Ao deixar de investigar o que ocorreu com os povos indígenas, a CPI da Pandemia no Senado Federal omitiu-se em apurar o crime de genocídio. Como grave consequência, evitou atribuir ao presidente Bolsonaro o crime de genocídio tendo, entretanto, indicado que ele teria cometido crime contra a humanidade, e disso se fez muito barulho, como se houvesse uma verdadeira celeuma ou diminuísse a gravidade do que foi apurado e do que lhe é imputado.
Para a configuração do crime de genocídio, seria indispensável a comprovação de que se agiu por ações ou omissões com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, sendo uma das hipóteses de como pode ser praticado a submissão intencional do grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial. É o tipo penal tanto da L. 2.889/56 quanto do Estatuto de Roma, muito semelhantes nesse ponto. Esse trabalho, contudo, não foi feito pela CPI, e talvez tenha sido essa a grande falha na apuração, justamente porque em nenhum momento efetivamente investigou o modo como o governo federal, o presidente da República, o presidente da Funai, o Ministro do Meio Ambiente e os servidores dos órgãos indigenistas e ambientais alinhados ao bolsonarismo atuaram para deliberadamente permitir a invasão de terras indígenas, estimular o conflito de garimpeiros, madeireiros, grileiros contra comunidades indígenas, desmontar os órgãos que atuam contra o desmatamento, facilitar o garimpo e a agropecuária em áreas indígenas, fomentar o contato de missionários religiosos com povos isolados e de omitir-se na adoção de mecanismos de prevenção contra a disseminação do coronavírus em terras indígenas. Nenhuma pessoa indígena foi ouvida pela CPI tampouco qualquer das autoridades e servidores envolvidos com a questão indígena. Nenhuma das testemunhas ouvidas tratou diretamente sobre o tema indígena na CPI. Do ponto de vista, portanto, do reconhecimento de um crime de genocídio, ou seja, aquele praticado contra um grupo, um povo (ou povos) específico, não houve elementos apurados pela CPI que levassem à conclusão de sua existência, em razão, evidentemente, de não terem sido tais fatos por ela investigados.
Isso não significa, todavia, que não houve crime de genocídio perpetrado por diversas autoridades públicas federais contra povos indígenas. Os potenciais atos que configuram crime de genocídio precedem a pandemia e já haviam sido objeto de uma denúncia ao TPI em novembro de 2019 pela Comissão Arns e pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu). Os fatos que envolvem o genocídio indígena ao longo da pandemia foram também comunicados ao TPI pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em agosto de 2021.
O relatório da CPI não isenta Bolsonaro e seus auxiliares de genocídio indígena, pelo simples motivo de que esse crime não foi por ela apurado.
De todo modo, a CPI concluiu que houve crime contra humanidade. Nos termos do Estatuto de Roma, em seus artigos 7.1.k e 7.2.b, entende-se por crime contra a humanidade atos desumanos que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental, cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil sendo que o extermínio compreende a sujeição intencional a condições de vida tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos com vista a causar a destruição da população. Foi nesse tipo penal que o relatório final da CPI amoldou a conduta dos responsáveis pelo gerenciamento do enfrentamento federal a pandemia, no âmbito do direito penal internacional, além de dezenas de outros crimes descritos no Código Penal Brasileiro. A grave e generalizada violação de direitos na pandemia, como discutimos em nossa última coluna, indicam o caminho para a investigação sobre o potencial cometimento de crime contra a humanidade nos termos do Estatuto de Roma.
Do ponto de vista do direito penal internacional e do Tribunal Penal Internacional, pouco importa a tipificação da conduta por quem eventualmente provoca aquela corte. Princípio basilar do sistema acusatório, cabe à acusação indicar, após a prévia investigação, qual crime os acusados teriam cometido. Ou seja, a tipificação própria no âmbito do TPI acerca das condutas das altas autoridades federais à frente do enfrentamento à pandemia, se cometeram genocídio, crime contra a humanidade ou crime nenhum, caberá no momento da instauração da ação penal, à procuradoria do TPI e, no momento da decisão, ao órgão julgador.
