Elas no Processo

O necessário cabimento dos embargos de declaração contra decisão de inadmissibilidade de Recurso Especial

Seja superando o precedente do STJ de inadmissibilidade dos embargos de declaração; seja interpretando amplamente o artigo 1.024, §3º, do CPC, o que deve ser sempre garantido é o efetivo acesso à justiça, através do devido processo legal.

12/11/2021

O atual ordenamento jurídico processual – que emerge da Lei 13.105/15 – demonstra claramente a intenção do legislador de se tornar imprescindível que o Poder Judiciário oferte ao jurisdicionado uma prestação com observância do dever de autorreferência, presente no teor do artigo 926 do CPC, fazendo imperar a necessária construção e manutenção de uma jurisprudência íntegra, coerente e estável – garantindo, assim, o tratamento isonômico, a segurança jurídica e o princípio da proteção da confiança.

Nesse passo, dois pontos são de suma importância para a fundamental reflexão sobre a admissibilidade de embargos de declaração contra decisão do presidente ou vice-presidente do tribunal que inadmite o Recurso Especial: o dever de fundamentação específica (art. 489, §1º) e o combate à jurisprudência defensiva (art. 4º, 6º, 139, IX, 317, 932, parágrafo único, 938, §§ 1º e 2º), como forma de possibilitar o alcance do mérito recursal.

A fundamentação das decisões judiciais já contava com previsão constitucional no artigo 93, IX, com o reforço no ambiente normativo processual (art.165). Todavia, esse dever de atuação jurisdicional pautado na motivação das decisões foi lapidado no CPC de 2015, impondo ao julgador uma fundamentação aprimorada, zelosa e específica. Portanto, qualquer decisão judicial precisa trazer em seu bojo a clareza, a completude e a coerência, sob pena de uma atuação estatal falha, frágil, descortinada de legitimação e validade, posto que decisão sem fundamentação é considerada nula (art. 11, CPC). 

A clareza está na redação compreensível da decisão, explicitando de forma inequívoca as razões de decidir. Além disso, a decisão precisa ter termos acessíveis para o leitor, sendo considerado um ato de prestação de contas do Poder Judiciário. A coerência refere-se à necessidade de ter lógica e coesão, com harmonia entre o dispositivo e a conclusão. E a completude pauta-se no dever do julgador de tratar e motivar todas as questões relevantes do processo.1

Em normas pretéritas, já havia remédio jurídico para afastar a contradição, a omissão e a obscuridade de um comando judicial. A redação do artigo 535, I do CPC/73 previa o recurso de embargos de declaração contra sentença e acórdãos. A previsão legal trazia expressamente o cabimento para esses dois tipos de pronunciamentos, gerando controvérsia na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade desse recurso contra outros tipos de decisões judiciais.

Boa parte dos processualistas fazia uma interpretação ampla do dispositivo legal, firmando a permissibilidade do uso desse recurso para todas as espécies de decisão, inclusive contra decisão expressamente irrecorrível.

Todavia o STJ vinha posicionando-se de forma restritiva, excluindo a possibilidade de apresentação dos embargos declaratórios contra decisão de inadmissibilidade do recurso especial prolatada pelo presidente ou vice do tribunal de origem – sopesando, de modo velado, tratar-se de ato protelatório, que apenas sobrecarregava o Judiciário.2

Diante de tal construção jurisprudencial da Corte Especial do STJ, os embargos declaratórios interpostos nessa hipótese passaram a ser considerados inadmissíveis, de modo a não provocar o efeito interruptivo do prazo do recurso posterior.  Este precedente provocou verdadeira barreira de acesso à justiça e cerceamento da ampla defesa, pois muitos recursos foram considerados intempestivos pela ausência da interrupção do prazo pela interposição dos embargos de declaração.3

Diante da contrariedade manifestada pela comunidade jurídica quanto ao precedente judicial bloqueador da interposição dos embargos declaratórios contra decisões de inadmissibilidade do Recurso Especial, o STJ foi reconstruindo seu posicionamento para minorar os males processuais decorrentes dessa interpretação equivocada. Para tanto, apresentou uma situação excepcional de admissibilidade dos embargos declaratórios, tornando possível o seu cabimento quando a decisão de inadmissibilidade fosse genérica de tal forma que impossibilitasse a parte de apresentar fundamentos argumentativos dentro do agravo do art. 545, CPC/73.4 Todavia, essa excepcionalidade cai no vazio, diante do critério subjetivo da avaliação do julgador sobre o conteúdo da sua própria decisão, de modo que a solução jurisprudencial é verdadeiro placebo!

