"...escrever sobre escrever é o futuro do escrever..."
Haroldo de Campos (Galáxias)
O tema 1046 de repercussão geral no STF foi objeto de nossa coluna neste Migalhas no dia 16/5/20221.
O julgamento somente ocorreu em 02.06.2022, prevalecendo por ampla maioria de votos a tese favorável à “prevalência do negociado sobre o legislado”.
Para rememorar, eis o tema original:
"Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente."
Ao cabo, a tese firmada conforme certidão de julgamento:
“O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 1.046 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber. Em seguida, por unanimidade, foi fixada a seguinte tese: "São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis". Ausentes, justificadamente, o Ministro Luiz Fux (Presidente), impedido neste julgamento, e o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber, Vice-Presidente. Plenário, 2.6.2022.”
Nesta sociedade onde tudo é instantâneo, estão borbotando críticas, dúvidas e interpretações divergentes acerca da expressão “absolutamente indisponíveis”.
Já surgem interpretações elásticas e ampliativas do conceito de direitos absolutamente indisponíveis com a finalidade óbvia de reduzir o alcance da histórica decisão do STF.
Para essa doutrina são absolutamente indisponíveis os direitos sociais dos trabalhadores referidos na Constituição Federal, além de outros previstos em tratados e convenções internacionais.
São conhecidas as “fórmulas gerais” para defesa radical da indisponibilidade. Além da interpretação tópica a partir da constitucionalização de direitos do 7º da CF, são frequentemente invocados os princípios do “não retrocesso social” e da “dignidade da pessoa humana”, que trazem conceitos muito abertos, polissêmicos, válidos para qualquer norma jurídica.
Merecem até crítica de magistrados como OTAVIO CALVET2:
“Acostumamo-nos a nos sentir os paladinos da justiça social, como o próprio Tribunal Superior do Trabalho se identifica em buscas do site Google. Arvoramo-nos na soberba de acharmos que sabemos melhor as necessidades do trabalhador, como deveria ser a legislação e nos orgulhamos da atuação que efetiva uma verdadeira distribuição de riquezas.
Se o Poder Legislativo cria uma lei que entendemos precarizante, ou simplesmente ruim, ignora-se a produção legislativa. Basta encontrar algum fundamento constitucional para justificar uma solução conforme a vontade do julgador. Na pior das hipóteses, basta dizer que há lesão ao valor social do trabalho, da dignidade da pessoa humana e, a pérola do momento: retrocesso social.
Se os próprios trabalhadores negociam, como garante a Constituição e a lei em vigor, condições de trabalho que entendemos ruins, simples, basta anular o negócio jurídico por lesivo às conquistas sociais, vedação ao retrocesso e, adivinhem, lesão ao valor social do trabalho e à dignidade da pessoa humana.”
Cabe indagar: qual o alcance pretendido pelo STF? Qual o sentido da ressalva aos direitos “absolutamente indisponíveis”?
Embora possa haver distância entre o autor, as palavras e o leitor, o direito tem princípios e normas de interpretação que permitem extrair o conteúdo lógico, axiológico e teleológico das normas jurídicas e decisões judiciais.
A função precípua dos signos – dentre os quais as palavras – é indicar determinados objetos-referentes que se supõem conhecidos pelos interlocutores3.
Essa suposição decorre de convenções. Trata-se de constatação nada nova, como demonstra PLATÃO4 ao revelar a perseguição pela dita palavra justa, pretensamente semelhante ao objeto-referente:
“... a mim também me agrada que o quanto possível os nomes sejam semelhantes às coisas; mas temo que na verdade, segundo a expressão de Hermógenes, seja forçado a puxar assim pela semelhança, e que seja necessário lançar mão deste grosseiro recurso, a convenção, para a justeza dos nomes. Pois talvez do mais belo modo possível falaria quem falasse com todas ou com a maior parte de palavras semelhantes, isto é, apropriadas, e do mais feio em caso contrário.”
Realmente, a interpretação puramente textual é terreno propício para divergências.
Essa interpretação é sempre circular, ou seja, deve-se analisar cada palavra (signo) à luz das que a precedem e sucedem. O sentido isolado de cada palavra é lançado de uma a outra, se entrelaçando. Daí a lição de KARL LARENZ5:
“O processo do compreender tem o seu curso, deste modo, não apenas em uma direção, ‘linearmente’, como uma demonstração matemática ou uma cadeia lógica de conclusões, mas em passos alternados, que têm por objetivo o esclarecimento recíproco de um mediante o outro (e, por este meio, uma abordagem com o objetivo de uma ampla segurança). Este modo de pensamento, que é estranho às ciências ‘exatas’ e que é descurado pela maioria dos lógicos, é na Jurisprudência de um grande alcance.”
