Direitos Humanos em pauta

A herança de Bolsonaro e o que muda com o novo decreto de armas no Brasil

Nunca antes o Brasil viu um presidente tão empenhado em desmontar uma estrutura de controle de armas e munições.

8/8/2023

Nunca antes o Brasil viu um presidente tão empenhado em desmontar uma estrutura de controle de armas e munições. Nos quatro anos em que governou o país, Jair Bolsonaro editou aproximadamente 40 atos (entre decretos, portarias, resoluções e instruções normativas), criando não só normas frouxas, mas também um emaranhado normativo que o Ministério Público Federal classificou como 'caos normativo'1.

O ataque de Bolsonaro se deu em três grandes frentes. A primeira foi a facilitação de acesso às armas e ao porte, com retirada de requisitos para compra e alteração de regras para acessos de adolescentes às atividades com armas. Em segundo lugar, o governo aumentou substancialmente o número de armas e munições que podem ser compradas por cada pessoa (para atiradores esportivos o limite foi de 16 para 60 armas, podendo ser 30 de uso restrito). Além de ter ampliado em quatro vezes a potência das armas acessadas por civis (permitindo, em alguns casos, que  possam ter armas iguais ou mais potentes que as da própria polícia). Por fim, estas medidas foram acompanhadas pela perda da capacidade de fiscalização, já que instrumentos pensados para aperfeiçoar a marcação e rastreabilidade de armas e munições foram revogados, facilitando que se cometam desvios e ampliando a impunidade.

Esta facilitação de acesso somada ao incentivo quase diário à compra de armas feito pelo titular da presidência da República, fez a compra de armas explodir entre 2019 e 2022. O número de armas nas mãos de particulares saltou de 1.3 milhão para quase 3 milhões em apenas 4 anos2. Ainda que, felizmente, isso não tenha sido suficiente para reverter a tendência de queda de homicídios (iniciada em 2018, antes de Bolsonaro, com a trégua de guerra de facções, aumento de investimento na segurança pública e redução de jovens no país), a enxurrada de novas armas dificultou esta redução. Estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública3, apontou que só entre 2019 e 2021 ao menos mais seis vidas por dia poderiam ter sido salvas, ou mais de seis mil vidas no período, não fosse o aumento de armas compradas por civis.

O efeito das políticas não atinge a todos os grupos igualmente. Ainda que os homicídios tenham caído em geral, os feminicídios aumentaram 6% em 20224. Crime muito impactado pelo aumento de armas registradas em residências. A violência contra a mulher é muito mais frequente dentro de casa do que na rua, e cometida por parceiros íntimos e familiares.

Essa não é a única forte injustiça causada pelo processo ocorrido nos últimos quatro anos. Imaginemos que arma fosse uma boa ferramenta de defesa (o que comprovadamente não é), ainda assim a esmagadora maioria da população não tem recursos para comprá-la. Hoje, uma arma simples, ainda que usada, custa o equivalente a no mínimo quatro meses da renda média do Brasileiro (aproximadamente R$ 6 mil). O perfil das pessoas que a acessam é de homens, casados e com alta renda5. Assim, a única parte da arma visível para parte da população mais vulnerável é o cano sendo disparado. Homens negros tem 3,5 vezes mais chances de serem assassinados por armas de fogos do que brancos nas regiões metropolitanas brasileiras segundo Estudo do Instituto Sou da Paz6.

Ainda que você não esteja inserido no perfil de quem mais morre no Brasil, estas mudanças também te afetam, e muito. Parte das armas na mão do crime que te assalta no farol ou no ponto de ônibus vem do mercado legal. Antes restrita, a arma campeã de vendas no Brasil na era Bolsonaro, a pistola 9mm, tornou-se a arma mais presente no mercado ilícito. Uma arma mais potente, que dispara mais rápido, carrega mais munição e pode ser recarregada com mais facilidade. No Distrito Federal, a apreensão deste tipo de arma saltou de 3% em 2017 para 23% no último ano de Bolsonaro na presidência. Uma herança que seu governo, com ampla participação de militares do Exército, deixou para as próximas gerações.

Nos últimos sete meses ocorreram importantes mudanças para reverter este quadro. O Supremo Tribunal Federal, em julgamentos recentes, apontou diversas inconstitucionalidades nas mudanças feitas na gestão passada7. Por parte do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, já houve dois decretos, o último publicado em julho e que traz boas perspectivas para o futuro.

Em linhas gerais, este último decreto:

Podemos dizer que hoje o país conta com um regulamento de muito melhor qualidade e que ajuda a fechar algumas brechas que estavam sendo ampliamento utilizadas por facções criminosas e milícias urbanas e rurais8 para acessar especialmente armas de alto poder de fogo, como fuzis e pistolas.

Os desafios ainda são imensos. Para começar, ainda há muita incerteza sobre como, quando e em que extensão se dará a transferência de competências de fiscalização de CACs do Exército para a Polícia Federal. Em segundo lugar, a atualização dos programas de entrega voluntária de armas e de recompra, este último direcionado a armas de calibre restrito, ainda não foi divulgada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os programas são decisivos para a retirada de armas de circulação. Por fim, ainda que tenha sido uma recomendação explícita do Tribunal de Contas da União, não há indicativo de reforço por parte da Polícia Federal em sua estrutura de combate ao tráfico e comércio ilegal de armas de fogo. Nem de criação de estruturas de delegacias especializadas nas polícias civis estaduais, atualmente existentes apenas nos estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro.

No Brasil, é impossível falar em qualquer política para redução de violência que não passe pelo aperfeiçoamento das estratégias de controle de armas de fogo e munições. É fundamental que sociedade e imprensa sigam pressionando por uma política pública que ajude a retirar armas de circulação e salvar vidas.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.