Assim, muito mais importante nesse momento é a comunicação em si: levar ao conhecimento do Tribunal e de sua Procuradoria os graves fatos vivenciados no Brasil. Nesse ponto, é louvável o grande trabalho de sistematização das muitas atrocidades que foram cometidas durante a pandemia e que constam do relatório final da CPI.
Caso seja instaurado uma investigação formal junto ao TPI, o mais provável é que todas as diversas comunicações de crimes de genocídio e contra a humanidade imputados a Jair Bolsonaro e seus mais próximos auxiliares sejam reunidas nesse mesmo inquérito.
A discussão, portanto, sobre eventual recuo da CPI no reconhecimento do genocídio pode ter algum impacto político, mas não traz nenhum elemento jurídico que inviabilize o reconhecimento desse delito, seja no âmbito do TPI, seja no âmbito interno. Do ponto de vista jurídico, a CPI errou ao não ter investigado o genocídio dos povos originários durante a pandemia, mas não eximiu ninguém de tê-lo cometido.
O relatório também traz duas grandes consequências jurídicas na proteção contra as violações de direitos humanos. A primeira delas é a de que, ao não ter investigado o genocídio dos povos indígenas podendo fazê-lo, e no âmbito de uma robusta e densa investigação que atribui uma série de crimes a altas autoridades federais e particulares, tudo no bojo da atuação dessas pessoas na pandemia, o relatório da CPI reforça o argumento central, do ponto de vista processual, para que se leve o caso à jurisdição internacional, que é a impossibilidade de que o crime venha a ser processado e julgado internamente ou a incapacidade do sistema de justiça nacional em fazê-lo.
A outra grande consequência é tornar-se uma notícia-crime a ser encaminhada ao Procurador-Geral da República que, como titular da ação penal pública contra o presidente da República, não poderá deixar de requerer a instauração do devido inquérito para apuração dos delitos descritos no relatório, posto que não detém discricionariedade sobre a investigação ou não de fatos que, em tese, constituem crimes e que estão devidamente demonstrados e fundamentados num amplo trabalho do Senado Federal. A opção para o PGR, que já se mostrou indisposto a tomar qualquer providência contra o presidente da República, seria arquivar sumariamente a notícia diante da flagrante inexistência de crime, o que está bem longe da realidade descrita no relatório.
Aliás, diante da já conhecida postura do PGR e dos últimos posicionamentos do STF não seria improvável que o tribunal viesse a determinar a instauração do inquérito a pedido de vítimas ou do próprio Senado ou dos senadores da CPI, posição defendida por Eloísa Machado em artigo na Folha de S. Paulo em 22/10/21.
Nada mais natural diante do óbice criado pelo presidente da Câmara dos Deputados em relação à apreciação dos pedidos de impeachment e do Procurador-Geral da República em investigar os crimes cometidos pelo presidente da República. O que está em jogo é a própria manutenção do nosso regime democrático, que tem sido diuturnamente atacado e erodido pelo presidente e seus aliados, que ajudaram a causar centenas de milhares de mortes por covid, que jogaram milhões de brasileiros novamente para a pobreza, e transformaram o país no lugar onde cerca de 20 milhões de pessoas não tem o que comer e praticamente metade da população vive em insegurança alimentar.
Se de fato o sistema de justiça e o sistema político brasileiros não encontrarem ferramentas e caminhos para a responsabilização criminal pela condução do enfrentamento à pandemia do presidente da República e de quem o auxiliou, ao menos tem-se a esperança de que venha a responder perante o Tribunal Penal Internacional pelas graves violações aos direitos humanos por eles cometidas, sejam elas qualificadas como crime contra a humanidade, seja como genocídio.