O censo ou recenseamento demográfico é a principal fonte de dados sobre a população em todo território nacional, ele serve para identificar características e modo de vida dos brasileiros e pessoas de outras nacionalidades que vivem no Brasil.
Essa política é deveras importante porque é capaz de produzir informações imprescindíveis que deverão subsidiar as políticas públicas e a tomada de decisões do poder público em qualquer nível de governo (municipal, estadual ou federal). E segundo o próprio IBGE, é também a única fonte de referência sobre a situação de vida da população nos municípios1.
No último dia 28, o governo federal divulgou os dados do recenseamento de 20222 e embora o censo demográfico exista no Brasil há 150 anos, isto é, há mais de um século que o Brasil registra os dados de sua população, esse foi o primeiro censo em que a população quilombola foi incluída como grupo populacional específico.
Curioso não? Por que será que os governos brasileiros demoram tanto para incluir essas comunidades no censo?
Pois é! A história nos revela que os quilombos existem no Brasil há pelo menos quatro séculos, e os primeiros que se têm registro datam do século XVI, em meados de 1.575, na Bahia e em Alagoas.
Apenas para situar nossos(as, es) leitores(as, es), os quilombos são comunidades formadas, inicialmente, por pessoas negras escravizadas fugidas das fazendas e que se rebelaram contra a condição de escravizado e as torturas infligidas pelos senhores de engenho e seus capatazes. Esses lugares se transformaram em centros de resistência negra e atravessaram séculos (re)existindo até hoje onde vivem os remanescentes quilombolas.
Voltando a pergunta acima, há quem vá argumentar que “(...) negro não era gente até a assinatura da Lei Aúrea”. E a afirmação não está incorreta, o negro era considerado semovente segundo o Código Comercial de 1.8503, mas com a abolição da escravatura ocorrida em 1.888, embora não estivesse explicito na lei, entende-se que passou-se a presumir um certo grau de humanidade aos negros e, consequentemente, aos quilombolas.
Bem! A despeito de qualquer discussão mais aprofundada sobre as razões pelas quais, em mais de 100 anos, quilombolas não constavam no censo como tais, fato é que a não categorização desse grupo contemplando suas especificidades resulta indiretamente na negação da sua existência e naquilo que o Prof. Adilson José Moreira classifica como discriminação indireta por omissão.4 Quando o estado aplica conceitos quase que universalistas se furta de observar grupos populacionais minoritários ou minorizados em suas políticas, em especial, na elaboração de políticas públicas e de promoção dos direitos fundamentais, ele está indiretamente dizendo a esses grupos que eles não existem.
Afinal, não é possível tratar o que não se conhece ou que simplesmente não existe, pois não incluir os quilombolas na política de recenseamento é o mesmo dizer ao mundo que eles não existem enquanto comunidade com especificidades que merecem políticas específicas, por isso, o Brasil dá mais um passo tardio e lento na inclusão dessas comunidades enquanto grupo populacional e enquanto indivíduos detentores da dignidade humana. E é por isso que esse está sendo considerado pelo IBGE o marco zero das estatísticas em relação aos quilombolas.
A partir da autodeclaração, o censo revelou que o Brasil possui hoje 1.327.802 (um milhão trezentos e vinte e sete mil e oitocentos e dois) quilombolas, representando 0,6% da população total de 203 milhões de pessoas. A maioria, 70%, vivem na região nordeste, na Bahia registra-se a maior população, mas o sudeste comporta 12% dos quilombolas, a maioria em quilombos urbanos.
O censo também revela que a maior demanda dos quilombolas é em relação a obtenção da titulação de suas terras e as constantes invasões por grileiros e fazendeiros nas áreas rurais, já aqueles que estão localizados em áreas urbanas sofrem com a especulação imobiliária e o assédio de construtoras.
Os dados revelam ainda 494 territórios quilombolas com alguma delimitação formal e o levantamento desses dados devem ajudar na política de titulação dos territórios, sabendo que a trajetória que se percorre até chegar o momento da titulação é longa e passa por inúmeras fases.
O levantamento demonstra ainda que a educação e saúde também são os grandes problemas que essas comunidades enfrentam, em especial, em relação ao acesso aos equipamentos públicos que distribuem esses serviços públicos.
O recenseamento dos quilombolas para além de possibilitar a melhor elaboração e implementação das políticas públicas para essas comunidades, nos revela que o Brasil é um país forjado na base no conflito, nas violências contra pessoas negras e indígenas e, também, na resistência desses grupos, que existem e devem ser considerados para todos os fins.
Quilombola é sinônimo de estratégia, sobrevivência, luta, resistência e continuidade.
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