Direitos Humanos em pauta

Da inconstitucionalidade da PEC 45

A PEC 45, ao criminalizar a posse e o porte de drogas sem autorização poderá colapsar o sistema prisional brasileiro, violando os princípios constitucionais da vedação do retrocesso e da proibição da proteção insuficiente.

11/6/2024

A Proposta de Emenda à Constituição 45 altera o art. 5º da Constituição Federal, nos seguintes termos: “Art. 5 º, LXXX – a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.” A proposta, na prática, deixará a cargo do agente público a escolha de como enquadrar o suspeito, se como usuário ou traficante. Atualmente, a posse e o porte para uso não ensejam a prisão. Se aprovada a PEC, a situação mudará drasticamente. O número de prisões de pessoas com base nessa determinação constitucional poderá colapsar o já caótico sistema prisional brasileiro.

Segundo o Sistema de Informação do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen), houve um aumento da população carcerária no Brasil entre 2022 e 2023. O número de detentos, de acordo com a última apuração feita pela Secretaria Nacional de Políticas Penais, contabiliza 839,7 mil pessoas. Cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347, reconheceu a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, declarando, em razão disso, que há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário em nosso país.

Se a Câmara dos Deputados aprovar a proposta, a Emenda será responsável por superlotar ainda mais as prisões. Atualmente, os presos e detentos já são submetidos a incontáveis situações violadoras à dignidade da pessoa humana. Mesmo com a decisão do STF, o Estado brasileiro não conseguiu agir de forma eficiente para resolver a situação de absoluta indignidade que a população carcerária enfrenta no Brasil. O Congresso Nacional não atuou para sanar a dívida com a sociedade, mas quer aumentar o problema prisional de forma absolutamente irresponsável.

Assim, é defensável afirmar que a PEC 45 viola o art. 5º, §2º, da CF, que assim estabelece:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Os princípios da vedação do retrocesso e da proibição da proteção insuficiente já foram utilizados pelo Supremo Tribunal Federal para declarar a inconstitucionalidade de leis, por exemplo no julgamento da ADI 5676, RE 878694, ADI 7013, dentre outros tantas ações. Ou seja, são princípios adotados pelo Poder Judiciário brasileiro como parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis.

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, o princípio da proibição de retrocesso social significaria:

[...] toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)1. 

E Carolina Senra explica a respeito do princípio da proibição da proteção insuficiente:

O princípio da proibição da proteção insuficiente está, assim, relacionado ao reconhecimento do dever do Estado de proteção mínima aos direitos fundamentais, ou seja, ao provimento de um mínimo existencial, em observância ao postulado da dignidade da pessoa humana.”2

Ainda:

O Princípio da Proibição da Proteção Insuficiente, ao lado do Princípio da Vedação do Excesso, integra a dupla dimensão da Proporcionalidade, regra aplicável na implementação dos direitos fundamentais, incluindo os direitos sociais, segundo a qual haverá violação desses direitos tanto pela extrapolação dos limites da atuação do Estado, como pela omissão ou atuação insuficiente, atingindo a esfera fundamental dos indivíduos e da coletividade.3

É plausível afirmar que a PEC propõe o que J.J. Gomes Canotilho chamou de “evolução reacionária”4.  A PEC, com a desculpa de proteger a sociedade de um mal que é inegavelmente nocivo, tanto quanto o álcool e o tabaco, oferece uma saída que passa pelo desrespeito e a restrição a um dos princípios fundantes da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, a PEC ao invés de proteger direitos, retrocede em relação à proteção destes, criando condições ideais para que os direitos fundamentais sejam violados.

A PEC supostamente teria o escopo de tutelar o direito coletivo à saúde pública e individual à vida do cidadão, mas traz para o usuário uma resposta estatal que é pior e mais danosa que o próprio vício: a violação imediata e brutal à sua integridade física e mental; e para a sociedade a violação aos deveres constitucionais do Estado de garantir a dignidade da pessoa humana à população carcerária. Isto significa que há uma clara desproporcionalidade entre o bem protegido e o fim utilizado para tanto.

A discussão, notadamente, passa pela análise da PEC sob o ponto de vista do princípio da ponderação:

Os responsáveis pela efetivação de direitos fundamentais, inclusive e especialmente no caso de direitos sociais, onde a insuficiência ou inoperância (em virtude da omissão pela ou parcial do legislador e administrador) causam impacto mais direto e expressivo, deverão observar os critérios parciais da adequação (aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada), necessidade (menor sacrifício do direito restringido) e da proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da equação custo-benefício) – pra alguns, da razoabilidade no que diz com a relação entre os meios e os fins, respeitando o núcleo essencial do(s) direito(s) restringido(s), mas também não poderão, a pretexto de promover algum direito, desguarnecer proteção a outro(s) no sentido de ficar aquém de um patamar minimamente eficiente de realização e de garantia do direito. Neste sentido, vale o registro de que a proibição a insuficiência assume particular ênfase no plano da dimensão positiva (prestacional) dos direitos fundamentais, o que remete, por sua vez, à questão do mínimo existencial (...).5

Importante esclarecer que argumentação aqui apresentada não se aplica à defesa de direitos individuais pautados em casos concretos. Obviamente, existem situações inafastáveis em que a pena de prisão se fará necessária para proteção da sociedade, mesmo com as lamentáveis condições do sistema prisional. A presente reflexão visa trazer fundamentos válidos para corroborar a afirmação de que o Poder Legislativo ao produzir uma Emenda Constitucional que poderá ser responsável por agravar de forma dramática a situação já insustentável do sistema prisional claramente afrontará o princípio da proibição da proteção insuficiente.

O Estado brasileiro comprovadamente não consegue assegurar da forma devida o direito à dignidade humana das pessoas que já se encontram sob a sua tutela nos presídios e casas de detenção em todo o país. Se houver um aumento desarrazoado da população carcerária por consequência direta de uma escolha estatal, a ação do Estado deixará de ser apenas omissiva, atualmente justificada de maneira precária com base no princípio da reserva do possível, e passará a ser comissiva, vez que há plenas condições de vislumbrar quais serão os efeitos concretos da aplicação em âmbito nacional da norma que se extrai do texto da PEC.

Portanto, é razoável afirmar que o princípio da vedação do retrocesso e da proibição da proteção insuficiente impedem o Estado brasileiro de constitucionalizar uma medida que potencializará de forma aguda a massiva violação aos direitos humanos, já demasiadamente vilipendiados em nosso país, considerando o aumento exponencial que a população carcerária sofrerá caso seja aprovada a PEC 45.

__________

1 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latino-americano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jul./set. 2009.

2 SENRA, Carolina Maria Gurgel. Princípio da proibição da insuficiência: o dever do Estado de proteção mínima aos direitos sociais fundamentais. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 81, jul./set. 2021, p. 130.

3 Ibidem, p. 150.

4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004. p. 111.

5 proposta de compreensão. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 31. 5 SARLET, I. W. Reserva do Possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Direitos Fundamentais de Justiça nº 1 – out./dez. 2007. P. 192/193.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.