Dia 2 de outubro de 2023 completou 31 anos do episódio mais horrendo e repugnante da história do Sistema Penitenciário Brasileiro: o Massacre do Carandiru, onde foram “assassinados 111 presos, quase todos negros” oriundos dos bolsões de pobreza e miséria da grande São Paulo, a maioria sem condenação definitiva, na faixa etária de 18 a 25 anos.
A Casa de Detenção de São Paulo foi construída em 1954, durante o mandato do presidente da República de Jânio Quadros, localizada em uma área de 60 mil metros quadrados, e tornou o assim o maior presídio da América Latina.
Localizava-se na Zona Norte da cidade de São Paulo, o qual foi integrado ao que se denomina de Complexo do Carandiru, onde também está localizado a Penitenciária do Estado, pela Penitenciária Feminina.
A Casa de detenção de São Paulo, na época possuía sete pavilhões divididos em blocos, a população na época era de aproximadamente 7.200 presos, neste sentido já havia um encarceramento em massa, e uma superpopulação prisional, há exatos 30 anos atrás.
O palco do espetáculo macabro, foi o pavilhão 9, era o local destinado os presos jovens na maioria negros, centenas oriundos do Recolhimento Provisório de Menores RPM- extinta Febem- Fundação do Bem Estar do Menor atualmente conhecida como Fundação Casa para este local eram destinados aqueles que estavam nos distritos policiais, aguardando o momento para “descer para Casa de Detenção de São Paulo” mais precisamente para o Pavilhão 9 também conhecido como “Favelão” este era destinados os presos de primeira viagem, sem passagem pelo Sistema Prisional.
A Casa de Detenção de São Paulo, deveria abrigar 3,2 mil presos, na data do Massacre sendo 2000 só no Pavilhão 9, todos distribuídos em 248 celas, ou seja, oito presos em média por cela, ou até 12 ou 15 sendo assim impossível respirar sendo a superlotação um vetor de Tortura.
Sendo assim, o Governo do Estado de São Paulo, descumpria a lei 7.210, Lei de Execuções Penais, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 11 de junho de 1984, no artigo 83, em que as instituições prisionais deveriam ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade
Nesta ocasião eu era Escrevente Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo, lotada na Vara de Execuções Criminais, no setor de Carta de Guia, eu atuava como voluntária da Pastoral Carcerária, e Membro da Subcomissão de Política Criminal e Penitenciaria da OAB e também fundadora do Geledes Instituto da Mulher Negra, e atuava na área de Direitos Humanos.
Na tarde deste dia, houve uma intensa movimentação na vara de Execuções Criminais, os telefones começaram a tocar insistentemente, os funcionários ficaram assustados, eis que chega a notícia que 16,30 que ocorreu uma briga, entre 2 presos durante uma partida de futebol do Pavilhão 9 e se iniciou uma rebelião na Casa de Detenção e que a Tropa de Choque da Polícia Militar foi acionada e já havia adentro ao local para o início do “Extermínio”.
As informações que eram divulgadas pela imprensa e que cerca de 325 policiais, vindos de inúmeras guarnições, incluindo o batalhão de choque, a GATE (Grupamento de Ações Táticas Especiais), comandado pelo capitão Wanderley Mascarenhas, da COE (Comando de Operações Especiais), comandado por Ariovaldo Salgado e o grupo especial ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) entre eles estava o coronel Ubiratan Guimarães, na época Comandante do Policiamento Metropolitano, e o tenente coronel PM Luiz Nakaharada, no Comando do Policiamento de Choque de São Paulo.
Tal operação, na verdade, não teve um planejamento prévio, as tropas sequer conheciam a planta do local e nunca foi previsto a invasão do local pelas tropas porque o Secretário da Segurança Pública, que na época era responsável pela administração do sistema penitenciário e da Casa de Detenção, não se fez presente onde a sua ausência contrariava toda uma tradição anterior, sempre que houvesse problemas em estabelecimentos prisionais que exigisse uma invasão, o secretário se fazia presente.
Exatamente as 16h30, as tropas, armadas com metralhadoras, fuzis, pistolas automáticas e cachorros invadiram o Pavilhão 9, atirando nos presos, de que resultou o massacre de 22 mortos de poucos minutos.
Nesta atuação macabra não houve sequer nenhum policial morto. Os jornais que fizeram a cobertura da época bem como membros da OEA (Organização dos Estados Americanos) especulavam que possivelmente o número de mortos tenha passado de 111. “Um cartaz colocado numa das janelas pelos presos garantia que 280 pessoas foram mortas. Porém membros da comissão de presos da Casa de Detenção afirmavam que foram 220 mortos. “São 220 mortos”1. Foram todos executados sumariamente, sem que estivesse em vigor a condenação através da Pena de Morte.
