Confundir, desinformar, tergiversar. Lamentavelmente essa prática tem contaminado muitos debates importantes da atualidade, especialmente os mais caros à democracia.
O tema do custeio sindical imbrica com a sobrevivência dos sindicatos, com o equilíbrio nas relações entre capital e trabalho. Conecta-se também, na outra ponta, com a chamada liberdade sindical individual.
Todos assistimos a grande profusão de notícias sobre a reviravolta no STF no tema das contribuições assistenciais (Tema 935 de repercussão geral1). Muitas delas denunciam o retorno do imposto sindical, extinto pela Reforma de 20172.
Na verdade, o que houve foi uma inversão na ordem de fatores.
A lei exige autorização individual prévia para qualquer desconto em folha de contribuição sindical.
O Supremo Tribunal Federal, nessa reviravolta, admitiu a previsão de contribuições assistenciais, desde que assegurado, prévio ou posterior, o direito de oposição.
Ao assim decidir, além de contrariar jurisprudência acerca das contribuições assistenciais, entrou também em testilhas com o recentemente decidido na ADIn 5794 (outras apensadas) e em incontáveis reclamações trabalhistas dela decorrentes3.
Outro detalhe importante e omitido ou distorcido em muitas notícias: salvo melhor juízo, em nenhum momento o Supremo Tribunal Federal afirmou que tal contribuição pode ser exigida mediante desconto em folha para repasse aos sindicatos.
A propósito, bem ao revés, o artigo 611-B, XXVI, da CLT diz serem ilícitas cláusulas que violem a “liberdade de associação profissional ou sindical do trabalhador, inclusive o direito de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”.
A rigor, portanto, independentemente da comprovação de eventual oposição, os empregadores podem invocar essa norma legal e recusar desconto em folha previsto em norma coletiva, pois se trataria de cláusula com objeto ilícito. Muitos, entretanto, não têm esse interesse pelas razões que apresentaremos mais adiante.
Os exageros logo afloraram.
Antes mesmo da publicação do novo acórdão do STF, muitos sindicatos se arvoraram o direito de exigir contribuições retroativas.
Alguns repetiram o passado: criaram mecanismos para dificultar ou impedir a oposição formalmente prevista, inclusive mediante violência. As próprias centrais sindicais tentaram frear tais abusos, subscrevendo em 28 de setembro de 2023 um “Termo de Autorregulação”4.
Em paralelo, houve a criação pela Presidência da República de grupo de trabalho integrado por representantes do governo e de entidades sindicais para “elaborar proposta legislativa de reestruturação das relações de trabalho e valorização da negociação coletiva” (decreto 11.477/23).
Esse grupo está construindo anteprojeto de lei que admitirá a imposição de uma contribuição - agora chamada negocial-, desde que aprovada em assembleia sindical e sem direito de oposição individual. Com todo o respeito a seus integrantes, há um vício de origem no grupo, pois composto por representantes das partes diretamente interessadas no custeio.
Em resposta a tudo isso tramita de forma embrionária no Congresso Nacional projeto de lei que cria mecanismos para evitar abusos e entraves à oposição individual (PL n. 2099 de 20235).
A sociedade assiste a esses embates, às idas e vindas e às fake news sem entender o que está realmente em jogo.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que soluções para o custeio sindical interessam também ao setor patronal. O estrangulamento das receitas teve consequências práticas indesejáveis para todos.
Muitas negociações de convenções ou acordos coletivos simplesmente foram entravadas pela recusa a cláusulas proibidas na lei.
Tendo o STF - até então - confirmado o fim da contribuição compulsória, assim como a exigência de autorização individual prévia e expressa para outras contribuições, os sindicatos incluíam o tema na pauta de negociação e as empresas tinham o justo receio de aceitar e depois serem obrigadas a ressarcir o trabalhador.
