Coincidências do destino ou não, hoje, 25 de julho, dia em que celebramos o Dia (Inter)Nacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, é também o dia em que nossa coluna semanal vai ao ar. Contudo, eu, mulher negra amefricana - utilizando aqui o conceito de Lélia Gonzalez - resolvi lhes escrever abordando não os temas comuns aos debates nesta data, quais sejam, as vicissitudes e as subjetividades das mulheres negras, mas abordo um tema que faz parte do meu escopo de trabalho e de estudos na academia e que direta e indiretamente é atravessado pelo racismo, assim como nossa sociedade inteira o é: a segurança pública no Brasil.
Ressalto, contudo, que por óbvio não rechaço de modo algum a necessidade de debatermos sobre nossas vivências e experiências sob ótica subjetiva, porém, nesse momento me furto desse debate porque, por vezes, me cansa o lugar de objeto a ser analisado e escrutinado e que, não incomum, é utilizado para mimetizar os debates para sobrepondo a perspectiva individual inviabilizando as causas estruturais.
De modo que, escolho essa rota para dizer ao público que embora eu seja forjada pela minha ancestralidade negra que envolve dor e sofrimento, minha retórica e contribuição para uma sociedade mais justa e antirracista não se limita a dor, tampouco a minha individualidade e subjetividade, esses elementos estão presentes no ponto de partida, mas não são um fim em si mesmo me encerrando nesse lugar.
Pelo contrário, escrevo de um lugar consciente do passado, capaz de romper as limitações da minha subjetividade e produzir conhecimento e reflexões contributivas para o presente e futuro, e com essa escrita honro as mulheres negras e a ancestralidade que há em mim.
Inicio essa breve reflexão sobre segurança pública no Brasil, apoiada no conceito de amefricanidade, cunhado pela grande escritora e pensadora negra, Lélia Gonzalez. Em síntese, amefricanidade se refere à experiência de mulheres e homens negros na diáspora, bem como a experiência de mulheres e homens indígenas contra a dominação colonial, é um processo em continuidade até os dias de hoje.
Saindo da primeira pessoa e pensando a partir da coletividade, tem-se que a área da segurança pública é ponto nevrálgico para a efetividade da dignidade humana da população brasileira, vez que o Brasil está localizado na periferia do capitalismo e alguns anos protagoniza a lista dos 10 países mais desiguais do mundo, com seríssimos problemas de distribuição de renda, de moradia, frequentemente territórios com superpopulação, baixa renda e ausência do bem-estar social figuram nas páginas dos jornais como “territórios mais violentos”.
A despeito desse termo, “território violento”, fazemos um parênteses para jogar luzes sobre um debate que tem sido travado nos âmbitos da academia e da política sobre essa nomenclatura, observa-se o assentamento da ideia do uso da correta terminologia “territórios violentados” ao invés da acima citado. Visto que o uso da primeira coloca o morador desse território como agente principal da violência e exclui implicitamente a responsabilidade do estado em sua ausência para promoção do bem-estar social, da mitigação das desigualdades e a consequente diminuição das violências que, ao fim e ao cabo são perpetradas contra os próprios moradores dessas localidades.
Reconhecer esses locais como territórios violentados, significa reconhecer que a ausência de acesso à boa educação, lazer, saúde de qualidade, moradia em condições dignas também representam uma série de violências, perpetradas pela via da negligência e ausência estatal, contra quem vive nessas áreas, bem como reconhecer as violências que se instalam a partir dessas ausências, dentre elas lembremos, a falaciosa guerra às drogas, as instalações de milícias, o surgimento de facções e etc.
Assim, quando se pensa em política de segurança pública no Brasil, usualmente se pensa na vertente repressiva com aparelhamento das polícias e estratégias de atuações que, na maioria das vezes, implicam em incursões armadas nesses territórios para desbaratinar biqueiras e pontos de drogas.
A nossa ver, a política de segurança pública está também intimamente ligada à política sobre drogas e as necessárias reformas que ela merece, colocando-se à mesa um debate difícil e que se coloca cada vez mais como necessário quando voltamos nossos olhos para os números de jovens negros mortos anualmente vítimas da violência.
Na última semana, o Fórum brasileiro de segurança pública, publicou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, apresentando pela primeira vez em 12 anos (período de mapeamento desses dados), uma redução nas mortes violentas intencionais em 2,4%.
Apesar disso, os índices no Brasil continuam elevadíssimos, com 47.508 vítimas de homicídios em 2022, continuamos no ranking mundial entre os 10 países mais violentos do mundo. Desse número, 76,5% dos assassinatos cometidos com arma de fogo, 76,9% das vítimas eram negras, 50,2% entre 12 e 29 anos e 91,4% do sexo masculino.
“Entre 12 e 29 anos”, esse dado é abissal! Não é possível que a sociedade brasileira, continue naturalizando esse número de jovens negros sistematicamente dizimados da população e absurdamente sintomática da eliminação de pessoas negras e daquilo que já se classificou como genocídio da juventude negra.
Registra-se ainda, que o número de pessoas mortas em intervenções policiais continua elevado: 6.429 vítimas.
A violência contra mulheres e meninas cresceu de forma absurda, o crime de feminicídio no Brasil registrou um aumento de 7%, sendo que 61% das vítimas são negras e 71,9% tinham entre 18 e 44 anos.
Como se não bastasse, houve um número recorde de estupros no país, com 74.930, registrando um crescimento de 8,2% em relação a 2021, sendo 56,8% negras, 88,7% de vítimas do sexo feminino e, pasmem-se, 61% de crianças de 0 a 13 anos.
A crescente violência contra meninas e mulheres no Brasil está na contramão da história (ou deveria estar), contudo, ela é reflexo de um contexto extremista, conservador, racista e machista que ganhou e ampliou vozes ecoante de discursos de ódio contra mulheres que, por vezes, tentam se naturalizar sob a pecha da falaciosa liberdade de expressão sem limites.
A tomada dos corpos de meninas e mulheres como se fossem públicos, as violações e violências a eles infligidas, sobretudo de crianças, demonstram a concreta consequência das palavras ditas por lideranças nacionais, a exemplo do ex-presidente da república, Jair Bolsonaro, que tentam se valer da dita “jocosidade do brasileiro”, como subterfúgio para disfarçar a política de violência que autorizam por meio de seus discursos.
Ademais, essa política é adensada pelo baixíssimo investimento em políticas de prevenção e enfrentamento da violência contra mulheres que se teve notícia no governo anterior.
Amefricanidade é sobre isso, sobre resistir enquanto sujeito e enquanto coletivo a um estado que deliberadamente não só chancela, mas também elabora e implementa políticas que se inserem no contexto da discriminação indireta, por ação ou omissão, que sabidamente culminarão na eliminação de um determinado contingente populacional.
No inicio do século passado, a politica que se adotou para eliminação do contingente negro no Brasil foi a do branqueamento da população por meio da imigração européia, hoje a política adotada é a do extermínio consentido pelo estado.
Nós, pessoas negras sobreviventes da diáspora e em processo diaspórico como um trem descarrilado que segue em movimento fora dos trilhos seguiremos utilizando nossas tecnologias ancestrais, adensadas pelo conhecimento e desenvolvimento alcançados da experiência coletiva das fissuras nos espaços institucionais que elaboram políticas de segurança pública, de proteção e cuidado de meninas e mulher e do bem-estar social.
Os dados do fórum foram publicados um dia antes de o Governo federal anunciar o novo Plano nacional de segurança pública, que também será objeto de análise dessa coluna.