Cotas raciais
O recente feriado celebrando a consciência negra sugere reflexões sobre a discriminação e as ações afirmativas.
Em 1826 foi proibido o tráfico de escravos; em 1871 tivemos a Lei do Ventre Livre; em 1885 a Lei do Sexagenário e, em 1888, a Lei Áurea aboliu a escravidão, verdadeira mancha em nossa história que ainda hoje cria preconceito e conflitos.
No Brasil a discriminação racial, após a abolição da escravidão negra, foi proibida pelo ordenamento jurídico, ao contrário do que se viu nos EUA, Africa do Sul, Índia e outros países.
O princípio da igualdade e a proibição do racismo figuram em todas as Constituições desde 1891, assim como na legislação ordinária, combatendo o preconceito, a diferença de salários e de critério de admissão por motivos raciais, dentre outros.
É bem verdade que o Código Penal da República, de 1890, qualificava a capoeira como contravenção penal, uma forma de discriminação indireta contra os afrodescendentes.
A Lei Afonso Arinos, de 1951, foi pioneira no plano infraconstitucional, tipificando a contravenção penal de recusar, negar ou obstar a entrada de pessoas em hotéis, restaurantes, bares e escolas por preconceito de raça ou cor.
O Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 proibiu a difusão de campanhas que promovessem discriminação de classe, cor, raça ou religião.
O decreto-lei 314/1967 (segurança nacional) qualificou como crime a incitação pública ao ódio ou à discriminação racial prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.
Em 1968 o Brasil ratificou a Convenção Internacional para Erradicação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
A lei 5.250/67 reprimiu a difusão do preconceito de raça e a lei n. 6.620/78 puniu a incitação ao ódio ou discriminação racial.
A lei 7170/83 declarou crime a propaganda de discriminação racial, com detenção de 1 a 4 anos.
Muitos textos posteriores trataram do tema, completando o acervo de normas repressoras do racismo.
Mas não basta a legislação punitiva. É indispensável um esforço de promoção das pessoas discriminadas em razão da cor ou etnia para terem acesso a condições dignas de vida, de estudo e trabalho.
Para atingir esse objetivo se fazem necessárias ações afirmativas que criem novas desigualdades para compensar a não-equivalência de oportunidades.
Desde 2022 está em vigor no Brasil a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Dec. 10932/22).
Em seu artigo 1º, 5, dispõe que “as medidas especiais ou de ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de grupos que requeiram essa proteção não constituirão discriminação racial, desde que essas medidas não levem à manutenção de direitos separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma vez alcançados seus objetivos”.
É indispensável a correção de desigualdades de tratamento decorrentes da raça ou etnia, devendo ser implantada gradual e proporcionalmente.
A propósito, na última sexta-feira (24.11.23) foi publicado acordão do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região confirmando a improcedência da ação civil pública que investia contra o conhecido programa de trainees da Magazine Luiza endereçado exclusivamente a pessoas negras[1]. Outras empresas também tem iniciativas semelhantes, como a NATURA.
A fixação de cotas raciais implementa a igualdade e a diversidade, mas é preciso evitar excessos que podem estimular novas desigualdades e preconceitos. Por exemplo, deveriam as equipes de basquete ou futebol ter equivalência de brancos e negros ? Os cursos de letras deveriam ter mais asiáticos (que tendem a ciências exatas) ? Deveria haver mais espaço para homens nos cursos de enfermagem?
Outro problema é tratar a desigualdade onde, a rigor, ela não existe dolosamente. Pode haver critérios objetivos de contratação absolutamente legítimos mas que na prática dificultem a contratação de pessoas negras, como, por exemplo, a existência de vagas restritas a egressos de determinadas universidades. Por isso é preciso examinar a questão racial de forma ampla, inclusive com campanhas para redução de estigmas e programas para fomentar o acesso ao ensino.
A igualdade não é um estado de fato, mas um ideal a ser perseguido com sabedoria e clarividência.
