Direitos Humanos em pauta

O continuum da crise humanitária nas terras Yanomami frente a permanência do garimpo assassino

De modo algum, um ideário de morte com raízes fascistas pode subsistir aos alicerces do estado democrático de direito, na defesa da vida humana, do meio ambiente, dos direitos humanos e da justiça social.

9/5/2023

Há pelo três meses o governo federal iniciou uma ação estratégica para  a retirada de ordas de garimpeiros das Terras Yanomami situadas em grande parte no Estado de Roraima, na ocasião o Brasil e o mundo havia sido impactados pelas imagens chocantes retratando uma comunidade Yanomami, do estado de Roraima, com aspecto físico cadavérico decorrente da desnutrição agudizada1.

Importa lembrar que a eleição do presidente Lula, a criação do Ministério dos Povos Indígenas que está sob a direção de uma mulher indígena, a Ministra Sônia Guajajara, a retomada da FUNAI2 por esses povos, simbolizada na presidência da instituição por outra mulher indígena, a ex-deputada e advogada, Joênia Wapichana, representou não só para os Yanomami, mas como para todos os povos originários, comunidades tradicionais do Brasil, a sinalização de uma mudança radical nas política públicas de toda ordem para essas comunidades. Desde políticas que garantam o direito essencial à vida e à existência - na mais ampla acepção do termo - a políticas que garantam o seu direito à terra, à alimentação humana nutricional e à propriedade.

O referido anúncio do plano estratégico para retirada de garimpeiros repercutiu nacionalmente e fez com que grupos de garimpeiros se retirassem da terra voluntariamente3, contudo, recentes notícias demonstram que ainda há inúmeros grupos de garimpeiros nos territórios Yanomami fortemente armados e que não só resistem às ordens de saída, como estão atacando comunidades e assassinando indígenas desarmados e desprotegidos. No último dia 29, uma indígena Yanomami, de 36 anos, morreu e outros dois, de 24 e 31 anos, foram baleados por garimpeiros ilegais na comunidade Uxiu, dentro da Terra Indígena Yanomami4.

É demasiadamente importante que àquela crise - deflagrada pelas imagens que citamos acima - não caia no esquecimento e que a sociedade exerça seu poder de fiscalização para acompanhar e exigir a continuidade do processo de retomada das terras indígenas por quem lhe é de direito: o próprio povo indígena.

Faz-se necessário rememorar que as citadas imagens deflagraram formalmente a Crise Humanitária dos Povos Yanomami e que chegou ao conhecimento do mundo por meio de denúncias de associações indígenas como a Urihi Associação Yanomami, presida Junior Hekurari Yanomami. Porém, após visita no território, podemos verificar que essa crise já estava instalada há um bom tempo e vinha sendo sistematicamente denunciada por organizações como o CIR - Conselho Indígena de Roraima, o ISA - Instituto Socioambiental, entre outras organizações e associações de indígenas e indigenistas.

As imagens dão conta de adultos em grave estado desnutricional, e, também, inúmeras crianças e adolescentes na mesma situação terrível. Frisa-se que os corpos esqueléticos denunciavam um quadro de desnutrição agudizada - fase da desnutrição crônica em que um indivíduo pode chegar a pesar menos de 25% do peso ideal para sua estatura e idade e que leva-se meses para ser atingida, de modo que o abandono daqueles povos por meio ação ou omissão, em especial as políticas de saúde pública, assistência e nutrição era patente e decorrente de um processo de anos.

As denúncias das organizações indígenas associam o grave quadro de fome e sede ao abandono estatal das políticas de saúde e nutrição da população indígena, de preservação do meio ambiente, bem como a facilitação e incentivo ao garimpo ilegal e armado em suas terras, tanto por parte do governo federal, do então presidente, Jair Bolsonaro, quanto do governo do estado de Roraima, cujo o governador Antonio Denário foi reeleito. A Urihi Associação Yanomami afirma que a degradação contínua ao meio ambiente, envenenamento, aumento da violência dentre outras atrocidades  que os povos indígenas têm vivenciado são consequências das atividades do garimpo naquela região.

