Assunto recorrente nos últimos dias é a sentença de juiz do trabalho que determinou a contratação como empregados de todos os motoristas que utilizam aplicativo de uma conhecida empresa de tecnologia (Proc. 1001379-33.2021.5.02.0004).
Também impôs indenização por danos morais no valor surpreendente de um bilhão de reais.
A questão de mérito é interessantíssima.
Em país onde a proteção trabalhista está centrada na figura do emprego, há evidente estímulo para o reconhecimento do vínculo com o meritório objetivo de oferecer mais garantias sociais.
Daí surgem ideias criativas como a teoria da subordinação estrutural, a subordinação algorítimica etc. São facetas do chamado ativismo judicial tentando preencher a lacuna legal.
Frequentemente o juiz se depara com o dilema de assegurar a proteção com o reconhecimento do vínculo ou se conformar com o vazio normativo para as hipóteses de trabalho não-subordinado (em outros países há proteção a parassubordinados e trabalhadores autônomos economicamente dependentes).
Muito já escrevemos sobre esse tema e não é disso que desejamos tratar na coluna de hoje.
Essa recente sentença de quase cem páginas revela um paradoxo:
Havendo decisões individuais heterogêneas, que ora negam, ora aceitam o vínculo de emprego em ações individuais, como pode a ação civil pública pleitear o mesmo para uma coletividade?
A ação civil pública se transformou na bomba atômica do processo do trabalho. O procurador e o juiz apertam o botão vermelho e a tudo implodem. Há inúmeros exemplos.
Há alguns anos, a 3ª Turma do TST (Proc. TST-RR-130300-89.2003.5.02.0058), com amparo na Súmula n. 331, na presunção de submissão direta e na teoria da subordinação estrutural, reformou acórdão regional para condenar um fabricante de elevadores a montar e instalar diretamente os equipamentos em todo o país, vedando a contratação de empresas especializadas. A condenação, em ação civil pública, obviamente impôs obrigações apenas a essa empresa e não a seus então felizes concorrentes. Esse quadro foi revertido apenas em 2023 após vitória em reclamação perante o STF.
A petição inicial da conhecida Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 324) também demonstra, com inúmeros exemplos colhidos da jurisprudência trabalhista, que a imprecisão do critério previsto na Súmula n. 331 ensejava decisões contraditórias perante concorrentes, afrontando a liberdade e o princípio constitucional da igualdade.
Em ações civis públicas, uma usina pode ser condenada a transportar diretamente a cana-de-açúcar com amparo na inconstitucional Súmula 331, enquanto outras são isentas ou sequer enfrentam ações do gênero.
Outro aspecto é o Ministério Público do Trabalho ora concentrar o debate em face da mesma empresa, ora pulverizá-lo em ações contra suas diversas unidades por razões claramente estratégicas.
A propósito, nesse tema da terceirização do transporte de cana-de-açúcar, empresas foram condenadas em ações civis públicas restritas a algumas unidades. As demais não foram alcançadas.
Também há casos em que o MPT claramente busca o Estado da Federação onde há jurisprudência favorável e, com amparo na OJ 130 da SBDI II do TST e no Tema 1075 de Repercussão Geral, nele ajuíza ação com pedido nacional ou suprarregional, reduzindo os riscos de decisão contrária.
Em direito internacional privado isso é jocosamente chamado de forum shopping, sendo um dos remédios o instituto do forum non conveniens dos países de common law1.
A isso se somam as limitações do processo do trabalho. Em tese, mesmo em ação civil pública com abrangência nacional, pode a prova se restringir a três testemunhas. Há ainda o risco de a empresa ser compelida a apresentar, em poucos dias, defesa contra inicial durante meses elaborada pelo procurador.
Tudo isso vale e é cegamente aceito a pretexto de fazer justiça.
Para quem considera admissível reconhecer no atacado o vínculo de emprego, sem examinar circunstâncias individuais, pouco importam as dezenas de decisões que o rejeitam em ações individuais.
Com todo o respeito a quem, de uma penada, afirma serem todos empregados, essa postura revela no mínimo prepotência diante das dezenas de magistrados que, caso a caso, chegaram a conclusões opostas.
Ações do gênero investem contra um princípio fundamental: a primazia da realidade. Não há como presumir igualdade a partir de um modelo formal. As nuances podem ser – e geralmente são – decisivas.
A igualdade abstrata diante de situações heterogêneas provoca uma desigualdade concreta.
A teor do artigo 129, III, da Constituição de 1988, a ação civil pública se volta à defesa de interesses difusos e coletivos.
Os interesses difusos pertencem a pessoas indeterminadas, unidas por certo vínculo jurídico e têm por objeto bem coletivo insuscetível de divisão, de forma que a satisfação de um implica a de todos. Em outras palavras, ofendem o direito da coletividade. São supraindividuais, indivisíveis e indeterminados; não têm dono certo.
O CDC (Lei 8078/90) criou uma terceira figura, a dos direitos individuais homogêneos, em seu artigo 81, III, concebendo-os como “decorrentes de origem comum”.
O debate de vínculo de emprego no atacado envolve interesses individuais heterogêneos. Não há como resolver a matéria de forma coletiva e uniforme.
Nem mesmo o direito norte-americano, onde tem amplo espaço a class action, admite a amplitude que se tem conferido às ações civis públicas.
