"O estuprador é você. É a polícia. São os Juízes. É o Estado. O Presidente. O Estado opressor é racista e estuprador! O Estado opressor é racista e estuprador!"1
O grito das mulheres chilenas transcendeu fronteiras e, em 2020, chegou às ruas do Brasil sob o Governo Bolsonaro. Àquela época, Trump, Bolsonaro e outros Chefes de Estado lideravam um movimento internacional neoconservador e ultraliberal que retrocedeu nos direitos humanos das mulheres, sejam eles direitos sexuais e reprodutivos, direitos trabalhistas ou direitos aos seus territórios.
A palavra de ordem feminista, por sua vez, como nos lembra a cientista política e feminista decolonial Françoise Verges apontou o dedo para os responsáveis estruturais pelos estupros e feminicídios: a polícia e o Estado2. Em território brasileiro, portanto, nossa luta contra as violências de gênero e raça igualmente não pode se abster da crítica às violências promovidas e legitimadas por um Estado fundado no genocídio negro e indígena, onde a violência sexual é uma constante, e se furtar da necessidade de despatriarcalizar e descolonizar os espaços de poder.
O Brasil é o quinto país do mundo mais perigoso para se viver enquanto mulheres e meninas. Durante os últimos quatro anos, sob um Governo Federal de extrema direita, esse cenário se agudizou. Especialmente a partir da promoção de uma política estatal onde a manutenção do núcleo familiar se sobrepunha à titularidade de direitos de mulheres, crianças e adolescentes nos casos de violências domésticas e familiares. Tendo em vista que a maior parte das violências contra esses segmentos vulneráveis acontece dentro de casa, a destituição da sua titularidade de direitos foi também um processo de desumanização e de manutenção de uma estrutura patriarcal, racista e adultocêntrica.
O fortalecimento dos vínculos familiares precisa caminhar de mãos dadas às políticas de promoção da equidade de gênero, raça e diversidade sexual, com o reconhecimento da multiplicidade de arranjos familiares e a construção de um Sistema Nacional Integrado de Cuidados, a exemplo do Uruguai. No qual não só se garante o direito aos cuidados de idosos, crianças e pessoas com deficiência, como também se equilibram as responsabilidades sobre cuidados entre homens e mulheres.3
Se coube aos neoconservadores colocarem a família no centro da agenda de enfrentamento à violência contra as mulheres, cabe a nós dar novamente centralidade às violências de gênero e raça. Projetos que negam a importância de uma educação promotora dos direitos humanos das mulheres e meninas - como o Escola Sem Partido -, ou falsas promessas de resolver as violências armando a população civil e recrudescendo as penas para os agressores foram parte da agenda ideológica do bolsonarismo. Como decorrência dessa política estatal, 65% das mortes violentas de mulheres e quase 30% dos feminicídios, em 2021, foram cometidos por armas de fogo, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.4 Soma-se a isso um foco exclusivamente centrado na repressão a esses crimes de ódio e no pouco - ou nenhum investimento - nas políticas preventivas, evidenciada pela supressão de 90% do orçamento destinado ao enfrentamento à violência contra as mulheres nos últimos 4 anos.5
É nesse contexto que, enquanto juristas feministas e antirracistas, se impõe que façamos um debate conceitual sobre os feminicídios. Para ir além dos feminicídios íntimos - aqueles que ocorrem nas relações íntimas de afeto, relacionados ao contexto de violência doméstica e familiar - e abranger as mortes de mulheres decorrentes do menosprezo à condição de mulher.
Indo além, compreender os feminicídios como crimes de Estado desvela sua natureza política, tarefa que feministas latinoamericanas têm evocado para si. Como é o caso da socióloga mexicana Marcela Lagarde, para quem os feminicídios são genocídios contra as mulheres que decorrem da omissão e da negligência das autoridades que deveriam preveni-los, de modo que o não exercício de suas funções precípuas de proteção às meninas e mulheres resulta na manutenção da estrutura patriarcal da sociedade, fundada na dominação e desumanização das mulheres pelos homens.6
A jurista brasileira Soraia da Rosa Mendes também nomeia Feminicídio de Estado enquanto "todas as condutas dolosas, comissivas e omissivas, de agentes estatais que deem causa a mortes de mulheres em razão de desigualdade histórico-cultural do poder, construída e naturalizada como padrão e menosprezo ou discriminação ao gênero feminino" (MENDES, 2021, p.59).7 Nos deparamos, portanto, com Feminicídios de Estado quando mulheres morrem em contextos de abortamento clandestino ou violência obstétrica, quando mulheres lésbicas e transexuais morrem em razão de discriminações quanto à orientação sexual e identidade de gênero, quando meninas e mulheres indígenas são estupradas e assassinadas em seus territórios originários por agentes do garimpo ilegal, que contavam com a conivência do Governo Federal para invadir e violentar seus corpos-territórios.
