano. A inteligência artificial aplicada à criação de uma central de jurisprudência administrativa: o uso das novas tecnologias no âmbito da gestão de informações sobre precedentes em matéria administrativa. Revista do Direito UNISC, v. 3, n. 50, 2020. Disponível aqui.

10 ZHONG, Haoxi et al. How Does NLP Benefit Legal System: A Summary of Legal Artificial Intelligence. Disponível aqui.

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Colunistas

Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.