O legislador do CPC/15 trouxe uma importante mudança redacional quanto ao cabimento dos embargos declaratórios. Seu artigo 1022 prevê a possibilidade de interposição de embargos de declaração contra qualquer tipo de decisão judicial, sem apresentar qualquer restrição do seu cabimento para determinados tipos de pronunciamentos judiciais. 

Ao interpretar o referido dispositivo legal, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal elaborou o enunciado 75 no seguinte sentido: “Cabem embargos declaratórios contra decisão que não admite recurso especial ou extraordinário, no tribunal de origem ou no tribunal superior, com a consequente interrupção do prazo recursal”. Tal enunciado está em perfeita harmonia com os artigos 1.022 e 1.026 do CPC vigente.

Na doutrina, afirma-se que se torna vazia qualquer discussão sobre a possibilidade ou não de interposição de embargos de declaração contra decisão interlocutória, decisão de relator ou até mesmo decisão de presidente ou vice-presidente de Tribunal5, não importando se de mérito ou não.6

Diante dessa importante mudança redacional, passou-se a questionar se o posicionamento do STJ sobre o não cabimento dos embargos de declaração contra decisão de presidente ou vice-presidente do tribunal de origem seria mantido na contemporaneidade, já que estaria flagrantemente desconexo com a legislação processual.

Infelizmente, os Ministros da Colenda Corte mantêm a venda nos olhos, ignoram a clareza do texto legal presente no caput do artigo 1.022 e, por sua conveniência, deixam vivo seu precedente retrógrado para os dias atuais7, insistindo que o único recurso cabível para impugnar a decisão de inadmissibilidade do recurso especial é o agravo, seja agravo interno ou o agravo do art. 1.042, CPC. Também reforçam a tese de que, excepcionalmente, os embargos declaratórios podem ser considerados cabíveis se a decisão de admissibilidade for genérica, a ponto de obstaculizar a interposição do agravo.8

A obviedade que emerge do artigo 1.022, no sentido de ser cabível embargos de declaração contra qualquer decisão judicial, deve ser respeitada!

Não se deve olvidar que uma decisão de inadmissibilidade de recurso especial poderá decorrer da falta de pressupostos recursais; ou do fato do acórdão recorrido estar em consonância com tese jurídica firmada em repercussão geral e em recursos repetitivos (art. 1030, I, a e b), hipóteses em que caberá, respectivamente, a interposição de agravo do artigo 1042 e o agravo interno (art. 1030, §2º). Se tal decisão for omissa em sua fundamentação, ou obscura, ou contraditória, como poderá a parte apresentar a dialeticidade do seu agravo? De que maneira ela poderá influenciar o órgão julgador do agravo de que a decisão monocrática precisa ser anulada ou reformada? Não há como negar a possibilidade de utilização dos aclaratórios em qualquer tipo de decisão. 

A resistência do STJ em manter seu precedente judicial, desprezando a vontade expressa do legislador, configura verdadeira decisão contra legem9, que macula escancaradamente o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional previsto no artigo 5º, XXXV, da CF e no artigo 3º, caput, do CPC. A Corte não pode impedir que uma decisão incompleta, omissa e contraditória seja completada, aclarada ou tornada coerente, sob pena de obstaculizar o acesso à justiça.  

Segundo Marcelo Barbi, “a academia detém dois papéis fundamentais: reavaliação do velho e construção do novo10 e, nessa linha, como arremate ao tema, deixa-se uma singela contribuição: propõe-se uma solução interpretativa enquanto não houver a superação do precedente do STJ.

Se o STJ entende que os embargos de declaração não são cabíveis contra decisão de inadmissibilidade do Recurso Especial e, por isso, não interrompem o prazo para o agravo interno e para o agravo do artigo 1.042, o presidente do tribunal, em nome do princípio da primazia do mérito, deveria aplicar a fungibilidade prevista no artigo 1.024, §3º, do CPC. Ou seja, se o presidente do Tribunal não entender pelo cabimento dos embargos, deverá intimar o embargante para aditar suas razões recursais e adaptá-las para o agravo interno ou para o agravo do art. 1.042, conforme o caso. A interpretação desse dispositivo legal não deve ser restritiva, pois o dever de proporcionar a regularização do recurso por meio da fungibilidade não se refere apenas ao relator, mas também ao presidente ou vice-presidente do tribunal para, dessa forma, evitar um grave prejuízo ao embargante.