Essas idéias – tão elementares na interpretação jurídica – são aplicáveis não apenas aos conjuntos de palavras, mas também ao encadeamento de textos. Portanto, um valor essencial na interpretação de decisões judiciais assenta na correlação entre o dispositivo e a fundamentação e, de maneira mais ampla, nos precedentes dos mesmos magistrados ou tribunais.
A interpretação também possui critérios públicos6, que decorrem da própria natureza convencional (arbitrária) dos signos.
Nessa esteira, o direito não aponta simplesmente as interpretações equivocadas. Pressupõe, em nome da segurança jurídica, uma só interpretação correta ou, ao menos, mais correta que as demais.
Como disse FERRARA, a interpretação “é a atividade central que se desenvolve na aplicação do direito”7.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR8 estuda a tensão entre dogma e liberdade:
“....para a tradição da ciência jurídica, esta tensão significa que não apenas estamos obrigados a interpretar, como também que deve haver uma interpretação (e, pois, um sentido) que prepondere e ponha um fim (prático) às múltiplas possibilidades interpretativas. Eis aí o problema hermenêutico da decidibilidade, isto é, da criação das condições para uma decisão com o mínimo de perturbação social possível.”
Aqui reaparece o fenômeno circular: a decisão judicial interpreta a norma à luz do caso concreto, estando ela, por sua vez, sujeita a interpretação quanto ao seu exato conteúdo concreto.
Esse problema aflora na interpretação das súmulas dos tribunais, das orientações jurisprudenciais e das teses de repercussão geral.
A tais verbetes caberia pacificar determinado pensamento após ampla celeuma na jurisprudência. Sua função é definir a melhor interpretação. Mas surge um paradoxo: não raro criam eles próprios divergências de interpretação, o que nos faz voltar à origem do problema.
No caso concreto, do ponto de vista circular da interpretação, não há como ignorar que o advérbio “absolutamente” demonstra haver gradação de indisponibilidade.
Segundo o STF, o limite da negociação coletiva é muito amplo: só não pode roçar no direito “absolutamente” indisponível.
Mas há um outro problema ligado à coerência do Judiciário. Como dito na coluna de 18.05.2022, os três graus da Justiça do Trabalho vêm recusando o sobrestamento de processos relacionados ao tema 1046 quando o tema concreto está expressamente referido na Constituição Federal.
Diante do extenso rol do artigo 7º, tal interpretação reduz sensivelmente o alcance do sobrestamento amparado no artigo 1035 do CPC, o que levou ao acolhimento no STF de várias reclamações constitucionais.
Houve certa distinção entre direitos “regulamentados” na Constituição Federal e os apenas nela “referidos” ou “previstos”.
Como no exemplo dado naquela coluna, a CF prevê descansos preferencialmente aos domingos, mas assim mesmo era inafastável o sobrestamento com base no tema 1046 quando a norma coletiva estabelecia a quantidade de dias de repouso dominical9.
Há outros exemplos. Na Rcl. 42.440-AgR assentou-se a potencial incidência do tema à definição de atividades insalubres, pois nada impede “a possibilidade de negociação coletiva do trabalho alcançar os indicadores legais concernentes ao adicional de insalubridade prescrito no art. 7º, XXIII, da CF/88”.
Ao que parece, a substituição de “constitucionalmente assegurados” por “absolutamente indisponíveis” não ocorreu por acaso, mas sim com objetivo de evitar visões hermenêuticas que comprometam o sentido buscado pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive ratificando precedentes colhidos em reclamações constitucionais e na jurisprudência já então “dominante” (adjetivo utilizado no acórdão que admitiu a repercussão geral).
Em resumo, além do advérbio “absolutamente”, outra bússola para interpretação são os próprios precedentes do STF, especialmente nas reclamações constitucionais em que se discutiu, para fins de sobrestamento, a incidência do tema 1046.
Há que atentar também para os demais critérios definidos pelo próprio legislador, nem sempre cumpridos nos tribunais.
Os novos artigos 8º, § 3º, 611-A e 611-B da CLT consagram os limites da negociação e o “princípio de intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”.
No direito comparado há debate sobre o sentido de “normas imperativas” resguardadas nos contratos internacionais de trabalho, que se desenvolvem em diferentes países, mesmo com a crescente liberdade de negociação.
Por exemplo, se o contrato escolhe a lei norte-americana, e o trabalho é executado de forma habitual em solo espanhol, as “normas imperativas” espanholas são aplicáveis. A definição genérica do conteúdo das “normas imperativas” consta da Diretiva n. 96/71/CE da União Europeia10.
São critérios semelhantes aos do artigo 611-B da CLT, com exceção da referência aos “períodos máximos de trabalho e períodos mínimos de descanso” (vale lembrar que ali se cuida de negociação individual).