De outro giro, há terrorismo de gênero do Estado8 quando este opera para a manutenção das ferramentas de dominação e hierarquização que permitem a sobrevivência dos valores patriarcais na sociedade, a exemplo da criação e manutenção de leis que expressam a misoginia interseccionada com o racismo ou quando operadores do sistema de justiça lançam mão de estereótipos machistas e racistas para desqualificar as vítimas de violências contra as mulheres nos julgamentos de seus algozes.
No âmbito do terrorismo legislativo de gênero, é digno de nota que diversos textos normativos positivaram e estimularam a violência contra as mulheres no Brasil, a começar pelas Ordenações Filipinas. Até 1830, as Ordenações Filipinas permitiam aos maridos castigarem fisicamente as mulheres (além de "criados", filhos ou escravos) desde que não utilizassem armas e o direito de matar as esposas em caso de infidelidade. Com o Código Civil de 1917, por sua vez, as Ordenações Filipinas são revogadas e as mulheres são declaradas como relativamente incapazes, junto aos “menores”, “loucos” e indígenas. Em 1932, quando sobretudo as mulheres brancas de classes abastadas conquistam o direito ao voto, seu direito político era condicionado à autorização dos maridos quando casadas e, quanto às mulheres viúvas e solteiras, apenas as que tivessem renda própria poderiam votar. As mulheres analfabetas, maioria entre as mulheres trabalhadoras e pobres, em sua maioria negras, somente iriam votar a partir de 1985.9
Mudam-se as leis, mas a racionalidade patriarcal é mantida jurídica e culturalmente. Teses jurídicas como a da “legítima defesa da honra” passam a anistiar homens que matassem suas esposas ao surpreendê-las praticando adultério. De igual forma, a caracterização de feminicídios como “crimes passionais” é evocada como atenuante dos assassinatos em contexto de violência de gênero, uma vez que os homens matariam por “amar demais” e em um momento em que estariam supostamente destituídos de sua racionalidade.
"E a culpa não era minha, nem onde eu estava, nem o que vestia!"
Indo além da positivação da misoginia, do racismo e do classismo no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso observar atentamente como o sistema de justiça investiga, processa e julga os casos de violência contra as mulheres e feminicídios.
E para isso analisaremos a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 07 de dezembro de 2021, no Caso Barbosa de Souza e seus familiares vs. Brasil.10 Assim como a maioria das vítimas de feminicídio no Brasil, Márcia Barbosa de Souza era uma mulher negra e foi assassinada, em 17 de junho de 1998, em João Pessoa pelo então Deputado Estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima.
Ocorre que entre o feminicídio de Márcia Barbosa e a finalização da persecução criminal de seu caso transcorreram 9 anos, em que a imunidade parlamentar e os estereótipos de gênero e raça foram evocados no processo investigatório e penal de forma discriminatória, equiparando Aércio ao “pai de família” e Márcia à “prostituta”, de modo a colocá-la no banco dos réus e culpabilizá-la por sua própria morte.
Em relação à imunidade parlamentar, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos entendeu que, uma vez aplicada ao caso concreto, constituiu uma violação à proteção judicial, ao princípio da igualdade e da não discriminação:
No que se refere à imunidade parlamentar, a Comissão afirmou que, apesar de que desde o início da investigação policial a responsabilidade pela morte de Márcia Barbosa de Souza foi atribuída ao senhor Pereira de Lima, não foi possível iniciar o processo penal porque a Assembleia Legislativa havia rejeitado, sem nenhuma motivação, o pedido de levantamento de sua imunidade parlamentar. Acrescentou que apenas em março de 2003 foi possível iniciar o processo contra o senhor Pereira de Lima, pois não foi reeleito como deputado. Afirmou que a imunidade parlamentar estava prevista na Constituição brasileira em termos muito amplos, motivo pelo qual, ao não cumprir os parâmetros de objetividade e razoabilidade, a norma era desproporcional e discriminatória. Por outra parte, considerou que a falta de fundamentação da Assembleia Legislativa para rejeitar os pedidos de autorização para o início do processo judicial demonstra que foram decisões arbitrárias. Considerou que a nova redação do artigo 53 da Constituição, modificado pela Emenda Constitucional N° 35/2001, continuava permitindo que o processo fosse suspenso e paralisado pela vontade dos deputados, de modo que não teria sido completamente corrigida a deficiência fundamental do caráter amplo e indefinido da imunidade parlamentar, o que perpetuaria a discriminação.
