O impeachment brasileiro é híbrido, porque o Congresso Nacional pode entender como crime de responsabilidade praticamente qualquer ato presidencial que lhe desagrade.
A Constituição e a Lei do Impeachment não definiram, de modo útil, o que é crime de responsabilidade. As definições são pouco úteis, abertas, sem taxatividade. Como o crime de responsabilidade é uma infração político-administrativa, e não penal, não é possível, a princípio, aplicar o princípio da legalidade estrita para considerar parte da Lei do Impeachment como não-recepcionada pela Constituição de 1988.
A Constituição diz que é crime de responsabilidade ato do presidente da República que viole a probidade da administração. Um dos atos que violam essa probidade, segundo a Lei do Impeachment, é o presidente proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.
Outra disposição ampla é aquela que diz ser crime de responsabilidade ato do presidente que violar patentemente qualquer direito ou garantia individual, constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição.
Sob uma perspectiva pragmática, o Congresso Nacional tem poder amplíssimo para retirar o presidente do cargo.
O termômetro mais útil para medir o risco do impeachment é aquele que considera os apoios popular e congressual do chefe do Poder Executivo. Se o presidente perder esses apoios, ele está em risco de impeachment e o resto dependerá da conjuntura política. Sob uma perspectiva pragmática, o impeachment brasileiro é um (quase) recall.
Sendo assim, por que o impeachment do Bolsonaro não aconteceu?
Tenho em mente os seguintes fatores:
a) Saúde pública: A oposição política a Bolsonaro está comprometida com as recomendações científicas contra a Covid-19. Convocar manifestações de massa em um contexto de pandemia seria uma contradição. O presidente fica, então, blindado às demonstrações de perda de apoio popular;
b) Esquerda fragmentada: As esquerdas hoje precisam lidar com dois tipos de políticas complexas, as de redistribuição e as de reconhecimento. As políticas de reconhecimento são aquelas relacionadas à esquerda identitária. São minorias que não buscam apenas acesso às políticas sociais, mas também reconhecimento nos espaços públicos e privados. Só que as identidades são tão múltiplas, que se chocam, causando desagregação. Isso fez com que a esquerda se enfraquecesse;
c) Ausência de amor político: A oposição não conseguiu produzir um discurso agregador, que unisse identidades distintas em torno de pautas comuns. A multidão não se fez no Brasil ainda. Como diria Antonio Negri, não temos uma multiplicidade de singularidades, unidas em torno da democracia. Essa força política de oposição democrática ocorrerá, quando trabalharmos as bases políticas em torno de ideais humanitários, que envolvem, principalmente, discursos positivos de amor;
d) Gêneros em crise: As relações entre homens e mulheres estão tensas. Essa tensão provocou uma divisão política sem precedentes entre os gêneros. Não é que os homens sejam "mais de direita", mas sim que a direita conseguiu produzir discursos que endereçaram, de modo torto, questões importantes para eles. Por parte dos homens, há medo envolvido e egoísmo em face da perda de privilégios, mas seria superficial e perigoso analisar as questões de gênero apenas por esse lado;
e) Projeto conservador: A direita brasileira criou um projeto conservador em torno de identidades sólidas. A esquerda não conseguiu isso, porque está fluida, pós-moderna e sofre de crises intelectuais devido ao autoritarismo político. Esse projeto conservador é capaz de unir diante das divergências, enquanto a esquerda desagrega mesmo quando a união é urgente.
Para tornar a situação ainda mais complicada, Bolsonaro não perdeu o apoio congressual, pois ocorreu, finalmente, a sua previsível aliança com o Centrão. Nessa conjuntura, o impeachment é improvável.