A violência da operação ficou evidenciada, através de outras provas, através das marcas nas paredes das rajadas de metralhadoras utilizadas pela polícia de Choque.
Foi totalmente desconsiderado, que toda pessoa presa dentro do regime democrático tem assegurado e garantido seus direitos individuais como cidadão, entre estes direitos inclui-se a sua integridade física, e principalmente a não violência contra o preso, que se encontra sob a custódia do Estado. A ronda ostensiva Tobias de Aguiar deixou seu famigerado e conhecido rastro de sangue, que adubou inúmeras ruas de terra, corredores minúsculos nas vielas próximas as “favelas” território considerado perigoso pois onde habitavam, pessoas em situação de vulnerabilidade social na sua grande maioria negras e pobres.
A Polícia Militar que surgi em 1970, e integra-se aos componentes da extinta Força Pública e Guarda Civil de São Paulo. A polícia militar estava destinada inicialmente à manutenção da ordem e da segurança pública na área do território do Estado onde todas as atribuições destinadas à Polícia Militar são principalmente em atuar de maneira preventiva, em locais e áreas especificas, porem infelizmente não foi o que ocorreu há exatamente 31 anos atras.
0 Foi com esta Polícia, criada para tais finalidades, que foi instaurada na década de 90, a política de “lei e ordem”, em São Paulo, que tinha como premissa principal a extinção da violência e da criminalidade Só em 1992, a PM deixou 1.428 pessoas mortas em supostos tiroteios no estado, incluindo os 111 presos massacrados no Pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo2. O livro de Barcellos – Rota 66 a Polícia que Mata, lançado em agosto de 1992, um mês antes do Massacre dos 111 descreve um estudo feito desde 1970, ano de fundação da Polícia Militar, até 1992, o qual foram investigados os assassinatos da Polícia Militar, com destaque para o histórico dos policiais militares mais violentos da corporação onde também observa-se o mesmo modus operandi que a polícia militar costumava usar quando mata suspeitos e “supostos” criminosos na maioria desarmados e com tiros na cabeça. Assim, tal método de execução sumaria foi largamente utilizado durante o Massacre do Carandiru, ao observar através do Laudo do Instituto de Criminalística bem como alguns prontuários de presos mortos no Massacre do Carandiru, apontam que foram disparados 515 tiros fatais onde estes tiros 254 disparos atingiram o tronco e o pescoço, 126 a cabeça e 135 os membros3.
Assim, e possível observar que os policiais que adentraram a Casa de Detenção de São Paulo, eram o próprio Estado, ou seja, a mais absoluta incapacidade do Estado em proteger os aqueles que estão sob sua custodia, vítimas constates promovido por uma “Falsa Abolição da Escravidão, ausentes de políticas públicas, vitimados pela exclusão racial e social, que resulta na marginalizão constante, através da violência cotidiana que perdura, culminando no encarceramento que expressa o embate racial e social vivido entre os cidadãos excluídos e o Estado. Todos os direitos que fazem parte do texto de nossa Constituição Federal de 1988, dentro da constituição cidadã a população negra encontra-se na Periferia da Constituição, os . Direitos que são primordiais para dignidade humana como saúde, educação, segurança, moradia, alimentação está ainda longe de serem conquistados. Sabemos que a realidade brasileira é bastante dura, cruel e desumanizante a todo momento. O Massacre do Carandiru apontou que o racismo é um dos principais fatores estruturantes das injustiças sociais que acometem a sociedade brasileira e que ainda envergonham o país. São inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos, ao gozo de direitos civis, sociais e econômicos.
Responsabilização pelas mortes
A responsabilização pelo Massacre do Carandiru só começou a ser julgada praticamente 10 anos depois, o Coronel Ubiratan Guimarães, foi condenado a 632 anos de prisão sendo responsável pela morte de 102 dos 111 presos, ainda foram realizados outros cinco julgamentos, entre os anos de 2013 e2014, devido a quantidade de vítimas e réus, o julgamento foi desmembrado. Ao final 73 policiais foram condenados com penas que variam de 48 a 624 anos de prisão. Porem no ano de 2016, três desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Júri, responsáveis pelo recurso da defesa dos réus, decidiram anular os julgamentos, o relator do processo defendeu que os policiais agiram em legitima defesa.
O TJ já havia anulado condenações no ano de 2018 por entende que a decisão ia contra as provas que se encontravam no processo.