Naquele sistema, a primeira regulamentação no âmbito federal ocorreu em 1912, através da Federal Equity Rule 38, e ganhou relevância com a Regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure de 1938.
O sistema atual decorreu de uma ampla reforma em 1966, pela qual a “nova regra das Federal Rules of Civil Procedure (...) foi dividida em cinco subseções, cada uma lidando com diferentes tipos de procedimentos”2.
O modelo, segundo ADA PELLEGRINI GRINOVER3, "tem caráter pragmático e funcional", contendo "quatro considerações prévias (pré-requisitos)" e estabelecendo "três categorias de class actions, sendo duas obrigatórias (mandatory) e uma não obrigatória (not mandatory), cada uma com seus próprios requisitos".
Esta espécie de ação civil pública remeteria à Rule 23 (B) 3. Esta é a hipótese em que são tutelados o que a doutrina brasileira chama direitos individuais homogêneos. Sua inserção dentre as hipóteses de cabimento das class action foi consolidada com a reforma de 1966.
Diz a lei que esta hipótese é not-mandatory, permitindo-se aos membros da classe desinteressados no provimento coletivo requerer não sejam atingidos pelo efeito da sentença.
O cabimento da ação está subordinado também a dois rigorosos requisitos, a chamada prevalência das questões coletivas sobre as individuais e a superioridade do provimento coletivo, "aferindo-se a vantagem, no caso concreto, de não se fragmentarem as decisões"4.
Esse critério está assentado na jurisprudência norte-americana: havendo diversidade de situação fática e jurídica entre os vários interesses a defender, não se admite a ação de classe5.
O elevado número de sentenças de improcedência em ações individuais envolvendo aplicativos escancara se tratar de interesses claramente heterogêneos.
Aliás, contrariando o que alguns presumem, tais sentenças não se restringem a examinar o direito aplicável, mas também as circunstâncias individuais.
Algo se torna claro diante dessas decisões: nossa lei necessita revisão. Não há mais como conviver com a dicotomia emprego vs não-emprego. Urgem novas camadas de proteção.
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1 A teoria foi assim sintetizada no caso Piper:
"[...] a escolha do foro pelo autor raramente deve ser confrontada. Contudo, quando um foro alternativo tiver jurisdição para julgar o caso e o processo no foro escolhido puder ‘ser opressivo e vexatório para o réu [...] de forma desproporcional à conveniência do autor’ ou quando ‘o foro escolhido seja inapropriado por conta de problemas administrativos ou jurídicos próprios do Juízo’, este poderá, no exercício de sua discricionariedade, rejeitar a ação. Para nortear a discricionariedade do Juízo, a Suprema Corte [em Gilbert] estabeleceu uma lista de ‘fatores de interesse privado’ que afetam a conveniência dos litigantes e uma lista dos ‘fatores de interesse público’ que afetam a conveniência do foro.” (REETZ, C. Ryan; MARTINEZ-FRAGA, Pedro J. Forum non conveniens and the foreign forum: a defense perspective, Forum non conveniens and the foreign forum: a defense perspective. The University of Miami Inter-American Law Review, Miami, v. 35, n. 1, p. 2, 2003-2004, p. 4).
Alguns ordenamentos de países de civil law recepcionaram a teoria, como se vê, exemplificativamente, do artigo 3135 do Código Civil de Quebec:
“Ainda que competente para conhecer do litígio, a autoridade de Quebec pode, excepcionalmente e por iniciativa de alguma das partes, declinar tal competência se verificar que as autoridades de outro Estado podem dar melhor solução ao litígio” (CODE CIVIL. Titre III Compétence Internationale. Lexinter.net. Disponível aqui).
Ouça-se MIGUEL CHECA MARTINEZ:
“A extensão da doutrina do forum non conveniens tem sido apresentada como um dos métodos que permite corrigir no âmbito angloamericano situações injustas criadas pelo forum shopping. Se o tribunal provocado pelo demandante possuir uma escassa vinculação com o objeto, mas suas regras lhe atribuírem competência judicial, somente será possível evitar o resultado pretendido pelo demandante quando se recorre a esta doutrina. É um artifício (escape device) que flexibiliza as normas sobre competência judicial internacional, permitindo ao juiz verificar a conveniência de serem competentes outros tribunais mais conectados com o objeto. Sua razão de ser se deve à existência de um sistema de competência judicial internacional deficiente e que, portanto, permitia certos excessos (quasi in rem jurisdiction, transient jurisdiction) frente ao demandado, que era colocado em uma situação em que os custos processuais (comparecia em um foro inesperado e alheio às circunstâncias da controvérsia) eram fundamentalmente injustos e precisavam encontrar algum mecanismo de correção.” (CHECA MARTINEZ, Miguel. Fundamentos y límites del forum shopping: modelos europeo y angloamericano. Rivista di Diritto Internazionale Privato e Processuale, Padova, v. 34, n. 3, p. 537, lug./sett. 1998.)
2 DINAMARCO, Pedro. Ação Civil Pública. S. Paulo: Saraiva, 2001.p. 124/125.
3 Da Class Action for Damages à Ação de Classe Brasileira. In: MILARÉ, Édis, (coord.). Ação Civil Pública – Lei 7.347/1985 – 15 anos. S. Paulo, RT, 2000, p. 21/22.
4 GRINOVER, op. cit., p. 24.
5 GRINOVER, op. cit., pp. 27/28.