Direitos Humanos em pauta

Arquitetura hostil, cidade hostil, estado hostil - A busca pela dignidade da pessoa urbana

Sociedades, por pior que sejam, carregam sua história e dela nunca conseguirão se livrar, seja boa ou ruim.

11/4/2023

Cidades não aparecem de repente. Bairros, comércios, escolas e as pessoas que os ocupam, não aparecem de repente. Nem hábitos, tão pouco vícios, qualquer um. Se assim é, também não desaparecem de repente. Sociedades, por pior que sejam, carregam sua história e dela nunca conseguirão se livrar, seja boa ou ruim. 

A violência, como um sintoma distorcido da realidade urbana, atinge os cidadãos de forma a alterar-lhes o comportamento. O medo produz alterações físicas, emocionais e psíquicas que se revelam socialmente em entender o outro como possível agressor. O medo decai a qualidade de vida e agrava-se se for transformado em raiva, pois esta se manifesta em (re)ações agressivas. Portanto, não é demais concluir que uma cidade violenta produz mais violência. Certa parcela de homicídios, lesões corporais, corrupção, depredações furtos, entre outros tipos penais, pode ser creditada ao estado caótico das cidades.

Assim, se parte significativa da violência existente nas cidades tem como causa ou consequência questões ligadas diretamente à dinâmica da gestão urbana é de fundamental importância trazer esse recorte a qualquer projeto (político, jurídico, econômico, ambiental, social, etc.). Considerando que 85% da população brasileira vive em cidades (PNAD, 2.015), ao menos esse percentual vive uma rotina de violências generalizadas, sejam concretas (físicas, materiais), sejam abstratas (olhares, silêncios, faces franzidas, negativas de empatia).

O empobrecimento da população brasileira, com agravamento da condição econômica face o cenário trazido pela pandemia de covid-19, levou novos contingentes da sociedade a viverem em situação de rua.  Morar na cidade é algo cada vez mais dispendioso, o que tem ocasionado uma retração significativa na qualidade de vida de uma parcela da sociedade. Moradores em situação de rua hoje compõe um coletivo complexo cujas origens vão de famílias despejadas, trabalhadores empobrecidos que não conseguem custear seus transportes e retornar as seus lares cotidianamente, pessoas que fogem da violência de seu núcleo familiar e social, pessoas com problemas de distúrbios mentais e também dependentes químicos, não excluindo outras possibilidades. São pessoas que perambulam pela cidade procurando lugares para estar. Aqui está presente o direito de estar, somado aos direitos de ir e vir. Dependendo de sua origem, estão em grupo, maior ou menor, ou isolados. Procuram abrigo do tempo. Os três “A” também podem ser trazidos aqui: água, abrigo e alimento que explicam sua concentração em determinados lugares da área urbana, como os centros.

Com o aumento de uma população em situação de rua nesses últimos anos assistiu-se a uma crescente tendência à instalação de elementos rijos e pontiagudos embaixo de pontes, marquises, praças e seus bancos, áreas limítrofes entre calçadas e prédios que obstruem e impossibilitam que haja acesso e permanência a esses espaços. Ficam ocupados por tais elementos e não mais por pessoas. Uma forma de afastá-las desses locais. Uma mensagem direta demonstrando que são indesejadas.

Nesse recorte, foi promulgada recentemente a lei 14.489, de 2022,  proibindo a chamada "arquitetura hostil", que emprega estruturas, equipamentos e materiais com o objetivo de afastar as pessoas — sejam moradores de rua, jovens ou idosos, por exemplo — de praças, viadutos, calçadas e jardins.  Essa técnica, segundo o texto, é caracterizada, justamente, pela instalação de equipamentos urbanos como pinos metálicos pontudos e cilindros de concreto nas calçadas com objetivo de afastar pessoas, principalmente aquelas em situação de rua (Fonte: Agência Câmara de Notícias).

Referido texto alterou a lei federal nº 10.257/01, Estatuto da Cidade, com a inclusão de um inciso no artigo 2º, conforme texto abaixo:

Art. 1º Esta Lei, denominada Lei Padre Júlio Lancelotti, veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público.

Art. 2º O art. 2º da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 2º .................................................................................................. ..........................................................................................................................

XX – promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de arquitetura hostil que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população.” (NR) Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 

Apesar de parecer uma alteração diminuta, muito há que se refletir a respeito, de maneira que o disposto acrescido seja plenamente efetivo.

Inicialmente, é fundamental trazer o foco para o locus, qual seja, os espaços livres de uso público, incluindo suas interfaces com os espaços de uso privado. Nestes termos, estão excluídas construções das edificações per si, públicas ou privadas, nos seus usos próprios e particulares.