Nesse contexto surgiram estranhas soluções, elegantemente chamadas heterodoxas (custeio direito pelo empregador, custeio de benefícios fake ou que geram comissões ao sindicato, aditivos que não eram registrados no Mediador etc) e também uma saída construída pelos próprios tribunais: “homologação” ou “referendo” judicial das cláusulas que invertem a ordem dos fatores para assegurar apenas o direito de oposição, que recebeu entre os negociadores a alcunha de “cláusula Vale”6.
Na prática, esse “referendo” judicial com participação do Ministério Público do Trabalho não significava uma blindagem contra a decisão do STF, mas dificultava sobremaneira o questionamento em ações anulatórias e reclamações trabalhistas.
Eram formas – algumas éticas, outras nem tanto – de resolver o impasse na negociação. Afinal, as normas coletivas não preveem apenas benefícios para os trabalhadores, eis que são essenciais para regular com segurança diversas condições de trabalho (turnos, escalas, banco de horas, PLR etc), de grande interesse dos empregadores.
Tudo isso revela a necessidade de solução equilibrada e racional, mas aparentemente não conseguimos escapar da atração para os extremos.
Outra dificuldade está na ocultação das premissas comparativas.
A contribuição negocial extensível a todos, independentemente de autorização, é admitida em alguns países e se justifica em razão de o sindicato representar a todos nesse modelo de negociação. Busca-se, dessa forma, evitar o que os americanos chamam de free rider7, o empregado “caronista” que nada contribui, mas se aproveita das conquistas financiadas por outros.
Esse argumento não é aceito por outros países8 ou o é com limites para coibir abusos, como a legislação argentina, que aceita a chamada cuota de solidaridad a cargo dos não-associados, com a condição de que não exceda 50% da cota sindical devida pelos associados.
Essas experiências, entretanto, jamais poderiam ser transportadas para nosso modelo sindical atual, em que ainda prevalecem os traços do corporativismo criado na Era Vargas para cooptação dos sindicatos e controle dos conflitos sociais.
Os sindicatos ainda hoje dispõem do monopólio de representação, que se faz por categoria profissional e econômica com base municipal mínima. Não podem ser criados, ou pelo menos é muito difícil, novos sindicatos, salvo em caso de desmembramento de categoria. Ora, acrescentar a esse arco uma contribuição para o sindicato, obrigatória para não-associados e sem direito de oposição, é realmente reforçar o corporativismo.
Quando a OIT admite o modelo (argumento das Centrais), pressupõe liberdade inexistente no Brasil, que não ratificou a Convenção 87.
Obviamente os atuais dirigentes sindicais – aqueles chamados pelo governo para formular a modernização do sistema – tendem a não aceitar patamares internacionais de liberdade que coloquem em risco seu status atual. A liberdade sindical simplesmente não está em pauta, muito embora devesse ser o ponto de partida de qualquer mudança.
Outro equívoco é desprezar que países de efetiva liberdade sindical ora têm a figura do sindicato mais representativo (um único com poderes para negociar em nome de todos, definido a partir de critérios objetivos, subjetivos ou mistos), ora admitem a negociação por múltiplos sindicatos, cada qual custeado por seus associados.
Também pouco se fala de modelos em que os sindicatos recebem aportes diretamente do governo (inclusive a França) ou em que excepcionalmente se admite o custeio direto pelo empregador para viabilizar a negociação coletiva.
Por fim, o termo contribuição negocial soa melhor que contribuição assistencial, muito genérica e que se presta a custear outras atividades e não precisamente a negociação coletiva.
Admitindo-se a pretendida compulsoriedade para todos, suas premissas devem ser a efetiva liberdade sindical e a segurança de que se destinará exclusivamente ao custeio da negociação coletiva, o que pressupõe algo que muitos abominam: prestar contas.
Há muito o que construir e o debate técnico, amparado em pressupostos verdadeiros e dirigido ao bem comum é indispensável.
Infelizmente, nossa sociedade parece ainda estar longe desse importante valor social e político.
