Direitos Humanos em pauta

Orgulho e luta: uma reflexão sobre a violência estrutural LGBTfóbica

O obscurantismo e a discriminação ainda se revelam entremeados em nossa sociedade, manifestando-se desde o preconceito até a violência crua e real.

4/7/2023

No mês de junho se deu celebração do orgulho LGBT. Torna-se necessária uma pausa reflexiva acerca das conquistas e dos desafios que essa comunidade deve comemorar e enfrentar, respectivamente. Ao Poder Público - Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público - fica a obrigação e o dever de refrear o ódio e garantir os direitos humanos dessa população historicamente vulnerável.

A propósito do discurso de ódio, termo importado do inglês (hate speech), é possível verificar suas abordagens em diversos contextos e recortes de estudos. Em comum, há a intenção de subalternizar e segregar o outro por meio de palavras, imagens depreciativas, expressões discriminatórias e outras formas de expressão do pensamento. O discurso de ódio pode ser direcionado a todos os grupos sociais, étnicos e sexuais não hegemônicos como forma de agredir ou reduzir o status social desses indivíduos (SCHÄFFER; LEIVAS e SANTOS, 2015, p. 147).

Em sentido semelhante, Brugger (2007, p. 118) define o discurso de ódio como “palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”.

Para Faustino (2020, p. 50), o discurso de ódio busca estigmatizar o alvo a quem é dirigido, tendo como consequências um resultado de intimidação, ofensa, insulto ou até discriminação. No entanto, segundo o autor, para que tenha efeitos jurídicos e sociais, é necessário que esse conteúdo odioso seja conhecido por meio da expressão, tendo em vista que o pensamento não pode ser condenado.

Assim, o discurso de ódio poderia ser considerado uma narrativa de segregação sistemática de um grupo historicamente subalternizado como resposta a uma suposta ameaça de fragilização ou perda de hegemonia pelo grupo dominante. A respeito do conceito de hegemonia, este se torna fundamental para entender como os Direitos Humanos se tornaram um obstáculo relativamente simples de serem removidos pela narrativa do discurso de ódio, uma vez que não apresentaram coerência entre o discurso entoado e a prática nos contextos de conflito.    

Desempenha o discurso de ódio uma importante função agregadora de indivíduos que se identificam em torno de uma determinada ideologia. Nessa toada, adquire relevo, a práxis do neoconservadorismo, que por meio da exaltação de valores sócio-políticos e culturais tradicionalistas propagados, principalmente por ideologias de extrema-direita, buscam a construção de um inimigo público supostamente responsável pela ruína e corrupção dos valores morais hegemônicos. Esse processo instrumentaliza a estigmatização e o silenciamento de grupos minoritários, como o representado pelas LGBT para diminuir a participação política desses atores sociais em prol da hegemonia de grupos maioritários (MACHADO, VAGGIONE e BIROLI, 2020, p. 190).

Inserido nessa dinâmica, o discurso de ódio pode funcionar como uma forma de deslegitimar e segregar aqueles indivíduos considerados desviantes ou que tenham comportamentos e práticas proscritas pelos grupos sociais hegemônicos. Esse processo segue a construção de um inimigo público: “o outro”, aquele que não pertence a determinado grupo social maioritário e representa a negação dos valores e princípios tomados como “corretos”. A solução apontada nesses casos é a violência aniquiladora, simbólica ou fática, quando não as duas em escala. Segundo Silva:

Nesse processo, o discurso de ódio pode funcionar como uma forma de deslegitimar e segregar aqueles indivíduos considerados desviantes ou que tenham comportamentos e práticas proscritas pelos grupos sociais hegemônicos. Esse processo segue a construção de um inimigo público: o outro, aquele que não pertence a determinado grupo social e representa a negação dos valores e princípios tomados como “corretos”. A solução apontada nesses casos é a violência aniquiladora, simbólica ou fática, quando não as duas em escala. A época atual é ideal para uma fragilização no nosso sentimento de pertencimento, onde todos nós vivemos uma triste violação de expectativas, desesperança, desalento. É sedutor em discursos assim, reforçarmos a pertinência das pessoas aos seus grupos sociais, gerando ódio ao suposto inimigo, causador de toda essa situação. Foi assim na Alemanha Nazista contra os judeus e na Europa com os imigrantes. Só assim, as pessoas se sentem mais seguras, ou seja, banindo o inimigo (SILVA, 2020, p. 39).

