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Processo e tecnologia: Audiências virtuais em tempos pandêmicos no Brasil

Processo e tecnologia: Audiências virtuais em tempos pandêmicos no Brasil.

29/10/2021

As audiências virtuais ganharam destaque abruptamente com o início da pandemia da Covid-19 no Brasil, já com certo atraso, considerando-se a existência da lei 11.419/2006 e a previsão expressa no texto do Código de Processo Civil de 2015 autorizando a prática de atos processuais por meio eletrônico (arts. 193 a 199), mais especificamente por videoconferência (art. 236, §3º), inclusive audiências de mediação e conciliação (art. 334, §7º), sustentações orais (art. 937, §4º), colheita de depoimentos (art. 385, §3º) e oitivas de testemunhas (art. 453, §1º). Em que pese todas as benesses que a tecnologia nos proporciona, alguns fatos indesejáveis têm ocorrido nas audiências virtuais, impulsionando a elaboração deste pequeno ensaio, pois tais fatos podem ser considerados como verdadeiras violações ao devido processo legal constitucional, ao suprimir direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

Ora, as audiências são atos processuais complexos, integrados por uma sucessão de atos coordenados, interdependentes entre si, e sujeitos ao preenchimento de requisitos formais próprios e assim devem ser fiscalizados a fim de que cumpram sua função no processo, sobretudo no devido processo legal constitucional.

Fato é que estamos vivenciando uma revolução tecnológica em todos os aspectos, sobretudo na função jurisdicional estatal, e os preceitos do Estado Democrático de Direito não devem ser negligenciados. Os desafios são inegáveis e deve-se enfrentá-los com o devido processo legal constitucional.

Tomando-se o processo como um espaço democrático, cognitivo e argumentativo, que tem como objetivo se obter do Estado um pronunciamento decisório que contenha a solução jurídica adequada ao caso concreto1, deve ser prospectado por meio da garantia fundamental de uma estrutura normativa metodológica (devido processo legal), a fim de que os pronunciamentos estatais sejam construídos com os argumentos desenvolvidos em contraditório por aqueles que suportarão seus efeitos, em torno das questões de fato e de direito sobre as quais controvertem no processo.2

Audiência (do latim audientia), em sentido lato, é toda sessão processual (ato complexo) do qual participam as partes em razão de convocação feita pelo juiz, para que compareçam à sede do juízo, com a finalidade de, nela, serem praticados atos processuais.3 A audiência é atividade preparatória do provimento e, como tal, deve ser regulada por uma estrutura normativa, composta de uma sequência de normas, de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma dinâmica bastante específica, na preparação de um provimento.

Assim, para que a sentença possa ser considerada válida e eficaz, deverá ser precedida da regular e legítima atividade preparatória4 , conforme determina o ordenamento jurídico.5 Assim, audiência é ato processual complexo, integrado por uma sucessão de atos coordenados, interdependentes entre si, e sujeitos ao preenchimento de requisitos formais próprios.6 Em suma, as audiências podem ser de conciliação (art. 334, art. 695), instrução e julgamento (art. 358), de saneamento e organização do processo (art. 337,§ 3º) e de justificação prévia (art. 562, 677,§1º, 703,§1º).

Até em razão de seu objeto (colheita da prova oral e oitiva das partes e de seus procuradores, esclarecimentos por parte dos peritos e assistentes técnicos), as audiências de instrução e julgamento recebem destaque e, no procedimento oral, são consideradas o ponto alto, já que concentram os atos culminantes da disputa judicial. É, ainda, na audiência de instrução e julgamento que o juiz entra em contato direto com as provas, ouve os argumentos debatidos pelas partes e profere a sentença pondo termo ao litígio. Por meio dela, colocam-se em prática os princípios da oralidade e da concentração do processo moderno.7 Ademais, a audiência de instrução e julgamento só será necessária quando houver necessidade de produção de prova oral.8

Já nas audiências virtuais, ao contrário das audiências tradicionais, ocorridas presencialmente, há um recurso tecnológico a mais à disposição, qual seja, a gravação das sessões de audiência e de julgamento. Mas, a questão que surge é: tem havido uma estabilização discursiva nas audiências virtuais, apesar da existência das gravações? As partes têm tido seus direitos e garantias fundamentais preservados em tais procedimentos virtuais?

Desde o início da pandemia da Covid-19 no Brasil a utilização das chamadas audiências virtuais teve um aumento significativo, impulsionado pelas circunstâncias das medidas de isolamento social, a partir de março de 2020. Inicialmente, as audiências tradicionais e os atos processuais foram suspensos, aguardando-se o retorno das atividades presenciais para nova designação destes atos. Posteriormente, com a continuidade da quarentena, os prazos voltaram a fluir e muitos tribunais, uns apenas com a concordância das partes e em caso de risco de perecimento do direito e, ainda outros, sem se atentar para a manifestação das partes e sem a verificação de urgência, decidiram adotar as audiências virtuais.