Princípio da Igualdade
O princípio da igualdade se consolidou no curso da história, apesar de trágicas rupturas no século XX e o genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Estes não tinham direito à vida e nem à morte porque simplesmente desapareciam nos campos de extermínio, como lembrou HANNA ARENDT.
Após as brutais violações entre 1939/1945, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, foi uma reação natural e indispensável para a reafirmação dos direitos humanos em escala universal.
A partir dos anos setenta do século passado os direitos humanos foram assumindo uma dimensão política de contestação e de protesto contra o “status quo”.
Sabe-se que direitos humanos são axiologicamente mutantes por abrigar valores contraditórios, que se tensionam reciprocamente. Estão em permanente processo de construção, como uma obra inacabada.
É aparentemente paradoxal que os direitos humanos proclamem a igualdade de todos e, ao mesmo tempo, o direito à diferença.
Mas o que se poderia chamar “direito à indiferença” significa tratamento justo, compatível com as identidades e diferenças, no confronto com os demais.
No famoso Hooters Case, a Suprema Corte americana considerou discriminatória a conduta de um restaurante ao somente contratar jovens garçonetes, com roupas provocantes. O proprietário alegou que vendia “sex appeal” feminino e seus clientes não procuravam apenas hamburgers, mas também eram atraídos ao ambiente criado pelas jovens.
Em sua decisão, a Corte decidiu que, podendo o restaurante vender igualmente “sex appeal” masculino, era injustificável e discriminatório o critério de seleção, inclusive em razão do objeto da empresa.
Aqui surge questão delicada. Um restaurante japonês ou africano que não contrata brancos está a praticar discriminação ? À luz da jurisprudência norteamericana, seria discriminatória essa conduta.
Na verdade, por vezes a preocupação com a igualdade de oportunidades se choca com dois valores fundamentais: liberdade e igualdade.
Fórmulas muito rígidas de impor igualdade se arriscam a assumir feição stalinista, de péssima lembrança.
A discriminação se configura quando há diferenças para o exercício de direitos com base em critérios injustificados como raça, sexo, idade, religião, opção sexual e outros.
É uma forma de preconceito contrário à ordem jurídica. Equivale a racismo, xenofobia, intolerância com as diferenças.
A exteriorização do preconceito configura frequentemente ato discriminatório, pior ainda quando o critério é injusto e arbitrário, gerando exclusão, eis que igualdade e discriminação se articulam dialeticamente.
Discriminação equivale a exclusão.
A relação de emprego enseja práticas discriminatórias. Segundo a OIT, o ambiente é ponto de partida estratégico na luta pelo trabalho decente e o combate à exclusão.
Há discriminação quando se impede a contratação ou a continuidade do trabalho por motivo arbitrário: raça, cor, etnia, sexo, deficiência física ou mental, orientação sexual, religião, estado civil, vício, desemprego, ideologia política, nacionalidade, ação trabalhista, participação sindical, aparência física e outros.
Fala-se também na discriminação genética quando se obsta a contratação em virtude de certas comorbidades ou predisposições.
Algumas práticas não se consideram discriminatórias quando afinadas com a tradição e a cultura. A OIT aceita a filiação política como critério para a escolha de dirigentes de entidades estatais, assim como a prática de determinada religião para exercer o magistério em escolas religiosas.
Reconhecer méritos do empregado não constitui medida discriminatória. Coisa diversa é a prática - vigente em algumas multinacionais - de reservar cargos superiores para estrangeiros.
Várias convenções da OIT tratam da matéria (27, 87, 98, 100, 105, 111, 138 e 190). A Convenção 111, que define as formas de discriminação no emprego, é aplicada de forma extensiva para alcançar qualquer trabalhador.
Há duas técnicas de combate à discriminação: normas de repressão e ações afirmativas ou positivas que. segundo a doutrina da OIT, devem ser previstas na lei ou na negociação coletiva.