Nesse contexto, o discurso do ódio pode ser representado por diversas plataformas e podem encampar diferentes narrativas discriminatórias, com o objetivo de segregar uma parcela da população e de instigar o pânico moral nos indivíduos. Há o apelo à produção e disseminação das chamadas fake news (notícias falsas) e de calúnias que buscam nas representações coletivas preexistentes um gatilho para a expressão de ódio, preconceito e outros medos (JUNQUEIRA; CÁSSIO e PELLANDA, 2020, pp. 195 -196).

O apelo de um campo hiperconservador a representações coletivas preexistentes, baseadas em categorias plurissignificativas como família, religião, educação, moral, etc., busca reafirmar uma agenda de promoção de um recorte específico da sociedade, ao qual se busca dar visibilidade e oficialidade. Trata-se da família heterossexual, branca, cristã e de classe média, representação arquetípica de um modelo que subjaz os valores culturais e socioeconômicos a que se busca privilegiar em detrimento de outras conformações sociais existentes e, muito embora minoritárias em termo simbólico, extremamente frequentes na sociedade brasileira (JUNQUEIRA; CÁSSIO e PELLANDA, 2020, p. 200).

O reforço de um modelo de vida ligado aos valores e concepções mencionados pôde ser observado no âmbito de políticas do Governo de Bolsonaro, a exemplo das políticas adotadas pelos Ministérios da Mulher, Família e Direitos Humanos e da Educação (JUNQUEIRA; CÁSSIO e PELLANDA, 2020, p. 200). Mas não somente nesse âmbito. É principalmente por meio da cultura e dos valores incutidos nos indivíduos, desde muito cedo, por meio da educação, formal ou não, que ideias tradicionalistas, de cunho machista, LGBTIfóbico, misógino e patriarcal são hegemonizadas na sociedade.

A expectativa social em torno de uma heterocisgeneridade1 inata, ou seja, de que um indivíduo viva e/ou desempenhe uma sexualidade e um gênero em consonância com os cânones hegemônicos de forma supostamente “natural” é um dado estrutural da naturalização da violência LGBTIfóbica. Essa expectativa estimula o reforço e a vigilância em torno da expressão sexual e de gênero desde antes dos indivíduos nascerem, delimitando minuciosamente os papéis a serem desempenhados por eles. Na sequência, a pedagogia do gênero e da sexualidade hegemônicas formata os comportamentos de crianças e adolescentes incutindo a normatividade voltada à heterossexualidade, cisgeneridade e aos papeis de gênero convencionais. Os seres desviantes, consequentemente, estarão expostos à toda sorte de violências, de natureza simbólica, física, institucional, etc., nos mais diversos ambientes, como na família, na escola, na faculdade e, futuramente, nos círculos sociais laborais e informais (LEITE, 2020, p. 419).

O discurso de ódio contra LGBT é, portanto, alimentado por elementos simbólicos e narrativas que buscam desumanizar e deslegitimar o papel dessa população na sociedade. Tratar do discurso de ódio LGBTfóbico no Brasil é, portanto, tratar de uma violência estrutural que remonta o período colonial brasileiro, em que os comportamentos tidos como “desviantes” eram exemplarmente punidos pelo aparato repressor do Santo Ofício, que trouxe a dimensão inquisitorial da Igreja Católica para o Brasil (PEIXOTO, 2018, P. 12-13).

Na última década, muito se caminhou na direção da dignidade humana de LGBTs. Recentemente obteve-se uma vitória judicial no julgamento da ADO 26/DF, que sanou a omissão inconstitucional referente à tipificação do crime de LGBTfobia com a aplicação da Lei Antirracismo (Lei 7.716/89), por identidade de razão e adequação típica, até que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria.