As denúncias mobilizaram a OAB Nacional e da seccional de Roraima, e a pedido de seu presidente, Dr. Ednaldo Vidal, estive em visita especial, durante o período de 30.01 a 02.02.2023, para diagnóstico e relatoria em nome da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, no mesmo período estiveram também, membros do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. E durante essa visita foi possível conhecer o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Yanomami), a sede da FUNAI de Boa Vista,  Casa de Apoio à Saúde Indígena -CASA, a equipe de secretários e secretárias do Governo do estado relacionadas a alguma política indígena, além do CIR - Conselho Indígena de Roraima, bem como participar de um processo de escuta ativa organizado pelo MDHC reunindo aproximadamente 20 lideranças indígenas que se comunicavam em diferentes línguas.

Os Yanomami ocupam, juntamente com 7 (sete) outros povos (Isolados da Serra da Estrutura, Isolados do Amajari, Isolados do Auaris/Fronteira, Isolados do Baixo Rio Cauaburis, Isolados Parawa’u, Isolados Surucucu/Kataroa, e Ye'kwana), um território de 9.665 hectares de terras, entre os Estados do Amazonas e Roraima ”5, além da fronteira Brasil-Venezuela na região do interflúvio Orinoco - Amazonas (afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro) cuja homologação da Terra Indígena Yanomami ocorrera em 25 de maio de 1992.

Conforme os dados do SESAI/DSEI Yanomami em 2019, o território é habitado por 26.780 (vinte seis mil setecentos e oitenta) indígenas, vivendo em cerca de 200 a 250 aldeias. Destaca-se que não há dados atualizados da política de saúde pública indígena desde 2019 e que, segundo a coordenação do COE- Yanomami (Centro de Operações Emergências criado pelo Ministério da Saúde), com quem dialoguei na ocasião da visita, notou-se determinada inconsistência  por parte do poder público na guarda de documentos e atualização dos dados.

 De modo que, são necessárias providências urgentes por parte do governo federal para atualização dos dados, visto sua fundamental utilização para elaboração de novas políticas para saúde pública indígena.

Além do abandono as políticas de saúde pública para indígenas nos anos anteriores, as a Terra Indígena Yanomami possui 453 (quatrocentos e cinquenta e três) processos minerários na região6, que além da exploração ilegal não somente de garimpeiros, também é vítima de caçadores, pescadores e fazendeiros.7

Por fim, ao término da visita especial e da análise de todas as informações que foram possíveis de serem coletados  o relatório da CNDDH-CFOAB apresentou inúmeras conclusões, dentre as quais destacamos: A flagrante negligência do Governo Federal anterior e do Governo do Estado de Roraima em relação à assistência de saúde pública para os indígenas Yanomami, vez que houve inúmeras denúncias realizadas  Ministério Público Federal em Roraima.

E a meu ver, o momento que mais ilustra e sintetiza tal negligência, negação e omissão ocorreu na reunião com o governador do Estado, Antonio Denarium, no dia 30.01, onde ele afirmou categoricamente que “Roraima tem o melhor e maior programa de segurança alimentar indígena já visto”, além de juntamente com todo seu corpo de secretariado afirmar desconhecer qualquer situação de desnutrição dos povos Yanomami anterior às imagens divulgadas.

Ainda que Roraima tenha um programa alimentar que alcance os indígenas cadastros e residentes em áreas urbanizadas, a fala do governador diante das imagens de corpos esqueléticos, há meses, quiçá, anos sem alimentação nutricional adequada soou como  deboche e menosprezo às inúmeras vidas de indígenas que foram perdidas e outros que estavam em vias de morrer por desnutrição acarretada de doenças evitáveis.

Causa-nos profunda tristeza e sentimento de desolação coletiva constatar que em verdade havia um projeto de mortalidade dos povos Yanomami em curso, pelas vias implícitas do governo do estado e do governo federal. 

Além disso, destacou-se o incentivo descarado ao garimpo em terras indígenas, inclusive, por vias legais (edição de leis posteriormente reconhecidas inconstitucionais), e que discursivamente facilitaram a entrada de invasores armados. Faz-se também, oportuno relembrar o cunho da política armamentista  implantada pelo governo federal de Jair Bolsonaro a partir de 2019.

De acordo com o Instituto Sou da Paz, nos últimos quatro anos foram aprovadas mais de 40 novas regras que facilitaram o acesso à armas no Brasil8, somente em 2019 cerca de 994 milhões de munição foram vendidas. Além disso, os limites foram alargados de forma exacerbada permitindo a aquisição de até 06 armas por pessoa e 1.200 munições por ano e todos os dias mais de 1.300 armas são compradas por civis.