A discriminação inversa está em nossa Constituição, sendo uma escolha política do legislador constitucional, e leis ordinárias contemplam a ação afirmativa no âmbito das relações de emprego, como a lei 8.213/91 (cotas para trabalhadores reabilitados e portadores de deficiência) e os artigos 373A e 390 da CLT (incentivo ao trabalho da mulher).
As ações afirmativas criam tratamento desigual e diferenciado para promover a igualdade. Não protegem o indivíduo e sim o grupo a que pertence, favorecendo a inclusão.
Certos regimes de cotas são absolutamente necessários para compensação de um passado de injustiças.
A situação de desequilíbrio, mesmo que cesse a conduta discriminatória, tende a se perpetuar quando não se inverte o processo, beneficiando a quem antes foi discriminado.
Devem coexistir a proibição da discriminação e, paralelamente, as ações afirmativas. Estas últimas são medidas compensatórias que tem como pressuposto inverso os mesmos fatores que geraram a discriminação.
As ações afirmativas são de dois tipos:
a) moderadas
b) discriminação inversa
As moderadas não afetam o direito de terceiros, ao passo que a discriminação inversa pode causar lesão de direitos. Para a Suprema Corte norteamericana deve haver adequação constitucional e proporcionalidade (“narrowly taylored”).
Deficientes físicos
Em se tratando de deficiência física, as medidas de proteção não se conceituam, tecnicamente, como ações afirmativas, mas sim como igualação positiva.
Isto porque a desigualdade material que se visa a corrigir é puramente individual, não tendo relação direta com grupos.
São exemplos de igualação positiva as bolsas de estudos e o imposto de renda progressivo. Busca-se reduzir diferenças individuais, objetivas, atemporais e incontestáveis.
Na discriminação positiva, diferentemente, as medidas sempre se destinam a uma coletividade ou grupo com afinidade étnica, linguística, cultural etc.
Não há dúvida de que os deficientes podem ter alta qualidade e produtividade no trabalho. Uma distribuidora de materiais de escritório contratou dezenas de deficientes auditivos para seleção e embalagem de produtos.
Uma agência dos correios reduziu erros na distribuição das correspondências ao contratar deficientes auditivos, que têm grande capacidade de concentração.
Um laboratório admitiu deficientes visuais para trabalho na câmara escura de raio-x.
Uma fábrica reservou posições na linha de produção para trabalhadores cadeirantes.
Essas esperiências são reveladoras da importância de oferecer dignidade e oportunidade ao deficiente.
No Brasil os órgãos públicos não costumam fazer sua parte: cidades não tem rampas, rebaixamento de calçadas, transporte coletivo adaptado e outros equipamentos urbanos, sendo omisso o Estatuto das Cidades (lei 10257/2001).
Grande número de deficientes é vítima da má distribuição de renda, miséria, desnutrição e má qualidade do serviço de saúde pública.
De todo modo, cabe às empresas adequarem as instalações aos portadores de deficiência. A legislação criou para o deficiente um novo paradigma ergonômico envolvendo processos produtivos, métodos, sistemas, instalações e equipamentos.
Alguma crítica se pode fazer à rigidez e inflexibilidade das regras. Atividades aparentemente incompatíveis devem cumprir cotas de deficientes, tais como vigilância, trabalho em minas, subsolo e atividades de alto grau de insalubridade.
A lei fixa uma base de cálculo (número total de empregados), sem margem a flexibilidades, mas a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho tem afastado as condenações em indenizações e multas quando as empresas demonstram o não-atingimento apesar de efetivos esforços2.
Há também quem proponha a desterceirização de atividades acessórias, como conservação, limpeza, telemarketing, informática etc., para abrigar deficientes.
Várias empresas cogitam reavaliar as condições físicas dos empregados para inclusão na cota.
Enfim, são algumas reflexões sobre igualdade, não-discriminação, ações afirmativas e igualação positiva que nos parecem atuais e pertinentes.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.