Direitos Humanos em pauta

Da série não existe racismo no Brasil: A prática da revista vexatória nas unidades prisionais brasileiras e a disputa interpretativa do STF em proibi-la ou não

O STF deverá decidir sobre nulidade de provas obtidas através de revistas vexatórias após o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes no julgamento do ARE nº 959.620 com Repercussão Geral (Tema 998). Quais as teses do julgamento? Quais os corpos são destinatários desta revista?

6/6/2023

Resumo: O Plenário físico do STF deverá decidir sobre nulidade de provas obtidas através de revistas vexatórias após o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes no julgamento do ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) nº 959.620 com Repercussão Geral (Tema 998). Quais as teses do julgamento? Quais os corpos são destinatários desta revista?

Apesar da expressão aparentemente ser autoexplicativa: “revista vexatória”, iniciaremos explicitando no que consiste essa prática. A pessoa que visita o sistema prisional, em sua maioria mulheres, sobretudo negra, para ingressar na unidade precisa entrar em uma sala, na presença de uma policial penal ou militar e tirar toda a sua roupa, ou seja, ficar completamente nua. Agachar até o chão três vezes de frente e três vezes de costa. Depois desses agachamentos, a pessoa precisa deitar em uma maca, como as de hospitais, levantar as pernas como se faz em uma consulta ginecológica e fazer força como se fosse expulsar um bebê de seu ventre ou defecar. Essa parte da revista ocorre durante o tempo que a policial entender necessário, mesmo havendo regulamentações risíveis dessa revista, na prática não há estrutura para que haja fiscalização. Esta revista possui variações ainda mais invasivas, como a introdução de dedos na vagina ou ânus das mulheres, a exigência que se faça força a ponto de defecar na maca, e por fim, é comum a célebre frase após tudo isso: "não estou vendo o seu canal, você não vai poder visitar hoje.”.

Pode surgir aos leitores a pergunta se o narrado acima de fato é real, nesse sentido, uma das coautoras desse artigo foi Presidente do Conselho da Comunidade na Execução Penal da Comarca de Belo Horizonte, Capital de Minas Gerais e em inspeções realizadas em dia de visitas, para corroborar as incontáveis narrativas das familiares, presenciou a realização da revista vexatória. Além de um dos coautores ser sobrevivente do sistema prisional, e por sua vez suas familiares já passaram por esta violação dos seus corpos centenas de vezes.

Para além das experiências vivências pelas autoras e autor deste artigo que atuam na pauta prisional, tem-se os relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - órgão responsável por fiscalizar todo e qualquer ambiente de privação de liberdade, tais como presídios, centros de internação, casas de acolhimento de idosos e hospitais. Os relatórios do Mecanismo Nacional são elaborados por peritos que têm um fundamental papel técnico e institucional de registrarem o pesadelo que são os presídios brasileiros, no que diz respeito à revista vexatória, um trecho do Relatório de Inspeções Regulares nos Sistemas Prisional e Socioeducativo do Estado da Bahia1, sobre inspeções realizadas em 2022 registra que: “Inclusive crianças de 3 anos de idade têm de fazer os agachamentos próprios da revista vexatória e crianças menores têm de tirar a fralda para verificação. Também é requerido das visitas botar o dedo na boca e fazer força. Pessoas nuas são apalpadas por policiais penais quando da revista vexatória. Foi relatado que as mulheres são obrigadas a ficarem nuas na frente de agentes homens.”

Ultrapassando a explicação do que consiste na prática essa revista vexatória, recuperamos a origem do caso e em seguida a divergência instaurada no Tribunal. O STF está debatendo a revista vexatória na ação denominada como ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) nº 959.6202 com Repercussão Geral (Tema 998) tratando da matéria processual sobre a controvérsia relativa à licitude ou ilicitude da prova obtida a partir de revista íntima de visitante em estabelecimento prisional, por ofensa. O caso concreto que deu origem à discussão da revista vexatória no âmbito de sua constitucionalidade ou não é o de uma mulher que, ao visitar o seu irmão no Presídio Central de Porto Alegre, passou por uma revista vexatória conduzida por policiais militares a partir de uma denúncia anônima, e durante a revista, segunda consta no auto de flagrante, foi encontrado 96,09g de maconha no canal vaginal da ré.

