Direitos Humanos em pauta

Quando a quilombagem enquadra o Direito

Entre a cadência e o grito, o molejo e o enfretamento, percebemos diversas e sofisticadas formas de denúncia contra o racismo pelo povo negro.

4/4/2023

No início da década de noventa, a cadência certeira de Jorge Aragão marcava, sem tropeços, um protesto direto contra a utilização do “elevador de serviço”, afinal “somos herança da memória”1. Na década de setenta, Jorge Ben brincava com os medos presentes na memória da branquitude brasileira do mesmo como brincava com o seu violão. Trazia o ganzá para a batida do instrumento de cordas enquanto cantava “eu quero ver quando Zumbi chegar”2. Em 2023, Leci Brandão abre as alas do samba para o rap, grito sagrado e sangrento da favela, resgata a memória das vidas e dos projetos interrompidos à base de pura violência e lança a nota: “Quem mandou matar Marielle? São quatro anos sem respostas. O sistema sorri, favela chora, querem apagar nossa história”3.

Entre a cadência e o grito, o molejo e o enfretamento, percebemos diversas e sofisticadas formas de denúncia contra o racismo pelo povo negro. Formas que quase sempre apontam a fragilidade da linearidade temporal moderna, eurocêntrica, colonial. Entre uma batida e outra do surdo, entre um beat e outro, as possibilidades temporais e melódicas são múltiplas. O presente pode ser lançado ao futuro, assim como a Mulher negra que canta até o Fim do Mundo ou pode ser arrastado ao passado, por meio das páginas gastas de um Diário de Detento.

Se a racionalidade eurocêntrica, com destaque para o pensamento jurídico, assentou a separação, a dualidade mente-corpo como elementos estanques, o som que transparece do vibrar do couro no atabaque4, movimenta o corpo e fornece um substrato dinâmico, incapturável, seja nas análises sobre a formação sócio-política brasileira, seja na criação de projetos políticos que nascem e caminham a partir de um outro lugar.

A quilombagem documentalmente apresentada por Clóvis Moura5, o pretuguês sarcástico e sem rodeios transmitido por Lélia, o quilombismo aguerrido e ativo lançado por Abdias, o sagaz niger sum irradiado por Guerreiro Ramos, as lutas transatlânticas navegadas por Beatriz Nascimento, põem sobre a mesa da história brasileira um outro retrato, constituído por diversas culturas, anseios, racionalidades, formas de organização e de produção.

Daquela narrativa tradicional dos livros jurídicos, após as interpretações, os métodos, as ferramentas manejadas por esse(a)s intelectuais negro(a)s brasileiro(a)s, sobra tão pouco. Ainda mais “um pouco” tão repartido, tão cheio de lacunas e de contradições. Como diríamos no Nordeste, “um pouco” que vira “fogo de palha”, algo diminuto, cheio de promessas, vazio nas realizações.

Assim como quem escorrega na história após um repique inesperado do pandeiro de Jackson, lembremos como que o Direito, com as suas categorias e vestimentas tentou capturar a abolição e a quilombagem. Calma, ainda não desista do texto, leitores. Esse pulo no passado não fará parte daquela velha retórica jurídica, daquela longa viagem com dupla-escala, primeiro na Grécia Antiga, depois no Império Romano. A qualquer momento, mediante outro repique do pandeiro de Jackson, chegaremos ao atual momento político do Brasil e às recentes expectativas depositadas no controle jurídico e nas alterações legais.

Joaquim Nabuco, político, advogado, jurista, participante ativo do movimento abolicionista, escreveu, em 1883, uma conhecida obra sobre esse momento: “O abolicionismo”6. Em Londres, já que também foi embaixador, por volta das 17h, entre um gole e outro de seu black tea, o bondoso Nabuco de terno bem recortado, abre a sua maleta de couro, toma algumas folhas em branco e passa a discorrer sobre como o fim da escravidão deveria se dar no Brasil. Anota algumas premissas.

Primeira, não se deveria suprimir os braços negros, o Brasil seria um deserto, pobre, sem a rica matéria-prima capaz de gerar riqueza7. Segunda, era importante demarcar bem para quem a abolição se direcionava: “a propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos”8. Era salvar o Brasil, o seu desenvolvimento econômico e a cultura eurocêntrica que se buscava. Ponto.

Terceira, carecer da existência e da presença laboriosa dos ex-escravizados não deveria significar participação ativa destes na transição para o trabalho livre e, muito menos, no simulacro de sociedade republicava que começa a aparecer9.

