O acórdão ainda não foi publicado, mas os votos proferidos pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 323 confirmam a prevalência do entendimento refratário à ultratividade das normas coletivas então contemplada na Súmula 277 do C. TST1.
Como se sabe, esse verbete teve a redação radicalmente alterada após a Emenda Constitucional n. 45 e passou a consagrar a ultratividade, ou seja, a incorporação das cláusulas coletivas aos contratos individuais, após o prazo do acordo ou convenção, mesmo que as partes não as tenham renovado.
O voto do Exmo. Min. GILMAR MENDES assim explica a mudança:
“O entendimento do Tribunal Superior do Trabalho objeto desta ADPF tem como fundamento a alteração redacional feita pela EC 45/2004 no § 2º do art. 114 da Constituição Federal, que passou a prever que, na recusa de “ qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente ”.
A Corte trabalhista passou a interpretar a introdução do vocábulo “anteriormente” à expressão “convencionadas” como suposta reinserção do princípio da ultratividade condicionada da norma coletiva ao ordenamento jurídico brasileiro, revogada, como já dito, no ano de 2001 pela Lei n. 10.192 /01.
(...)
Entretanto, o TST valeu-se de alteração meramente semântica, que não pretendeu modificar a essência do dispositivo constitucional e, consequentemente, aumentar o âmbito de competências da Justiça do Trabalho.”
Como bem explica esse voto com amparo na doutrina do Min. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO, a palavra “anteriormente” não guarda relação com a ultratividade. Bem ao revés, foi inserida como novo limite ao anômalo “Poder Normativo” da Justiça do Trabalho (inclusive condicionado ao comum acordo das partes).
Esse transtorno para a livre negociação coletiva – “um 'quiproquó jurídico' que espanca a segurança jurídica”, segundo ANTONIO CARLOS AGUIAR2 – já havia sido superado com a suspensão, em 2016, da eficácia da súmula pelo STF3, confirmada no Plenário.
Agora houve julgamento do mérito da ação, com oito votos contrários à ultratividade.
Vale transcrever o texto impugnado no STF:
“As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”.
Na verdade, desde 2017 esse verbete se tornara incompatível com o novo artigo 614, parágrafo 3º, da CLT:
“Não será permitido estipular duração de convenção ou acordo coletivo de trabalho superior a dois anos, sendo vedada a ultratividade”.
A rigor, também era incompatível com as modificações da lei 10.192/01.
Em nossa opinião, a Súmula 277 consagrava verdadeiro retrocesso em face das tendências do direito coletivo nos sistemas jurídicos modernos. Incorporava a norma aos contratos individuais de trabalho, independentemente do prazo estabelecido no instrumento coletivo, enquanto não houvesse nova negociação.
Promovia a sacralização dos direitos individuais advindos da negociação coletiva. Tão sólida integração aos contratos individuais, depois de expirado o prazo do convênio coletivo, desestimula a concessão de direitos nas futuras tratativas entre capital e trabalho.
Tal rigidez é incompatível com a natureza da norma coletiva.
A negociação deve ter flexibilidade para modificar condições contratuais ou mesmo derrogar cláusulas, como ocorre em vários sistemas jurídicos, sendo tradicional no direito alemão.4
É claro que há sistemas distintos no direito comparado, como inclusive destaca o voto do Min. GILMAR MENDES, mas, para o bem da negociação, as normas coletivas não têm e não podem ter a vocação da eternidade. Afinal, vantagens negociadas que geram ou reduzem benefícios individuais não perdem sua natureza de normas coletivas autônomas, com prazo determinado.
Expirado o prazo sem renovação, não há como garantir direitos individuais que não mais correspondem à vontade das partes no plano coletivo.
A norma negociada não tem a natureza alterada pelo fato de incidir sobre relações individuais. Sempre será expressão da autonomia coletiva.
A liberdade de negociar para melhor – mas também para pior – é prerrogativa que enriquece a ação sindical.5
Manter a norma anterior para afastar o chamado vazio normativo – vazio esse inexistente diante da aparatosa legislação, como bem anota o voto condutor na ADPF – significa obrigar as empresas a manter benefícios que possam ter se tornado insustentáveis em uma situação de crise econômica ou obrigar os empregados a aceitar a manutenção de cláusulas in pejus outrora negociadas e hoje sem mais razão de ser. Nesse cenário, bastaria a uma das partes travar a negociação para submeter a outra a seus desígnios.