Outro vetor interpretativo, considerando a ratificação pelo Brasil da Convenção n. 98 da OIT, se extrai das decisões do Comitê de Liberdade Sindical, compiladas em forma de ementas11.
Há uma importante questão prática. Havendo desrespeito à tese fixada para o tema 1046 são, em regra, incabíveis reclamações constitucionais de imediato, como se lê no artigo 988, § 5º, II, do CPC12.
Isto cria verdadeiro paradoxo: mais de 60.000 processos sobrestados na Justiça do Trabalho aguardando a definição do tema 1046 pelo STF. Agora, firmada a tese, o Juiz do Trabalho pode desrespeitá-la e a parte prejudicada terá que esgotar todos os recursos cabíveis nas instâncias ordinárias antes do STF. Alcançado o STF, a tese é vinculante.
É claro que a regra se justifica porque o Supremo efetivamente não é instância ordinária, mas nesse tormentoso percurso muito se perderá.
Situação análoga ocorreu com o tema 1075 de repercussão geral. Mesmo após a definição da aplicabilidade do artigo 93, II, do Código de Defesa do Consumidor (competência de capital do Estado ou do DF) para ações civis públicas de efeitos nacionais ou regionais, certos magistrados do trabalho continuaram desprezando o critério.
Infelizmente, há razões para se prever (e temer) certa indisciplina judiciária em relação ao tema 1046.
A despeito do rigor do artigo 988, § 5º, II, do CPC, parece cabível reclamação constitucional imediata em situações excepcionais, como, por exemplo, antecipação de tutela que contraria teses de repercussão geral. Afinal, por seus efeitos imediatos, não podem se submeter ao esgotamento das instâncias ordinárias. A coerência do sistema deve ser preservada, privilegiando-se a instrumentalidade das formas.
Estes são apontamentos iniciais sobre a aplicação prática da tese firmada no tema 1046 de repercussão geral.
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1 Disponível aqui.
2 CALVET, Otavio Torres. Negociado x legislado ou STF x Justiça do Trabalho.
3 PERES, Antonio Galvão. Vividez constitucional – Ensaio sobre a interpretação das normas constitucionais. In: FREITAS JUNIOR, Antonio Rodrigues de (coord.). Direitos humanos e direito do trabalho. S. Paulo: Editora BH, 2006.
4 PLATÃO. Crátilo, apud BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. S. Paulo: Cultrix, 1997. p. 39.
5 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 286-287.
6 O processo autor-texto-leitor pressupõe parâmetros consensuais, como se depreende desta interessante passagem de UMBERTO ECO:
“Algumas teorias da crítica contemporânea afirmam que a única leitura confiável de um texto é uma leitura equivocada, que a existência de um texto só é dada pela cadeia de respostas que evoca e que, como Todorov sugeriu maliciosamente (citando Lichtenberg a propósito de Boehme), um texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as palavras e os leitores com o sentido.
Mesmo que isso fosse verdade, as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho. Se bem me lembro, foi aqui na Inglaterra que alguém sugeriu, anos atrás, que é possível fazer coisas com palavras. Interpretar um texto significa explicar porque essas palavras podem fazer várias coisas (e não outras) através do modo pelo qual são interpretadas. Mas se Jack, o Estripador, nos dissesse que fez o que fez baseado em sua interpretação do Evangelho segundo São Lucas, suspeito que muitos críticos voltados para o leitor se inclinariam a pensar que ele havia lido São Lucas de uma forma despropositada. Os críticos não voltados para o leitor diriam que Jack, o Estripador, estava completamente louco – e confesso que, mesmo sentindo muita simpatia pelo paradigma voltado para o leitor, e mesmo tendo lido Cooper, Laing e Guattari, muito a contragosto eu concordaria com que Jack, o Estripador, precisava de cuidados médicos.
Entendo que meu exemplo é um tanto forçado e que mesmo o desconstrucionista mais radical concordaria comigo (assim espero, mas quem é que pode saber?). Mesmo assim, penso que até um argumento paradoxal como esse deve ser levado a sério. Ele prova que existe pelo menos um caso em que é possível dizer que uma determinada interpretação é ruim. Segundo os termos da teoria de pesquisa científica de Popper, isso é o suficiente para refutar a hipótese de que a interpretação não tem critérios públicos (ao menos em termos estatísticos).” (ECO, Umberto. Interpretação e História, in ECO, Umberto (org.) Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 28-29).
7 Apud VIDAL NETO, op. cit.. p. 43.
8 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1995. p. 264.
9 O acórdão em agravo regimental está disponível aqui.
10 Disponível aqui.
11 Disponível aqui.
12 § 5º É inadmissível a reclamação:
(...) II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.