Aproveitamos a coluna de hoje para convidar os leitores a seminário sob os auspícios deste Migalhas e coordenação de um dos subscritores no dia 23 de novembro de 20239, com a participação de renomados especialistas com visões distintas sobre esse instigante debate.
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1 Destaca-se da certidão de julgamento: “O Tribunal, por maioria, acolheu o recurso com efeitos infringentes, para admitir a cobrança da contribuição assistencial prevista no art. 513 da Consolidação das Leis do Trabalho, inclusive aos não filiados ao sistema sindical, assegurando ao trabalhador o direito de oposição, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio, que votara em assentada anterior, acompanhando a primeira versão do voto do Relator. Foi alterada, por fim, a tese fixada no julgamento de mérito, nos seguintes termos (tema 935 da repercussão geral): "É constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de contribuições assistenciais a serem impostas a todos os empregados da categoria, ainda que não sindicalizados, desde que assegurado o direito de oposição". Não votou o Ministro André Mendonça, sucessor do Ministro Marco Aurélio. Plenário, Sessão Virtual de 1.9.2023 a 11.9.2023.”
2 A alteração foi assim justificada no parecer do Senador Ricardo Ferraço sobre o então projeto de lei:
“Em nossa avaliação, estamos concedendo não só maior protagonismo aos sindicatos, como, ao rumar para maior liberdade sindical, estamos também os fortalecendo. Isso porque o novo formato de financiamento estimula justamente uma participação ativa dos sindicatos: sem dúvida, serão mais fortes os sindicatos que mais entregarem resultados para os trabalhadores de sua categoria, não havendo recompensa à inércia.
Por isso, somos favoráveis à contribuição sindical facultativa, isto é, previamente autorizada pelos trabalhadores, nos termos dos arts. 545, 578, 579, 582, 587, 602 e do inciso XXVI do art. 611-B da CLT, na forma do texto do PLC. Entendemos que a mudança é oportuna, potencialmente configurando o início de uma reforma sindical que possa aperfeiçoar outros dispositivos relativos a esta matéria.
Assim, rejeitamos as seguintes Emendas apresentadas a esta Comissão: nos 16; 25; 77; 83; e 135.”
3 Eis um exemplo:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E DO TRABALHO. MEDIDA CAUTELAR EM RECLAMAÇÃO. CONTRIBUIÇÃO SINDICAL. AUTORIZAÇÃO DO EMPREGADO. 1. Aparentemente, viola a autoridade da decisão do STF na ADI 5.794, red. p/acórdão Min. Luiz Fux, decisão que afirma que a autorização prévia e expressa de empregado para cobrança de contribuição sindical pode ser substituída por aprovação de assembleia geral de sindicato.
2. Medida cautelar deferida.”
(...)
“2. Na origem, o referido sindicato pleiteou fosse a Claro Sociedade Anônima condenada a efetuar desconto em folha de pagamento para recolhimento de contribuição sindical de seus empregados, com fundamento inconstitucionalidade das alterações realizadas pela Lei federal nº 13.467/2017 nos arts. 545, 578, 579, 582, 583, 587 e 602 da Consolidação das Leis do Trabalho e na afirmação de que a exigência de autorização prévia e expressa do empregado para cobrança não incluiu o requisito de individualidade, de modo que a manifestação de vontade individual poderia ser suprida por assembleia geral.
(....)
É o relatório. Decido o pedido liminar.
6. Em 29.06.2018, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADI nº 5.794, red. p./ acórdão Min. Luiz Fux, ajuizada por entidades sindicais, em que se alegou a inconstitucionalidade da redação dada pela Lei federal nº 13.467/2017 aos arts. 545, 578, 579, 582, 583, 587 e 602 da Consolidação das Leis Trabalhistas. Afirmou-se, assim, a validade do novo regime voluntário de cobrança de contribuição sindical. (...)