SANTIAGO PÉREZ DEL CASTILLO faz analogia da expiração do prazo da norma coletiva com a revogação da lei que, a partir desse momento, não mais incide sobre a relação jurídica.6
Na doutrina espanhola, o direito adquirido deriva de condições mais benéficas negociadas individualmente, não se podendo adotar o mesmo critério quando se trata de normas coletivas.
Para MONTOYA MELGAR, citando o Estatuto dos Trabalhadores, a convenção posterior revoga a anterior (art. 86.4), podendo suprimir benefícios assegurados anteriormente, como se vê na jurisprudência (TS/SOC 30.3 y 16.11.2006)7.
A manutenção de condições mais benéficas contidas em normas coletivas, como se direitos adquiridos fossem, bloqueia a regulação convencional e até mesmo estatal, das condições de trabalho. Ademais, em certos casos pode criar dois tipos de trabalhadores, com regimes distintos, inviabilizando o planejamento empresarial.8
Na Espanha, desde 2012, após a reforma laboral, o artigo 86, 3, do Estatuto dos Trabalhadores dispõe que, “transcurrido un año desde la denuncia del convenio colectivo sin que se haya acordado un nuevo convenio o dictado un laudo arbitral, aquel perderá, salvo pacto en contrario, vigencia y se aplicará, si lo hubiere, el convenio colectivo de ámbito superior que fuera de aplicación”. Essa regulamentação teve reviravolta com o polêmico Real Decreto-Ley 03/2021, de 28 de dezembro de 2021.
Alguns sistemas admitem a ultratividade, como o argentino. O artigo 6º. da Lei 14.250, de 1988, estabelece a ultratividade da convenção até que outra a substitua, salvo se assim não estabelecerem as partes.
Para o professor CESAR ARESE, “la supervivencia ope legis y por tempo indeterminado de un CCT ciertamente no se ajusta a los principios y naturaleza de la institución, es decir, la temporalidad, adaptabilidad, reflejo de las relaciones de poder y de equilibrio entre las partes”. Pondera, por outro lado, que preserva a segurança jurídica normativa, suprime possíveis vazios, evita a dispersão convencional, protege a aplicabilidade, conserva o nível normativo alcançado, iguala custos laborais e competição empresarial.9
Em sentido contrário, dizia KROTOSCHIN que, se a lei não se incorpora ao contrato individual de trabalho, o mesmo se dá com a norma coletiva. Somente condições individualmente negociadas não mais podem ser retiradas ou alteradas para pior.10
A norma coletiva, por pertencer à classe das normas jurídicas autônomas, ao lado das heterônomas, não se confunde com a cláusula contratual e, assim, deve ter validade restrita ao período de vigência. Apenas cláusulas contratuais ajustadas individualmente aderem definitivamente à relação jurídica individual.
No direito francês, lembra RENATO RUA DE ALMEIDA que não há incorporação definitiva da norma coletiva ao contrato individual, salvo, excepcionalmente, em se tratando de vantagem adquirida pelo empregado na esfera individual, não-dependente de evento futuro e incerto. Assim, por exemplo, se, na vigência da norma que assegura estabilidade em face de acidente do trabalho, vem a sofrer o infortúnio, a terá automaticamente incorporada ao seu patrimônio individual, mesmo após a expiração do prazo da convenção coletiva.11
Em suma, as normas coletivas não devem se integrar automaticamente aos contratos individuais, com exceção de vantagens individualmente adquiridas em face do preenchimento de condições na vigência da norma, servindo de exemplo a garantia de emprego pré-aposentadoria.
Na prática, a prevalência do entendimento contrário à Súmula n. 277 do Tribunal Superior do Trabalho significa importante estímulo à negociação coletiva, reforçando a importância do dificílimo diálogo social, especialmente em ambiente em que não há plena liberdade sindical.