Ainda no ano de 2022, de autoria do Capitão Augusto apresentou o projeto que prevê anistia aos policiais militares que atuaram no Massacre do Carandiru junto a Câmara Federal dos Deputados. No dia 23 de dezembro de 2022 foi publicado a concessão do perdão judicial para os policiais condenados há mais de 30 pela participação no massacre do Carandiru, época que este crime não era considerado hediondo. As condenações pelo Massacre dos 111 não podem mais sr revistas na Justiça. O ex-presidente da República, concedeu indulto natalino aos Policiais Militares envolvidos no Massacre dos 111- Por outro lado a Ministra Rosa Weber, atendeu o pedido realizado pela Procuradoria Geral da República, que considero o indulto natalino de 2022, totalmente inconstitucional, por afrontar a dignidade humana e os princípios do direito internacional, uma vez que o decreto concede “anistia” aos agentes de segurança pública que tenham sido condenados por fatos ocorridos há mais de 30anos, caso o crime não tivesse sido considerado hediondo na época.
Reparações
Sabemos que existem muitas maneiras de lidar com o passado que envolvem conflitos, interesses, relações de poder, apagamentos e exclusões, no caso do Massacre do Carandiru, excepcionalmente, através da sociedade civil, ongs, associação, frentes de desencarceramento, movimento negro, a regra não foi o esquecimento, mesmo após a implosão do presídio para a construção do Parque da Juventude, finalizado em 2003 e diversas instituições lutaram pelo esclarecimento dos fatos, reparação de danos e responsabilização dos culpados.
No dia 22 de fevereiro de 1994, as organizações, Americas Watch, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Comissão Teotônio Vilela apresentaram junto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra o Estado Brasileiro, onde foi apresentado, as violações à Convenção Americana de Direitos Humanos no que diz respeito aos direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias processuais – como o devido processo legal – e à proteção judicial das vítimas do Massacre do Carandiru.
O Massacre dos 111 deixou claro que a responsabilidade do Estado em casos de mortes decorrentes da atuação de seus agentes possui tratamento diverso no âmbito civil e no criminal. Muito embora a lei preveja a possibilidade de reparação civil em casos de crime. No caso da responsabilidade por mortes em presídios, responsabilizam-se, na esfera penal, os agentes públicos, ao passo que no âmbito civil a tutela se volta contra o Estado, uma vez que o papel de administrador do estabelecimento prisional e de responsável pela integridade dos custodiados. Logo, a tutela penal e a tutela civil não são excludentes. Acerca da responsabilidade civil, especificamente, os arts. 5º, inciso XLIX, e 37, § 6º, da Constituição Federal versam que o Estado deve assegurar aos presos a segurança e o respeito à integridade física e moral.
E extremamente um absurdo, e preocupante saber que há casos em que os familiares das vítimas possuem valores a receber, em alguns casos até já depositados em juízo, porem possivelmente nem sequer têm conhecimento da possibilidade de receberem essas quantias em razão do longo período em que seus processos ficaram sem tramitação.
Os filhos do Massacre
As mulheres gravidas era um grupo muito grande, na porta da Casa de Detenção de São Paulo, segurando a mão de outros seus filhos, não eram poucas as avos, esposas, filhas, tias, que eram ofendidas pelos cavalos que estavam montados nos animais, os quais eram jogados, contra as mulheres e crianças, de um lado ao som de “assassinos, covardes” e do outro “vagabundas, etc”. A tensão era imensa, eu estava na porta do Carandiru, juntamente com outros membros da família, na busca de informações sobre paradeiro do filho, pai, sobrinho. O episódio foi marcado com inúmeras violações de direitos humanos, inúmeras crianças não foram devidamente informadas das condições da morte, alguns receberam a certidão de óbito. Ainda há inúmeros processos solicitando indenização, em que o valor varia entre 40 e 60 mil reais, aqueles que eram crianças nos braços de seus avôs, mães, tias, ou na barriga de suas mães vão em busca da indenização que o estado lhes deve. Destaca-se que as famílias, das vítimas chegam a aguardar, até 22 anos ou mais para serem indenizadas, sem contar que muitos entes queridos, que deram entrada na ação de indenização já se encontram mortos. Por onde estará, como vivem os filhos e filhas do Massacre do Carandiru?
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1 ALONSO, George. Comissão de presos conta 220 ‘execuções’. Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 de out. de 1992
2 Segundo diz o jornalista do jornal O Estado de S. Paulo Marcelo Godoy, no livro A Era FHC: Um Balanço, de Bolívar Lamounier e Rubens Figueiredo.
3 SÃO PAULO. Departamento Estadual de Polícia Científica. Instituto de Criminalística. Laudo número 019267. Relator: Dr. Osvaldo Negrini Neto. Rebelião Rixa, São Paulo, 1992.