Mas a prática de atos processuais por meio eletrônico no Brasil não é novidade, e sua previsão normativa intensificou-se a partir de 2006, com a entrada em vigor da lei 11.419/2006, mantida pelo CPC vigente. Aliás, o CPC poderia ter ido além, deixando de regular o processo em papel e suas práticas e costumes tão enraizados na cultura e na prática do foro.9 Fato é que, com a chegada da pandemia, essa indiferença tecnológica do CPC/2015 foi realçada, sendo necessária intervenção do CNJ, que editou as Resoluções n. 314/2020 e n. 354/2020, com o objetivo de elevar a eficiência administrativa e operacional do Poder Judiciário e alcançar maior efetividade com a menor duração dos trâmites processuais.10 Assim como já vinha ocorrendo com as reformas legislativas que deram origem ao CPC/2015, a celeridade e a eficiência têm pautado as iniciativas no que tange às audiências virtuais. Contudo, em algumas situações, a busca incansável por celeridade e eficiência tem suprimido os preceitos do devido processo legal constitucional. Isso porque têm ocorrido situações no âmbito procedimental das audiências virtuais11 que violam a oralidade12, a ampla defesa, o contraditório e a isonomia. Tais situações de violação manifestam-se como: ausência de publicidade, dificuldade de manutenção de incomunicabilidade no depoimento pessoal, dificuldade de identificação de testemunhas, dificuldade na intimação, incomunicabilidade e inquirição de testemunhas, valoração das provas orais pelo magistrado e instabilidade de tráfego de dados de internet,13 em patente violação ao disposto no texto do art. 194 do CPC/2015. Ressalta-se, ainda, a ocorrência de outros obstáculos técnicos na participação em audiências virtuais, como por exemplo, um certo delay, ou atraso na entrega do conteúdo audiovisual, sobretudo na colheita de prova oral, já que a imagem não acompanha a fala, prejudicando o andamento da audiência e o raciocínio dos presentes, no momento de formular e responder perguntas.14

Considerações Finais

É o devido processo legal que deve orientar o procedimento das audiências, para que se possa, de fato, concretizar os direitos e garantias fundamentais, dentro de uma estrutura técnica normativa em contraditório, permitindo a cognição dos fatos narrados ou enunciados pelas partes e a valoração das provas por elas apresentadas na comprovação de suas narrativas, visando a obter um pronunciamento estatal decisório favorável às suas pretensões.15

Por isso, toda e qualquer audiência, assim como os atos processuais, devem ser realizados sob o manto do devido processo legal constitucional, a fim de que nenhum direito ou garantia fundamental possam ser violados.

*Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas). Docente adjunta de Direito Processual Civil da Universidade Federal de Lavras - MG (UFLA). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional (GEPPROC/UFLA), cadastrado no CNPq. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC). Membro da Comissão Processo Civil da OAB/MG. Perfil no Instagram: @fernandagomes_borges.

Referências Bibliográficas

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1 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Noções de teoria e técnica do procedimento da prova. In: Técnica processual. BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique (Coords.). Belo Horizonte: Del Rey, 2015. p. 185.

2 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018. p. 171.

3 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.v. 2. p. 401.

4 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 87-88.

5 BORGES, Fernanda Gomes e Souza; ALVES, Lucélia de Sena. As audiências de instrução e julgamento por videoconferência e o devido processo constitucional: uma análise empírica. In: 4 anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020. p. 12-13.

6 DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória, v. 2, 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 33.

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento, v. 1, 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 445.

8 SCARPINELLA BUENO, Cássio. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2018. p. 402.

9 SCARPINELLA BUENO, Cássio. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2018. p. 241.

10 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ detalha regras para realização de sessões e audiências em meio digital. 13 de janeiro de 2021. Disponível aqui. Acesso em 25. Jun. 2021.

11 Pelo que recomenda-se a leitura de: BORGES, Fernanda Gomes e Souza; ALVES, Lucélia de Sena. As audiências de instrução e julgamento por videoconferência e o devido processo constitucional: uma análise empírica. In: 4 anos de vigência do CPC/2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020. p. 11-26.

12 Ressalte-se que atualmente já se discute da utilização de tecnologia para concretizar o princípio da oralidade por códigos, como é o caso do chamado QR Code, acerca do qual recomenda-se a leitura de: IWAKURA, Cristiane Rodrigues; GUEIROS, Pedro; BECKER, Daniel. Código QR: a transformação digital do princípio da oralidade. Jota. 08. Mai. 2021. Acesso em: 10. Jun.2021.

13 ALVES, Lucélia de Sena; SOARES, Carlos Henrique. Audiências telepresenciais na justiça cível e sua compatibilidade com o devido processo constitucional. Disponível aqui. Acesso em: 14. Jun. 2021.

14 SOUZA, Bernardo de Azevedo e. Advogados enfrentam problemas técnicos em audiências virtuais. 11. Jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 1º. Jul. 2021.

15 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Noções de teoria e técnica do procedimento da prova. In: Técnica processual. BRÊTAS, Ronaldo de carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique (Coords.). Belo Horizonte: Del Rey, 2015. p. 203.

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Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Pós-graduada em Direito Público pela UnB e em Regulação de Mercado de Capitais pelo Ibmec. Professora e pesquisadora na área de Direito Processual, Regulação, Legal Design, Inovação em Gestão e Direito Digital.

Fernanda Gomes e Souza Borges é doutora e mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Docente de Direito Processual Civil da UFLA. Líder do GEPPROC/UFLA (Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional). Membro do IBDP. Membro da ABDPro. Membro da ABDPC.

Flávia Pereira Hill é doutora e mestre em Direito Processual da UERJ. Professora associada de Direito Processual Civil da UERJ. Pesquisadora visitante da Universidade de Turim, Itália. Delegatária de cartório extrajudicial.

Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Advocacia.

Renata Cortez é doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito pela UNICAP. Coordenadora da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial (IAJUF/UNIRIOS). Membro do IBDP e da ANNEP. Registradora Civil e Tabeliã em Pernambuco.