Direitos Fundamentais

Klara Castanho: A cultura do cancelamento ataca novamente

O que é de direito de alguém não deveria ser o incômodo de ninguém.

28/6/2022

A última pataquada da internet é o caso Klara Castanho. Ela é uma atriz, de 21 anos, que teve que se justificar na internet o fato de entregar o seu filho à adoção. Segundo a atriz, ela teria sido vítima de estupro. Como a gravidez foi descoberta tardiamente, ela resolveu entregar a criança à adoção.

Em sua carta, ela diz: "Não posso silenciar ao ver pessoas conspirando e criando versões sobre uma violência repulsiva e um trauma que sofri. Esse é o relato mais difícil da minha vida. Pensei que levaria essa dor e esse peso somente comigo. Relembrar esse episódio traz uma sensação de morte, porque algo morreu em mim. Não estava na minha cidade, não estava perto da minha família nem dos meus amigos".

Ela não fez o boletim de ocorrência por se sentir envergonhada e culpada, o que é um direito dela. A atriz teria o direito de realizar o aborto ou entregar a criança à adoção. O direito protege ambas as hipóteses.

O que é de direito de alguém não deveria ser o incômodo de ninguém. Se grupos querem mudar a legislação (acredito que este não seja o caso), que façam isso com base na lei abstrata, e não em casos concretos.

No entanto, em nossa sociedade líquida decadente, a atriz teve que explicar os motivos de se valer do direito de entregar a criança à adoção. Isso porque uma dupla de influenciadores resolveu cancelá-los. Eles criticaram a atriz pela sua escolha de entregar a criança à adoção. Esse não seria o ato de uma "boa mãe".

A partir daí, a cultura do cancelamento já estava ativa. Ela nada mais é do que a volta à barbárie. Arrogantes, cremos hoje que os princípios penais e processuais penais não servem de nada. Na nossa cultura são meros detalhes jurídicos. Julgar é fácil. Basta ir contra alguém que praticou um ato polêmico juntando-se à multidão. Quando abrimos mãos dos nossos princípios, chegamos mais rápido ao fundo do poço.

A atriz, então, escreve a derradeira carta. Os canceladores mudam de lado. Iniciam o ataque contra os influenciadores, exigindo a sua imediata destruição. Sem saber, de novo, as circunstâncias pelas quais tudo aconteceu.

Está claro, nesse caso, que Klara Castanho está correta. Não merecia passar pelo que passou. Mesmo que não tivesse sofrido nenhuma violência, essa é uma decisão de foro íntimo. Se uma mulher não se sente em condições de ser mãe, ela tem a opção de entregar a criança à adoção. Isso é uma bandeira que agrada tanto quem é pró-vida quanto quem é pró-escolha.

Mas, então, por que essa polêmica se iniciou? Vivemos em uma cultura do linchamento, que é temperada há anos por programas de fofocas, como Big Brother Brasil, Fazenda, etc.

A cultura de massa pode despertar o que há de pior em nós. Desistimos do direito. Queremos vingança. Esse é um dos sinais do nosso declínio civilizacional. Princípios já não são tão importantes. Para atingir uma justiça imediata, fast-food, queremos cancelar todos que agem fora do nosso padrão. Queremos julgar. Infelizmente, queremos sangue.

Se a cultura do cancelamento não tivesse tão forte, Klara não teria que se explicar publicamente, porque não teria sido criticada. E, mesmo se fosse, não haveria tanta repercussão. Esta é a raiz do mal: o linchamento público.

Enquanto não vencermos essa aberração, viveremos numa cultura que maltrata e pune inocentes, julgando por notícias, perspectivas, ouvi dizer. Homens e mulheres, todos são vítimas das acusações falsas da cultura do cancelamento.

Justiça é para ser feita com devido processo legal. Não pela mídia; não pelas redes sociais. Já são anos de acusações irresponsáveis, só para descobrirmos depois que elas eram falsas ou que as coisas não eram bem assim.

Inexistem atalhos. Não dá pra fazer justiça sem processo. Sem acalmar os ânimos e dar espaço para cada um expor o seu ponto, apresentando provas e tendo alguém muito bem treinado pelo julgamento.

Vivemos em um mundo em que todos se acham juízes. Narcisismo: indica que nos sentimos superiores aos outros. Pobre mundo, que precisa tanto de defensores, mas só ganha julgadores.

Cancelar menos, amar mais. É a minha sugestão. Afinal, "o amor é paciente, o amor é bondoso, não inveja, não se vangloria, não se orgulha, não maltrata, não procura os seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade".

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Colunista

Igor Pereira,pós-doutorado na Universidade da Califórnia - Berkeley. Doutor e mestre em Direito pela UERJ. LLM pela Universidade da Califórnia - Berkeley, com certificação em Justiça Social e Direito Empresarial. Já lecionou na UERJ, UFRJ e em outras universidades. Fundador do Grupo DDP - Direitos Humanos, Desconstrução e Poder Judiciário. Membro das Comissões de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e da Associação Brasileira de Advogados (ABA). Membro da AILA - American Immigration Lawyers Association e da ACS - America Constitution Society. Autor dos livros "Princípios Penais" e "Tráfico de Mulheres" (no prelo), pela Editora Fórum. Possui premiações nacionais e internacionais. Instagram: @igornomundo ou @novodireito