É tema comum que a representatividade política da mulher no Brasil tem estatísticas frustrantes, sendo ainda muito distante do mínimo necessário para que os contextos parlamentar e executivo reflitam, de fato, os traços do eleitorado.
De acordo com o ranking do Inter-Parliamentrary Union, organização sediada na Suíça cujo principal objetivo é mediar o contato entre os parlamentos de Estados soberanos, o Brasil ocupa a triste posição de 131º lugar dentre 193 quadros parlamentares observados, no recorte latino-americano, está na frente apenas de Belize e Haiti1.
Para que os números fiquem mais evidentes é possível especificar o recorte trazendo-o para as últimas eleições municipais, quando o resultado mostrou que apenas 12% das prefeituras seriam comandadas por mulheres e o número de vereadoras, em que pese tenha aumentado, significava apenas 16% da vereança total no país2. Tais números ganham uma conotação ainda mais problemática quando se considera que o eleitorado brasileiro é composto majoritariamente por mulheres, que correspondem a 52,65% do total de votantes nacionais3.
São múltiplos os fatores que lastreiam essa desconcertante matemática, desde a violência política de gênero, até a sobrecarga da jornada feminina que deve cumular quase sem ajuda as tarefas domésticas e a vida profissional, passando pela falta de suporte que deveria ser dada pelos partidos políticos.
Em razão disso os mecanismos para garantir ferramentas mínimas de estrutura partidária para as candidaturas femininas vêm sendo implementados há algum tempo, não se podendo desconsiderar, contudo, as dificuldades impostas para instrumentalizá-las, originadas da estrutura social dominante hoje, ostensivamente calcada em protocolos masculinos.
Um dos marcos atuais mais importantes nesse sentido, é a decisão do Supremo Tribunal Federal que, em 2018, estabeleceu que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinado ao financiamento de campanhas eleitorais deve ser efetivada na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, respeitada, contudo, a base mínima de 30%. Tal busca por proporcionalidade se destina, como se sabe, a blindagem de um patamar mínimo necessário para que se comece a garantir o básico no tocante a pluralidade e representatividade política.
Note-se que a Lei dos Partidos Políticos desde 2009 passou a contar com dispositivo que determina a aplicação de no mínimo 5% do Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres o que, obviamente, não é suficiente a julgar pelos números e resultados eleitorais que enfrentamos.
Apesar da crescente presença feminina nos espaços de poder ainda não estar alcançando os índices esperados, em 2021 foi proposta Emenda à Constituição que previa anistiar partidos (i) que não tivesse cumprido a cota de mínima de 30% das candidaturas femininas nas últimas eleições, conforme prevê o art. 10º, §3º da lei 9.504/1997; (ii) que não tivessem utilizado os percentuais mínimos de 30% de financiamento de campanhas de candidaturas femininas; (iii) ou de 5% do fundo partidário para promoção e difusão da participação política de mulheres.
A principal justificativa para esses largos passos para trás foi a dificuldade de aplicação dos percentuais mínimos voltados às candidaturas femininas e, não obstante o texto não tenha sido aprovado com a tripla anistia acima descrita, a relatoria da PEC na Câmara, elaborou parecer para que a não obediência ao piso de 30% de candidaturas femininas implicasse sim em punição, mas concordando com a liberação da punição no tocante à aplicação do mínimo de 30% no financiamento de campanha de mulheres, e do mínimo de 5% do fundo partidário para estímulo à participação política de mulheres, considerando o reconhecimento das dificuldades pelas quais passaram os partidos políticos no período pandêmica, que teriam obstado o gasto regular dos percentuais mencionados.
Com esses ajustes a Emenda 117 de abril de 2022 nasceu como a conhecemos, com a expressa previsão de temporalidade de sua aplicação, isto é, só incidiria sobre as eleições ocorridas antes da sua promulgação.
Assim, a Emenda anistiava as siglas que não conseguiram cumprir as exigências de percentuais mínimos de financiamento em relação às candidaturas de mulheres nas eleições anteriores à promulgação, ou seja, até o pleito de 2020.
Ocorre que em 22 de março de 2023, foi protocolada na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que contava com 184 assinaturas, objetivando estender o prazo de incidência da EC 117/2022 para alcançar também as últimas eleições gerais.
Alguns signatários da proposta aduzem que pode ter havido um desrespeito ao princípio da anualidade, que define que quaisquer mudanças nas regras eleitorais devem ser aprovadas um ano antes das eleições, contudo, no presente caso a regra da anualidade está respeitada e expressa no lapso temporal definido na Emenda para sua vigência4.