Não há espaço para a jurisprudência defensiva no ordenamento jurídico. Seja superando o precedente do STJ de inadmissibilidade dos embargos de declaração; seja interpretando amplamente o artigo 1.024, §3º, do CPC, o que deve ser sempre garantido é o efetivo acesso à justiça, através do devido processo legal.  

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1 LUCCA, Rodrigo Ramina. O dever de motivação das decisões judiciais. Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. Salvador, Editora Juspodvm, 2019, p. 215 ao 221.

2 AgInt no AgRg nos EDcl no AREsp 671.167/DF.

3 Inclusive, por óbvio, contra decisões monocráticas proferidas pelos Tribunais Superiores e contra a decisão de admissibilidade proferida nos tribunais de origem. Com relação especificamente a este último aspecto, a ressalva ganha importância, na medida em que há jurisprudência, surgida no CPC/73, e que infelizmente vem se reproduzindo no CPC/15, dando conta da não interrupção do prazo, caso a parte interponha embargos de declaração da decisão do tribunal de origem, que inadmite recurso especial ou extraordinário, pois os embargos de declaração seriam incabíveis. Teresa Arruda Alvim... [et. al.], coordenadores. Primeiros comentários ao código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1.576/1.577.

4 PROCESSO CIVIL. DECISÃO QUE NEGA SEGUIMENTO A RECURSO ESPECIAL. PRAZO RECURSAL INTERROMPIDO PELA OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. Salvo melhor juízo, todas as decisões judiciais podem ser objeto de embargos de declaração, mas a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sem explicitar a respectiva motivação, tem se orientado no sentido de que os embargos de declaração opostos contra a decisão que, no tribunal a quo, nega seguimento a recurso especial não interrompem o prazo para a interposição do agravo previsto no art. 544 do Código de Processo Civil. Excepcionalmente, atribui-se esse efeito interruptivo quando, como evidenciado na espécie, a decisão é tão genérica que sequer permite a interposição do agravo. Embargos de divergência conhecidos e providos. EAREsp 275.615/SP; Rel. Min. Ari Pargender; DJe: 24/03/2014; STJ

5 DIDIER JR, Fredie e CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 3. Editora JusPodvum, Salvador, 2021, p. 334.

6 FERNANDES, Luís Eduardo Simardi. Embargos de Declaração. 5ª edição. São Paulo. Revista dos Tribunais.2020, p. 41.

7 Não cabem embargos de declaração contra a decisão de presidente do tribunal que não admite recurso extraordinário. STF. 1ª Turma. ARE 688776 ED/RS e ARE 685997 ED/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgados em 28/11/2017 (Info 886). 1. A jurisprudência do STJ orienta-se no sentido de que o agravo em recurso especial é o único recurso cabível contra decisão que nega seguimento a recurso especial. Assim, a oposição de embargos de declaração não interrompe o prazo para a interposição de ARESP. 2. Excepcionalmente, nos casos em que a decisão for proferida de forma bem genérica, que não permita sequer a interposição do agravo, caberá embargos. (...) STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1143127/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 28/11/2017.

8 AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO CONTRA DECISÃO QUE NEGA SEGUIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. DESCABIMENTO. LAPSO TEMPORAL QUE NÃO SOFRE INTERRUPÇÃO. PRECEDENTES. RECURSO INTEMPESTIVO. MAJORAÇÃO DE HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS RECURSAIS. ENUNCIADO 16 DO ENFAM. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. (STJ - AgInt no AREsp: 980304 MS 2016/0237949-1, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 07/03/2017, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/03/2017)

9 De fato, o entendimento jurisprudencial não pode ficar alheio às mudanças empreendidas no âmbito legislativo. A existência de nova regra jurídica estabelecida pelo Poder Legislativo impõe ao Poder Judiciário que a considere e a aplique, salvo o caso de inconstitucionalidade. A falta de observância de preceitos legislativos legitimamente criados e válidos desequilibra a harmonia entre os Poderes, outorgando ao Poder Judiciário elevada dose de autoritarismo. BARIONI, Rodrigo; CARVALHO, Fabiano. Embargos de declaração e a decisão de inadmissibilidade do recurso especial: uma discussão necessária. In: O CPC de 2015 visto pelo STJ. Teresa Arruda Alvim... [et. al.], coordenadores. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. P. 910

10 GONÇALVES, Marcelo Barbi. Execução fiscal: um retrato da inoperância, o (bom) exemplo português e as alternativas viáveis. Revista de Processo. v. 247. ano 40. p. 451-471. São Paulo: Ed. RT, setembro 2015. p. 469-470.

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Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

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Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.