Quarta, como a participação destes deveria ser profundamente estreita e controlada, seria a lei, defendida por advogados que possuíam uma procuração tácita10, a responsável por garantir a tranquilidade, a segurança, que o momento exigia. Embora em Londres, não poderia se esquecer jamais que os juristas, os médicos, os engenheiros e a burguesia industrial crescente necessitava de segurança, de “estabilidade institucional e econômica”. Assim, a partir do aparelho jurídico-legal, Nabuco tentou enquadrar a quilombagem. Tentou.

Se Nabuco acreditava fielmente que a liberdade era dada e se materializava no interior dos contornos legais, o povo negro sabia da falácia dessa proposição. Se sempre foi preciso garantir a sobrevivência cotidiana enquanto passos e conquistas adiante eram disputadas, historicamente, a refinada luta negra, com ginga, saberes ancestrais e maturadas cotidianas formas de resistência, jogou o jogo, dançou com o tempo, talhou e esculpiu estratégias.

Se o crime de vadiagem e os diversos “Códigos de Posturas” tentaram capturar o samba, a capoeira, a racionalidade e as festividades negras, gerando choro e sangue (fato que não podemos ignorar e esquecer), a captura por completo nunca conseguiu se concretizar. O movimento negro desordenava a estrutura. O controle social, legitimado juridicamente, que expulsava, no pós-abolição, o contingente negro para os morros, esbarrava-se na voz destemida de Zé Kéti: “se não tem água, eu furo um poço, se não tem carne, eu compro um osso e ponho na sopa, e deixo andar, deixo andar”11.

Se realmente for verdade que a Assembleia Constituinte de 1987 foi o primeiro momento em que o estado brasileiro, ainda que em conflituoso diálogo, permitiu que o povo negro pautasse as suas demandas e as tivessem parcialmente ouvidas, ele, com a desconfiança sempre presente no balançar de corpos da ginga da capoeira, alçou e conquistou garantias, proteções no interior da democracia liberal.

Sim, as garantias legais, materiais, processuais são historicamente negadas ao povo negro por um Judiciário majoritariamente e historicamente branco. A resistência negra conhece literalmente “na pele” esse cenário, não segue inerte na denúncia. De Esperança García a Luiz Gama12, passando pelos crescentes coletivos de estudantes negros que surgem nas graduações em Direito, até atual Ministro da Justiça, Silvio Almeida, o grito permanece.

Na verdade, já em 1983, o Deputado Federal Abdias Nascimento, denunciava esse painel e propunha, por meio do Projeto de Lei n. 1331/1983, uma série de políticas públicas contra esse retrato de discriminação ampla que atravessava o Judiciário, como também os outros poderes, a Administração Pública, a educação, o mercado de trabalho. O projeto foi negado e arquivado, porém nesse mesmo ano, através do swing salpicado do reggae diaspórico, Gilberto Gil lançava “Extra”. Dois anúncios se destacavam: “resta uma ilusão” e “racha os muros da prisão”.

Sim, quarenta anos após, nos debates sobre genocídio, sobre o encarceramento em massa e, mais recentemente, sobre o perfilamento racial, seguimos na luta para acelerar essas rachaduras, para desmoronar essa prisão. Quarenta anos após o Projeto de Abdias, o curso de direito da Universidade de São Paulo, com quase duzentos anos de história, teve a sua primeira turma com cotistas pretos, pardos e indígenas, formados.

De outro lado, em 2023, temos vinte anos de cotas na Universidade de Brasília e na Universidade Estadual da Bahia. Novas perspectivas, denúncias, experiências, demandas passaram a ser pautadas, exigidas pelos discentes nas universidades públicas após a Lei de Cotas. Esse diploma normativo, inclusive, é um excelente exemplo sobre a sofisticação do movimento negro no Brasil.

Se para Nabuco, em 1883, seria necessária uma legislação para frear a radicalidade da quilombagem com o fim do trabalho escravo, o movimento negro sempre esteve atento às particularidades históricas, ao cenário político e às suas alternâncias. De forma mais organizada, a partir das escadarias do Teatro Municipal em 1978, com o Movimento Negro Unificado (MNU), passou a tensionar a forma-jurídica, a pressionar o legislativo, a compreender a importância de também se corroer o sistema por dentro. É a rasteira de Mestre Bimba em Nabuco.

Após a Lei de Cotas, aqui com um particular olhar para o curso de direito, enxergamos não só pesquisadores negros nos bancos da graduação, do mestrado e do doutorado, mas já uma crescente geração de docentes negro(a)s de direito, com pesquisas consolidadas sobre quilombos, lutas diaspóricas, genocídio, letalidade policial, eugenia13.

Ainda assim, o movimento negro segue atento as diversas estratégias da branquitude para frear o ingresso desse novo corpo de docentes nas universidades públicas. Em cursos tradicionalmente ocupados pela elite branca e seus arranjos familiares/afetivos, como o direito, essa dinâmica é ainda mais evidente.  Editais que não guardam em suas vagas o percentual para cotistas negros, a não-convocação destes quando aprovados, lembremos do Caso Ilvzer Matos14, por exemplo, são apenas duas recorrentes amostras.