Em relação aos estereótipos de gênero no curso do processo penal, as provas testemunhais e documentais foram conduzidas para construir uma imagem de Márcia Barbosa que colocasse em xeque a responsabilidade penal do Deputado pela prática do homicídio. De forma que as perguntas às testemunhas exorbitaram os fatos e perpassaram o comportamento sexual e o suposto uso de álcool e drogas pela vítima:
Com efeito, durante toda a investigação e o processo penal, o comportamento e a sexualidade de Márcia Barbosa passaram a ser um tema de atenção especial, provocando a construção de uma imagem de Márcia como geradora ou merecedora do ocorrido, e desviando o foco das investigações através de estereótipos relacionados com aspectos da vida pessoal de Márcia Barbosa, que por sua vez foram utilizados como fatos relevantes para o próprio processo.252 O fato de que era uma mulher representou um fator facilitador de que "o significado do ocorrido se construa com base em estereótipos culturais gerais, ao invés de concentrar-se no contexto do ocorrido e nos resultados objetivos apresentados pela investigação".253 147. Com efeito, nas diversas declarações testemunhais tomadas no curso da investigação policial e no processo penal, nota-se a reiteração de perguntas sobre a sexualidade de Márcia Barbosa. De igual modo, foram identificadas perguntas sobre o consumo de drogas e álcool. Por sua vez, o exame químico toxicológico levado a cabo nos primeiros dias das investigações, paralelamente à autópsia, havia registrado uma quantidade insignificante de substâncias em seu sangue, o que permitiria à senhora Barbosa de Souza manter suas faculdades normais de reflexos.254 Nesse sentido, a perita Soraia Mendes afirmou que, das 12 testemunhas ouvidas, sete conheciam a senhora Barbosa de Souza e a todos lhes foi perguntado sobre o possível uso de drogas por parte de Márcia, e a duas sobre sua sexualidade.25 (grifamos)
Essa foi a primeira condenação do Estado brasileiro, pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em um caso de feminicídio. Na sentença, foi reconhecido que o sistema de justiça brasileiro não investigou e julgou a partir de uma perspectiva de gênero. E, de igual forma, que houve violação da integridade psíquica de seus familiares, pois o assassinato decorreu de um ato de violência e as falhas e atrasos na persecução criminal representaram uma denegação da justiça.
Como reflexo da condenação do Estado brasileiro no Caso Barbosa de Souza e familiares Vs. Brasil, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 128/2022, de modo a orientar que o processamento e julgamento de mortes de mulheres decorrentes da violência de gênero e raça sejam analisadas pelo sistema de justiça a partir de sua componente estrutural, qual seja, a desigualdade de poderes e direitos entre homens e mulheres na sociedade brasileira.11
É preciso que nós, juristas feministas e antirracistas, endossemos a necessidade de responsabilização do Estado e dos agressores pelos casos de violência contra mulheres e feminicídios. Em um primeiro momento, expondo a permanência colonial de uma estrutura patriarcal racista que, desde as Ordenações Filipinas, legitima no ordenamento brasileiro a dominação masculina e o assassinato de mulheres por razões de gênero e que, ainda hoje, se perpetua em teses jurídicas misóginas.
É colocando o Estado no banco dos réus, por fim, que podemos cobrar políticas públicas eficazes para que as mulheres rompam com o ciclo de violência e sigam vivas. E, em casos de óbitos, que seja resguardado o direito das vítimas e de seus familiares a um julgamento não revitimizador.
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1 Performance O estuprador é você - el violador eres tú - São Paulo - YouTube.
2 VERGÈS, Françoise. Uma teoria feminista da violência. São Paulo: Ubu Editora, 2021, p. 9.
3 Sistema de Cuidados. Disponível aqui.
4 Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Disponível aqui.
5 Revogaço: reverter a destruição do Governo Bolsonaro. Disponível aqui.
6 Abordagem conceitual e tipológica de Feminicídio.
7 MENDES, Soraia da Rosa. Feminicídio de Estado: a misoginia bolsonarista e as mortes de mulheres por COVID 19. São Paulo: Blimunda, 2021, p.59.
8 Terrorismo de Gênero e Feminicídio: contribuições teóricas para o estudo do assassinato de mulheres em Vitória-ES (2007-2010). Disponível aqui.
9 Na época do Brasil colonial, lei permitia que marido assassinasse a própria mulher. Disponível aqui.
10 Sentença Caso Barbosa de Souza e Outros Vs. Brasil. Disponível aqui.
11 Recomendação CNJ nº 128, de 15 de fevereiro de 2022. Disponível aqui.