A mulher em questão é Salete, ela nunca havia sido presa, e, segundo narra nos autos, levava a droga para livrar o seu irmão da morte ao quitar uma dívida que ele, usuário de drogas, havia contraído na cadeia. Este caso é paradigmático não só por se ancorar em prova obtida por meio de revista vexatória, mas também por escancarar qual corpo é tido pelo Estado como violável.

A mulher ré neste caso, reside em uma região periférica, que concentra altas taxas de homicídio e baixas taxas de escolaridade infantil. Apesar de a mulher ter 35 anos, nunca chegou ao Ensino Médio. Ela tem dois filhos para criar, trabalha de segunda a sexta de 8h às 17h como faxineira e recebe como remuneração 65% do valor de um salário mínimo. A mulher neste caso é a Salete, mas nas filas dos presídios por todo o Brasil pode ser a Lourdes, Maria das Graças, Tereza, Cristina e tantas outras que, para o Estado, podem ser desnudas à força e obrigadas a abrirem as pernas, agacharem, fazerem força e terem seus corpos invadidos pelo Estado por meio de seus agentes policiais.

Importante frisar que a escassez de dados oficiais referente ao perfil de pessoas que visitam o sistema prisional é uma política de Estado, implantada como forma de invisibilização. Os dados mais atuais existentes em relação a esse perfil foram produzidos pela sociedade civil. O relatório “Revista vexatória: uma prática constante”3 aponta que o perfil das pessoas que visitam o sistema prisional, e que são as vítimas das revistas vexatórias são mulheres, em maioria negra. Na mesma linha dos dados de cor/raça de quem visita, e não menos importantes, pois contribuem para a clivagem racial, estão os dados das pessoas que recebem visitas, as pessoas em privação de liberdade. De acordo com o Relatório do Sistema Nacional de Informações Penitenciárias de dezembro de 2022, 452.868 pessoas presas estão declaradas como negras, o que corresponde a 54,51% da população presa, isso significa dizer que são filhas e filhos de pai e ou mãe negras.

Passando ao julgamento no STF, o mesmo foi reiniciado no plenário virtual em 12 de maio de 2023 - observamos que uma matéria desta envergadura julgada sem a ampla participação e debate de todos os atores jurisdicionais é o espelhamento da tensão constitutiva permanente dos Direitos Fundamentais -, sendo que estão estabelecidas duas teses:

A primeira, expressada no voto do Relator do caso, Min. Edson Fachin - acompanhada pelas Ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia, Ministro Roberto Barroso e Gilmar Mendes-, sustenta ser "inadmissível a prática vexatória, da revista íntima em visitas sociais nos estabelecimentos de segregação compulsória, vedado sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova obtida a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos ou radioscopias.".

A segunda tese, manifestada no voto do Min. Alexandre de Moraes - acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça - sustenta que "a revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com os protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exame invasivos. O excesso de responsabilidade do agente público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização de visitas".

O centro da divergência é o termo excepcional, pois ela expressa uma incompreensão acerca do estado de coisas inconstitucional que configura o sistema prisional brasileiro, como sustentou o próprio STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347. A divergência expressa o abismo existente entre a realidade nua e crua e a visão de mundo dos nossos tribunais. Expressa o racismo e a misoginia estrutural e estruturante do nosso Poder Judiciário, em sua face mais perversa, a negativa de sua existência, e também o impacto das decisões em sua manutenção ou contestação. Por fim, traduz também que a ideia de "segurança" que consiste em defesa da “sociedade”, só uma parte dela, suplanta qualquer direito e garantia fundamental quando se refere a “não sociedade”, por exemplo quem habita e frequenta o sistema prisional.

Existem tecnologias que permitem identificar, sem a realização de revista vexatória, a presença de objetos e materiais que estejam sendo carregados fora ou dentro do corpo de alguém, através de equipamentos de Body Scanner. Essas tecnologias estão presentes hoje em parte do sistema prisional brasileiro, que recebe recursos do Fundo Penitenciário Nacional para a compra desses equipamentos, bem como outros equipamentos de revista como os detectores de metais e os bancos eletromagnéticos que detectam celulares também. Mas ainda não cobre todas as unidades prisionais do país, necessitando de mais investimento de recursos.

