Eu fiquei escandalizado com a cobertura que a imprensa fez da morte da Marília Mendonça. Foi um trabalho mal feito. Com a lacração, desta vez, construindo uma personagem da cantora, como se ela fosse uma heroína genérica hollywoodiana.
"Aquela que falava da força da mulher", "aquela que conquistou um lugar dominado por homens", "a exterminadora do privilégio masculino", etc. Bordões superficiais, que a estereotipam e não fazem justiça ao que ela foi.
Antes de tudo, cantava bem sim. A música dela é conversacional. Não era pra ficar inventando melismas e exibir potência vocal. Uma crítica assim é ignorante, porque não sabe relacionar os esquemas vocais à proposta da arte. É como se escrevesse que o Cazuza cantava mal, porque não atingia os agudos do Bruce Dickinson. Não tem cabimento. É ignorância.
Marília foi a maior perda de 2021. É um fenômeno dificílimo de se refazer. Ela foi fruto do nosso tempo, mas não foi dominada por ele. Quando o desconstrutivismo social anticientífico chegou querendo pautar a sua vida, ela o driblou. Quando a ordem foi vender uma mulher forte, ela simplesmente ignorou.
Ela fez o que precisava ser feito. As mulheres estão sofrendo. Não tem heroínas em um país em ruínas. Não tem mulher-maravilha. Tinha Marília. Não era sobre ser a rainha da sofrência; era sobre comunicar o sofrimento.
Mas não era pra ficar lá sofrendo. Nem era essa coisa cadavérica e desumana de tentar controlar os homens e transformar as mulheres. Era algo responsável, como deveria ser qualquer boa política de gênero. Ao menos, como deveria ser em qualquer país com overdoses de exploração sexual feminina e extermínio de meninos.
Era sofrer para ganhar consciência, assumir para si a responsabilidade, levantar e seguir em frente. Coisa simples. Mas tudo era parte de uma conversa. A música dela é relacional, por isso bateu forte no coração das mulheres.
Marília tinha uma coisa mais essencialista. Ela se preocupava em conversar com a mulher. Falava com elas e dava umas dicas nada vitimistas. Em Supera, "Outra vez. Você não aprende mesmo, hein". E continua, sem afundar o sofrimento nos relacionamentos líquidos: "Para você isso é amor, mas para ele não passa de um plano B. Se não pegar alguém da lista, liga pra você. Te usa e joga fora. (...) De mulher pra mulher, supera".
Nas músicas dela, existe um amor forte por trás. Algo que vai além da pele, do corpo, do sexo, mas que às vezes não dá certo. Por isso, supera. Mas essa chama volta nas outras músicas e se renova, porque a gente precisa superar o passado, os traumas, a dor, justamente para não desistir dessa dimensão tão importante das nossas vidas, que são os relacionamentos afetivos.
A gente tem que aprender, né? Não há superação, sem aprendizado ("você não aprende mesmo, hein").
Marília conversava com os homens também. Em "Infiel" e "Vira Homem", comunicou o problema da traição masculina, que machuca tanto as nossas mulheres (e vice-versa, porque traição é mau quase-absoluto; não moeda de vingança). O homem também precisa aprender a assumir as suas responsabilidades, então "assuma as consequências desta traição".
Amor não é competição. Não competimos entre nós e nem para ter alguém que está fora do nosso alcance. Afinal, quem está fora do nosso alcance, não é pessoa pra gente ser feliz. Se "voltou a falar com ela", então "não fez nada do que prometeu". Precisa sumir, porque amor é compromisso com base na verdade da reciprocidade.
Ela foi uma longa conversa, como seria bom ver os seus conselhos envelhecerem. Mas o que Deus dá, Deus tira e é preciso aceitar. A vida é aceitação. Em "Foi Por Conveniência", foi didática: "Não foi por amor. Foi por medo de morrer sozinho, pressão da família, foi tudo menos isso que chamam de amor".
Marília foi resistência, porque se recusou a celebrar a morte do amor. Ela veio falar a verdade sobre a importância dele. Amor é bom, intenso, mas tem que ser recíproco e vem acompanhado do risco do sofrimento. É importante aprender a amar e reconhecer o amor no outro, para que a gente possa entender e superar a falta, os abusos, e seguir em frente.
"Rosa Embriagada" não foi sobre a liberdade da mulher beber, como alguns insinuaram apressadamente: "Hoje ela era mais uma entre tantas por aí, que procura na bebida um motivo pra sorrir. Trocou a felicidade pelas falsas amizades, parece que só agora caiu na realidade".
Ela veio pra conversar com a gente, principalmente com mulheres, e educá-las sobre relacionamentos. Era sobre ter cuidado, precaução, carinho e respeito.
Marília era sobre responsabilidade. O seu último recado também foi assim: tinha tantas delícias para comer, mas ela tinha o compromisso de manter a dieta.
Infelizmente, a morte precoce dela significa o perigo de toda essa conversa se perder. Precisamos manter a chama dela acesa.
A melhor maneira de lembrá-la é continuar indo na contramão. Keep going. Feminismo marginal daí e white pill daqui. Não nos renderemos à horrível condição dos relacionamentos humanos contemporâneos. Não vamos destruir a ponte! Se for tarde demais para nós, lutaremos pelas próximas gerações.
Eu sinto muito.