A fixação da referida tese pelo Supremo Tribunal Federal foi comemorada por ativistas, movimentos sociais e pessoas LGBTs como um avanço no arcabouço jurídico de proteção e garantia da cidadania plena dessa população historicamente vulnerada. Ao lado da união estável entre pessoas do mesmo sexo (ADIn 4277/DF e ADPF 132/RJ) e da possibilidade de retificação de nome de pessoas trans sem necessidade de intervenção cirúrgica ou apresentação de laudos ou de decisão judicial (ADI 4275/DF), o reconhecimento da tipicidade da LGBTfobia foi uma conquista civilizatória no sentido da garantia de direitos constitucionais de igualdade e não discriminação.

Em que pese o avanço na proteção jurídicas das LGBTs, os crimes de ódio contra essa população ainda ocorrem com frequência no Brasil. No ano de 2022 foram registradas 273 mortes de LGBTs, correspondendo a uma pessoa LGBT assassinada a cada 32 horas, ou a uma média de duas mortes a cada três dias, sendo que desse total, contabilizam 159 travestis e mulheres trans mortas. Vidas tiradas pela intolerância e pelo ódio.2

No contexto das conquistas de direitos civis das LGBTs, notadamente mais voltada aos gays e lésbicas, no que diz respeito à união civil entre casais do mesmo gênero, observa-se, por meio da análise dos discursos e expressão da ideologia ultraconservadora na política em sentido amplo e no próprio parlamento, que a última trincheira desse segmento radicalizado à direita tornou-se o ataque às pessoas trans e travestis.

Por meio da subaltenização da dignidade humana dessa população, a camada ultraconservadora busca canalizar seu discurso pró-família tradicional, por meio de ataques envolvendo notícias falsas e a instrumentalização do ódio, criando pânico moral em torno da suposta desconstrução da heterocisnorma. Inclusive, é de se notar que o uso de elementos da fictícia “ideologia de gênero”, espécie de isca para atrair seguidores para a ultradireita, têm sido direcionado para o ambiente escolar, para tentar impedir um debate sério e uma abordagem profissional sobre a diversidade nas escolas.

Observa-se, por conseguinte, que a violência estrutural LGBTfóbica pode ser reproduzida simbolicamente, no sentido de uma subalternização sistemática das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas, inclusive por meio da educação direcionada às crianças e adolescentes. Outrossim, a violência contra LGBTs pode se materializar em termos de violência real, da forma como se observa, atualmente, no Brasil, com um grau considerável de ocorrências oficiais, ressalvadas as subnotificações.

Há que se considerar, portanto, que o discurso de ódio construído em desfavor de grupos minoritários como o recorte da população LGBTI estimula e retroalimenta a violência física e psicológica praticada contra essa população. Os símbolos e significados do ódio LGBTIfóbico, que buscam estigmatizar e segregar, são o sustentáculo ideológico da violência dirigida a esses grupos minoritários, ao passo que mantém uma estrutura social hierarquizada em favor das formas hegemônicas de manifestação da sexualidade (heterossexualidade) e de identidade de gênero (cisgeneridade) (CARMO, 2016, p. 219).

O obscurantismo e a discriminação ainda se revelam entremeados em nossa sociedade, manifestando-se desde o preconceito até a violência crua e real, que atinge principalmente os corpos e a subjetividade das mulheres trans e travestis, das mulheres bissexuais e de lésbicas. os direitos dos LGBTs precisam ser garantidos na prática e reforçados pelas políticas públicas em todas as suas dimensões.

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1 Segundo Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 10): “Chamamos de cisgênero, ou de “cis”, as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento. [...] Denominamos as pessoas não-cisgênero, as que não são identificam com o gênero que lhes foi determinado, como transgênero, ou trans.”

2https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-05/dossie-contabiliza-273-mortes-violentas-de-pessoas-lgbti-em-2022#:~:text=O%20relat%C3%B3rio%20de%202022%20identificou,mortas%20e%2097%20gays%20assassinatos.

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*Álvaro Augusto Cerqueira Mangabeira é advogado militante, mestrando em Direitos Sociais pelo Centro Universitário IESB e ativista em direitos humanos.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.