De modo que, é inegável que a política armamentista municiou os garimpeiros para as invasões nas Terras Yanomami.

Concluímos que as graves e generalizadas violações de direitos humanos deflagradas contra os povos indígenas, violam direitos fundamentais, insertos na Carta Magna e representam afrontas gravosas a princípios e direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF/88), os direitos à vida (art. 5º, caput), à  alimentação humana adequada (art. 6º caput), à saúde (art. 6º e 196), e o direito dos povos indígenas a viverem em seu território, de acordo com suas cultura e tradições (art. 231).

Não obstante, se confirmadas as omissões e a responsabilidade do chefe do Poder Executivo federal anterior, nos processos investigatórios instaurado, poder-se-á caracterizar o crime de genocídio disposto na Lei n. 2.889/1956, na “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, por meio de atos como:

“matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.  

E ainda, em consonância  com a dogmática do Direito Penal Internacional vislumbra-se a possibilidade de subsunção dos fatos aos crimes contra a humanidade. A categoria está abarcada no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (art. 7º), internalizado pelo Decreto 4.388/2002, e que ainda não foi tipificada em nosso ordenamento jurídico brasileiro.

Uma das recomendações da Comissão Nacional de Direitos Humanos foi o pedido de ingresso, na qualidade de amicus curiae, na ADPF n. 709, ajuizada pela Articulação dos povos indígenas do Brasil – APIB e outros buscando a adoção de providências relacionadas ao combate à pandemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros, como a instalação de barreiras sanitárias para a proteção das terras indígenas dos povos de Yanomami, a retirada dos invasores nas referidas terras, a prestação de serviços do Subsistema de Saúde Indígena do SUS aos indígenas, inclusive aos não aldeados, a elaboração de plano de enfrentamento do COVID-19 e o cumprimento integral deste.

É fato que para os centros urbanos o contexto da Covid-19 está superado, no entanto, os povos Yanomami vinham sucumbido até a morte por doenças menos graves e evitáveis como a malária, verminose, pneumonia e a desnutrição, fazendo com que a referida ação, que é de relatoria do Ministro Roberto Barroso, não perdesse o objeto.

Embora no curso da referida ação, seu relator tenha concedido parcialmente medida liminar para a instalação de barreiras sanitárias no território e o governo federal atual tenha tomado determinadas providências para restabelecer a prestação de serviços da saúde pública aos indígenas, a resistência de grupos de garimpeiros invasores e seus ataques assassinos as inúmeras comunidades indígenas, para além de gerar enorme preocupação e demandar ações por parte do Ministério da Justiça e das forças de segurança competentes, simboliza um  acinte afrontoso e de extremo desrespeito ao estado democrático de direito e profundo menosprezo à vida dos povos indígenas, sua cultura e forma de se relacionar com a terra e com o mundo.

De modo algum, um ideário de morte com raízes fascistas pode subsistir aos alicerces do estado democrático de direito, na defesa da vida humana, do meio ambiente, dos direitos humanos e da justiça social.

Este texto possui dados extraído do relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos sobre a Crise nas Terras Yanomami, razão pela qual homenageamos os(as) membros(as) da Comissão que contribuíram para sua elaboração, são eles: Thais Nogueira Lopes, Adriano Braz Caldeira, Roberto Serra Silva Maia e José Araújo de Brito Neto. Estendo as homenagens a toda diretoria e membros da seccional da OAB Roraima.

__________

1 Disponível aqui. Acessado em 03.02.2023.

2 A FUNAI promoveu importante alteração em seu nome passando de Fundação Nacional do índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, renunciando ao termo atribuído aos povos originários pelo colonizador e louvando o pertencimento e origens desses povos.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL – ISA. Terras Indígenas do Brasil. Terra Indígena Yanomami. Disponível aqui. Acesso em 1 fev. 2023.

6 Idem 5.

7 Vale ressaltar que há três Unidades de Conservação sobrepostas na Terra Indígena Yanomami: Parque Nacional (PARNA) do Pico da Neblina (AM), Floresta Nacional (FLONA) do Amazonas (AM) e Parque Estadual Serra do Acará (AM), cujas competências são do ICMBio e SEMA/AM, respectivamente. (Fonte: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL – ISA. Terras Indígenas do Brasil. Terra Indígena Yanomami. Disponível em < https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/4016> . Acesso em 1 fev. 2023.). 

8 Disponível aqui.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.