A revista vexatória tem o propósito de punir, com uma falsa justificativa de combater as drogas. Mesmo o impacto da revista vexatória em termos da suposta guerra às drogas é baixíssimo. Dados4 da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo à Defensoria Pública, publicados na pesquisa da Rede Justiça Criminal indicam que em 2012, um ano depois do fato que gerou o caso paradigmático do qual se originou o ARE em questão, das quase 3,5 milhões de pessoas que foram submetidas a revistas vexatórias em São Paulo, apenas 0,02% foram flagradas com alguma quantidade de droga ou componente eletrônico. Neste contexto, não se trata de um conflito entre os princípios da dignidade e da intimidade, e os princípios da segurança e ordem pública, não é razoável admitir que o Estado viole os corpos de milhões de mulheres em nome de uma suposta Segurança Pública que sequer se demonstra na prática.

A questão atualmente colocada ao Supremo Tribunal Federal mobiliza movimentos sociais de familiares, amigos e sobreviventes do cárcere há mais de 15 anos5, durante esse tempo houveram avanços, com a proibição da revista vexatória em diversos estados, inclusive a resolução nº 286 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de 06/10/2022 veda a revista vexatória, e mesmo em casos de fundada suspeita, é vedado o desnudamento, conduta que implique o toque ou a introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada, uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim agachamento ou salto. Estes avanços são conquistas dos movimentos sociais, fruto de muitas manifestações nas ruas e portas de presídios, e mesmo tais avanços estão ameaçados pela tese sustentada pelo Ministro Alexandre de Moraes.

O descompasso entre a interpretação dos Ministros do STF que sustentam a segunda tese com a realidade social prisional é impactante. Hoje, o centro do debate da sociedade civil organizada é a utilização adequada dos equipamentos eletrônicos de revista e também que todas as unidades prisionais tenham esses equipamentos, e não o estabelecimento das excepcionalidades que permitam a revista vexatória que desconsidera a vulnerabilidade do público que será alcançado, e principalmente se escora em uma visão "ingênua" do agente de segurança pública, de que sua atuação não é orientada pela estrutura social racista e misógina.

No decorrer da retomada do julgamento no plenário virtual do STF, em 19 de maio, havia estabelecido uma maioria de votos no sentido de prevalecer a primeira tese sustentada pelo Ministro Relator Edson Fachin. No entanto o voto do Ministro André Mendonça foi lançado incorretamente. Com isso, o Ministro Gilmar Mendes fez um pedido de destaque, implicando no recomeço do julgamento no plenário físico do STF e o debate recomeça do zero, segundo previsão dos procedimentos internos do Tribunal. Uma possibilidade processual - fundamental - em recomeçar o debate amplo de uma matéria que atinge milhões de corpos de mulheres negras e periféricas nas visitas semanais aos presídios no país.

Portanto, estamos diante de um julgamento no  STF que pode estabelecer a vedação da revista vexatória em visitantes do sistema prisional em tese de repercussão geral, promovendo a garantia da dignidade humana de milhões de mulheres brasileiras, seguindo a tese sustentada pelo Relator Edson Fachin; ou, caso prevaleça o entendimento da excepcionalidade arguida pelo Ministro Alexandre de Moraes, sem dúvidas será um retrocesso nos avanços da promoção da dignidade à essas mulheres, que tem sido empreendido pela administração pública e pelas lutas dos movimentos sociais antiprisionais. Oxalá que a Presidência do Supremo coloque em pauta a retomada deste julgamento o mais breve e que o debate constitucional também se alicerce no horizonte de quem será alcançada por esta decisão. O STF, mais uma vez, tem a oportunidade de posicionar diante de uma das tantas facetas do racismo e da misoginia. Defendemos que seja um posicionamento constitucional em defesa dos corpos das mulheres, sobretudo negras e periféricas, em defesa do direito a não violação de corpos e da saúde mental.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Exemplo é a cartilha de campanha contra a revista vexatória construída pelo Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em privação de Liberdade de Minas Gerais em 2008 e publicada em 2009, disponível aqui.

6 Disponível aqui.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.