Apenas uma diferença de dois anos separam a Lei de Cotas para o acesso às Universidades e Institutos Públicos Federais (n. 12.711/2012) da Lei de Cotas nos Concursos Públicos Federais (n. 12.990/2014), porém a resposta para aquela pergunta “quantos professore(a)s negro(a)s de Direito você teve”, segue previsível - “nenhum(a) ou acho que um(a)”.

Dentro e fora da academia, dentro e fora dos espaços institucionais/ministeriais, dentro e fora do controle jurídico-legal, o movimento negro segue firme. Na denúncia cotidiana sobre a violência policial, na luta por moradias regulares que não desabem com as chuvas, na luta pelo resgate dos direitos trabalhistas, na luta por reforma agrária, por alimentação de qualidade. No fortalecimento das universidades públicas e do Sistema Único de Saúde (SUS), o movimento negro segue presente.

A resistência negra contornou o gatilho do revólver policial, escorreu pelas luvas dos cientistas higienistas, moveu peças com sagacidade no tabuleiro constituinte, ocupou as universidades, até mesmo os seus cursos em direito.

É a luta negra contra um sistema jurídico que sustenta os ciclos de produção e distribuição da riqueza, que legitima a branquitude. É a luta negra contra o sistema jurídico quando esse nos mata, nos exclui, nos encarcera.

É a luta negra com o sistema jurídico, quando este, ainda que cambaleante e limitadamente, nos assegura alguma possibilidade de sobrevivência e de inserção.

A memória ensina, inspira e atormenta. Não necessariamente a todos. Não necessariamente nessa ordem.

É a quilombagem enquadrando o Direito.

__________

Referência à música “Identidade”, de Jorge Aragão, do álbum “Chorando Estrelas”, de 1992.

2 Canção “Zumbi”, de Jorge Bem, álbum “A Tábua de Esmeralda”, de 1974.

Single “Favela Vive 5”, cantada por Dk-47, Lord, MC Marechal, MC Hariel, Major RD e Leci Brandrão.

4 Lembremos, por exemplo, do sagrado canto dos Tincoãs: “atabaque chora, chora também o amor em mim”. Canção “Atabaque Chora”, álbum: “Os Tincoãs”, 1982.

5 A quilombagem para Clóvis Moura seria um movimento de permanente irresignação do povo negro, uma força de desgaste significativa ao sistema escravista e às suas continuidades nas esferas políticas, econômicas, militares, jurídicas. Na sua constância e em suas ferramentas de luta estão a sua radicalidade. MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 21.

6 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Brasília: Senado Federal, 2003.

7 “Suprima-se mentalmente essa raça e o seu trabalho, e o Brasil não será, na sua maior parte, senão um território deserto, quando muito um segundo Paraguai, guarani e jesuítico”. Ibid., p. 40.

8 “A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e, além disso um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça pública, imediatamente haveria de esmagar”. Ibid., p. 44.

9 “A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade”. Ibid., p. 44.

10 Ibid., p. 37.

11 Música “Opinião”, composta por Zé Keti e interpretada originalmente por Nara Leão.

12 Por exemplo, há uma cantiga do samba de umbigada que diz assim: “Se o Luiz Gama fosse vivo, ele chorava com muita razão, porque foi ele que voltou com a liberdade e tem negro na cidade que ainda chora escravidão”. Essa cantiga e outras memórias sobre o samba de umbigada podem ser encontradas na série “Percursos da Tradição - Batuque de Umbigada”, do Sesc São Paulo. Disponível aqui.

13 Cito aqui, como sugestão, apenas quatro potentes obras desse(a)s juristas negro(a)s. “Corpo Negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”, de Ana Flauzina; “Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social sobre os negros”, de Thula Pires; “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro”, de Marcos Queiroz; “Constitucionalismo e Quilombos”, de Rodrigo Portela.

14 Ilzver Matos é um jurista negro, intenso pesquisador da luta antirracista, estudioso dos terreiros. Foi aprovado, em 2019, em 1º lugar nas cotas para professor efetivo de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Em 04 anos de luta, uma série de estratagemas, políticos e institucionais, foram utilizados para a sua não convocação e ganharam repercussão nacional. As cantoras Leci Brandão e Daniela Mercury, o ator Helio de la Peña, o teólogo e filósofo Frei Davi e o Ministro Silvio Almeida, manifestaram publicamente a sua indignação e o seu apoio à convocação de Ilzver. Recentemente, em março de 2023, Ilzver foi convocado.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.