O órgão reclamado, por sua vez, afirmou que a aprovação da cobrança da contribuição em assembleia geral de entidade sindical supre a exigência de prévia e expressa autorização individual do empregado. Nesses termos, delegou a assembleia geral sindical o poder para decidir acerca da cobrança de todos os membros da categoria, presentes ou não na respectiva reunião – é dizer, afirmou a validade de aprovação tácita da cobrança. Tal interpretação, aparentemente, esvazia o conteúdo das alterações legais declaradas constitucionais pelo STF, no julgamento da ADI nº 5.794, red. p./ acórdão Min. Luiz Fux, o que implica afronta à autoridade desta Corte. Nesse sentido, confira-se: Rcl 34.889-MC, Rel. Min. Cármen Lúcia.” (MEDIDA CAUTELAR NA RECLAMAÇÃO 35.540 RIO DE JANEIRO).
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Disponível aqui.
7 Nos Estados Unidos da América, o entendimento da Suprema Corte foi recentemente alterado quanto ao tema. A jurisprudência anterior se preocupava em evitar os “free riders”, “caronistas” da norma coletiva, ou seja, empregados que dela se beneficiariam sem ser associados. Admitia a cobrança de “agency fees” desses não associados para custear a negociação, mas o valor não poderia ser utilizado para programas políticos ou ideológicos do sindicato. No setor público esses critérios estavam consagrados em Abood v. Detroit Bd. of Ed., 431 U. S. 209, 235–236. Em 2018, o tema voltou à Suprema Corte com o caso JANUS v. AMERICAN FEDERATION OF STATE, COUNTY, AND MUNICIPAL EMPLOYEES, COUNCIL 31, ET AL.. Em julgamento de 27 de junho de 2018, o entendimento foi revisto para impedir a extensão de contribuições a trabalhadores não associados ao sindicato, inclusive a “agency fee”. À luz da Primeira Emenda, a Corte concluiu que a obrigação de custeio para não associados viola o direito de expressão. Além de outros argumentos, destaca a imprecisão dos critérios fixados em Abood e o fato de a negociação coletiva poder abranger temas controversos, como alteração climática, estrutura confederativa, orientação sexual, igualdade de gêneros, evolucionismo e religiões minoritárias, temas considerados sensíveis do ponto de vista político. A decisão foi por maioria de votos e não altera os critérios para o setor privado, no qual ainda se admite a extensão das “agency fees” a todos, associados ou não (vg. Workers of America v. Beck, 487 U.S. 735 - 1988).
8 Na Espanha, em razão da baixa filiação, decidiram os sindicatos majoritários criar o “canon de negociação coletiva” para aumentar suas receitas, devido por todos os trabalhadores beneficiados pela negociação. Os sindicatos minoritários desafiaram essa compulsoriedade no Judiciário. Hoje o canon tem amparo na Lei Orgânica de Liberdade Sindical (LOLS) de 1985, mas depende do consentimento dos trabalhadores. O Tribunal Constitucional firmou o entendimento de que o valor deve corresponder estritamente aos custos da negociação (gastos efetivos) e de que a autorização deve ser expressa (vedando a autorização tácita por ausência de oposição). Na prática, segundo VALDÉS DAL-RÉ, as normas coletivas deixaram de prever o canon. Os sindicatos majoritários, entretanto, assim como em muitos outros países, recebem importâncias destinadas pelo Estado pelo fato de representarem os trabalhadores em órgãos públicos (participação institucional) e também verbas vinculadas a determinadas finalidades (vg. formação profissional) (VALDÉS DAL-RÉ, Fernando. O direito coletivo do trabalho na Espanha. In: PORTO, Lorena Vasconcelos; PEREIRA, Ricardo José Macêdo de. (org.). Temas de direito sindical: homenagem a José Cláudio Monteiro de Brito Filho. S. Paulo: LTr, 2011. p. 77-78).
9 Disponível aqui.