Se por um lado há argumentos que tais locais que passam por essa intervenção têm o intuito de evitar sujeira, detritos, distúrbios em geral, por outro não é possível afastar o elemento fulcral constitucional, disposto no artigo 3º, III, que traz como objetivo fundamental da República a erradicação da pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Também vale lembrar que o objetivo de toda a política urbana é o bem-estar dos habitantes (art. 182) e que todos têm direito ao meio ambiente (urbano) ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225).

Diante do cenário aqui relatado e bem sabido por todos nós, a população em situação de rua procura lugares urbanos que possam proporcionar satisfação às suas necessidades mínimas (longe afirmar que conseguem ou que sejam dignas). Nesse ponto, importante frisar que os municípios não ofertam abrigos ou politicas públicas suficientes ou adequadas para que não permaneçam em situação de rua mesmo que emergencialmente. Quanto às políticas públicas que eliminem a necessidade de permanecer nas ruas, estão muito longe da eficiência e efetividade.

 Os programas habitacionais historicamente correm atrás de números e dificilmente efetivam o direito maior, o direito à moradia. Importante frisar que moradia é competência comum da União, Estados e Municípios, está inserido no art. 6º como direito social e deve ser lastreado em políticas de Estado e públicas. Não se prestam à discricionariedade estatal quanto ao motivo.

Quanto às outras formas de acolhimento, o que tem sido noticiado nos últimos tempos são as internações forçadas aos usuários de drogas, em um retrocesso dos marcos atingidos a esse segmento deixando claro que a exclusão desses cidadãos do cenário urbano é o ponto central. Quanto às políticas de combate à violência domestica, o suporte aos vulneráveis economicamente, o suporte aos portadores de doenças mentais, praticamente inexistem, dependendo de organizações e iniciativas sociais que se voluntariam e tentam formar uma rede de apoio aos necessitados.

O que se mostra muito claro é que a política urbana aplicada não tem sido adequada à população que mais necessita dela, com estado de vulnerabilidade de toda a ordem. Sem dúvida, o aumento da pobreza da população e os desajustes familiares e sociais não são o objeto de um Plano Diretor e demais planos e leis que o complementam, mas também não há dúvida que as consequências recaem imediatamente sobre os (des)ajustes que um plano urbanístico traz à urbe. Não à toa, a ONU declarou que o direito à cidade é direito humano e deve ser compreendido como um contexto complexo e particular à cada localidade de maneira a trazer a garantia da satisfação das necessidades básicas de sobrevivência da população.

Na sociedade urbana brasileira há um estado de colapso das políticas sociais somado aos argumentos de uma lógica liberal de menos valia que a presença dessas pessoas traz ao local onde estão. Uma equação perversa que subtrai eventuais possibilidades de redução das vulnerabilidades pela propagação da sociedade do medo. É fundamental lembrar que uma sociedade não é divisível na prática, apenas na teoria. A redução das diferenças indesejadas e indignas que recaiu sobre a população brasileira beneficia a toda a sociedade, reduz a violência, insere um contingente enorme no tecido social, legal e econômico. Gera cidadãos produtivos e, por isso, combater a arquitetura hostil é parte de um projeto maior, de um Brasil melhor. Não só.

Segundo o Relatório Brasileiro para o Habitat III ( Brasília: ConCidades, IPEA 2016, p.77) é necessária a construção de políticas públicas universais, mas com focalização nos territórios intraurbanos, como estratégia significativa contra a violência. Iniciativas nesse cenário, em particular, já existiram em nossa história recente, como a resolução nº 110 de 6/4/2010 do CNJ que institucionalizava o Fórum de Assuntos Fundiários, de caráter nacional e permanente, destinado ao monitoramento dos assuntos pertinentes a essa matéria e à resolução de conflitos oriundos de questões fundiárias, agrárias ou urbanas (revogada em 26/03/21, pela resolução nº 384).

É urgente redirecionarmos os esforços dos Poderes Estatais, assim como de toda a sociedade, para um discurso de pacificação social, de integração, de auxílio, de compartilhamento de ideias, ações, programas e orçamentos. Decifrar a logica de ocupação do território, palco permanente dos mais terríveis conflitos, urbanos e rurais, dar voz à população e ter coragem para decidir na contramão dos mecanismos consagradores de perpetuação das diferenças abissais é caminho inafastável para o país estruturar um alinhamento de crescimento de seu PIB Humano. Urge voltarmos à Constituição Federal para retomarmos o caminho da edificação de uma nação voltada para toda a sua população, enfim.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.