Melhor dizendo, o próprio texto legal diz que a sua incidência só alcança os pleitos eleitorais que ocorreram antes da promulgação em 2022, isto é, as eleições alcançadas mais próximas seriam as de 2020, que ocorreram dois anos antes da aprovação da norma discutida.
E, denunciando a manobra argumentativa, percebe-se que é justamente o contrário, se a Emenda fosse aplicável às eleições de 2022, aí sim precisaria ter sido aprovada um ano antes, pois traria mudanças para um pleito futuro, e exigiria o tempo de conhecimento. De modo que a interpretação nesse sentido, ao que parece, se apega pouco a técnica.
Do mesmo modo o argumento de que há uma dificuldade dos partidos políticos em se ajustarem à necessidade de aplicação e repasse dos valores mínimos também é bastante precário, já que são regras vigentes há pelo menos 05 anos, e qualquer desoneração em relação a sua incidência foi claramente delimitada na EC 117/2022, que levou em conta dificuldades reais dos partidos políticos, entretanto, parece ter minimizado os obstáculos ainda maiores enfrentados pelas candidatas mulheres que, pela falta de estrutura financeira mínima saem das campanhas endividadas e sobrecarregadas5, o que gera um legítimo desestímulo de imersão na vida política, e nos mantem muito distantes do quadro de representação que precisamos para uma sociedade mais igualitária.
Sob essa perspectiva há uma facilitação para os partidos de prometerem recursos que não chegam às destinatárias e como resultado temos mulheres endividadas no processo de campanha, e exaustas pelo processo extenuante de captação de doações e recursos para manterem sua candidatura, processo este que não deveria ser a via crucis que se evidencia.
Mais uma vez, as ONGs e coletivos são protagonistas na discussão, gritando para que se faça ouvir o óbvio: falamos de milhões de reais de dinheiro público cujo uso não seguiu regras legais basilares que visam unicamente garantir um mínimo de representatividade e pluralidade em nossos quadros políticos.
Agora, a Proposta de Emenda Constitucional 9/2023 para alterar a EC 117/2022 está pendente de deliberação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), estruturada em um argumentação que, ao fim e ao cabo, valida os alicerces sexistas sobre os quais vivemos, e prioriza supostas dificuldades de quem tem envergadura de sobra para se adequar às exigências legais sem sofrimento, no caso, os partidos políticos, ao tempo que negligencia às demandas vitais de quem carece de suporte mínimo: as candidaturas femininas e de pessoas negras, também atingidas pela PEC.
Dez das maiores legendas se encontram em estado de irregularidade quanto à aplicação dos recursos destinados às candidaturas femininas6, observa-se um movimento ativo do Tribunal Superior Eleitoral para reforçar a normatização das cotas, o que gera uma aplicação razoável das sanções aos candidatos, mas em relação aos partidos tudo se torna mais “escorregadio” em razão dos frequentes “pulos” legislativos que os favorecem.
Não é cansativo lembrar que tudo é político quando se é mulher, e que a “dificuldade em se ajustar ao novo comando constitucional” trazida na justificativa da PEC 9/20237 em verdade parece esbarrar em um único conceito: a manutenção do status quo e nítida fragilização de políticas públicas criadas com esforço para incentivarem mulheres.
[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-03/brasil-esta-em-153o-posicao-em-presenca-de-mulheres-no-legislativo
[2] tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Novembro/mulheres-representam-apenas-12-dos-prefeitos-eleitos-no-1o-turno-das-eleicoes-2020
[3] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro#:~:text=A%20maior%20parte%20das%20eleitoras,com%20100%20anos%20ou%20mais.&text=O%20n%C3%BAmero%20de%20eleitoras%20tamb%C3%A9m%20%C3%A9%20maioria%20no%20exterior.
[4] https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/03/25/deputados-tentam-prorrogar-anistia-para-partidos-que-descumpriram-cotas-de-mulheres-e-negros-nas-eleicoes.ghtml
[5] https://www.camara.leg.br/radio/programas/546762-cresce-numero-de-denuncias-de-candidatas-insatisfeitas-com-os-partidos-durante-o-primeiro-turno-das-eleicoes/
[6] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/05/prestes-a-votar-mais-uma-anistia-partidos-descumprem-cotas-para-negros-e-mulheres-em-repasses.ghtml
[7] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2247263&filename=Tramitacao-PEC%209/2023