__________
1 O texto desta coluna é publicado quinzenalmente às segundas-feiras, mas enviado para publicação na semana anterior.
2 AGUIAR, Antonio Carlos de. A negociação coletiva de trabalho (uma crítica à Súmula n. 277, do TST). Revista Ltr , vol. 77, nº 09, setembro de 2013.
3 Colhe-se da liminar do Min. GILMAR MENDES na ADPF 323 (j. 14.10.2016):
Segurança jurídica.
Verifica-se que, sem legislação específica sobre o tema, o Tribunal Superior do Trabalho ora nega, ora admite a ultratividade, gerando insegurança jurídica.
Sem precedentes ou jurisprudência consolidada, o TST resolveu de forma repentina – em um encontro do Tribunal para modernizar sua jurisprudência! – alterar dispositivo constitucional do qual flagrantemente não se poderia extrair o princípio da ultratividade das normas coletivas.
Da noite para o dia, a Súmula 277 passou de uma redação que ditava serem as normas coletivas válidas apenas no período de vigência do acordo para o entendimento contrário, de que seriam válidas até que novo acordo as alterasse ou confirmasse.
A alteração de entendimento sumular sem a existência de precedentes que a justifiquem é proeza digna de figurar no livro do Guinness, tamanho o grau de ineditismo da decisão que a Justiça Trabalhista pretendeu criar.
Em tentativa de conferir aparente proteção à segurança jurídica, algumas turmas do TST chegaram a determinar que a nova redação da Súmula 277, ou seja, que admite a ultratividade, seria válida apenas para convenções e acordos coletivos posteriores a sua publicação. Isso tudo, ressalte-se, de forma arbitrária, sem nenhuma base legal ou constitucional que a autorizasse a tanto.
Aplicação casuística.
Como se vê, a mudança de posicionamento da Corte trabalhista consubstanciada na nova Súmula 277, em sentido diametralmente oposto ao anteriormente entendido, ocorreu sem nenhuma base sólida, mas fundamentada apenas em suposta autorização advinda de mera alteração redacional de dispositivo constitucional.
Se já não bastasse a interpretação arbitrária da norma da Constituição Federal, igualmente grave é a peculiar forma de aplicação da Súmula 277 do TST pela Justiça Trabalhista.
Não são raros os exemplos da jurisprudência a indicar que a própria súmula – que objetiva interpretar dispositivo constitucional – é igualmente interpretada no sentido de ser aplicável apenas a hipóteses que beneficiem um lado da relação trabalhista.
Em outras palavras, decanta-se casuisticamente um dispositivo constitucional até o ponto que dele consiga ser extraído entendimento que se pretende utilizar em favor de determinada categoria.
(...)
Vê-se, pois, que, ao mesmo tempo que a própria doutrina exalta o princípio da ultratividade da norma coletiva como instrumento de manutenção de uma certa ordem para o suposto vácuo existente entre o antigo e o novo instrumento negocial, trata-se de lógica voltada para beneficiar apenas os trabalhadores.
Da jurisprudência trabalhista, constata-se que empregadores precisam seguir honrando benefícios acordados, sem muitas vezes, contudo, obter o devido contrabalanceamento.
Ora, se acordos e convenções coletivas são firmados após amplas negociações e mútuas concessões, parece evidente que as vantagens que a Justiça Trabalhista pretende ver incorporadas ao contrato individual de trabalho certamente têm como base prestações sinalagmáticas acordadas com o empregador. Essa é, afinal, a essência da negociação trabalhista. Parece estranho, desse modo, que apenas um lado da relação continue a ser responsável pelos compromissos antes assumidos – ressalte-se, em processo negocial de concessões mútuas.
Conclusão.
Desse modo, em análise mais apurada do que se está aqui a discutir, em especial com o recebimento de informações do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e da 2ª Região, bem como por verificar, em consulta à jurisprudência atual, que a Justiça Trabalhista segue reiteradamente aplicando a alteração jurisprudencial consolidada na nova redação da Súmula 277, claramente firmada sem base legal ou constitucional que a suporte, entendo, em análise preliminar, estarem presentes os requisitos necessários ao deferimento do pleito de urgência.
Reconsidero, por esses motivos, a aplicação do art. 12 da Lei 9.868/1999 (eDOC 10).
Em relação ao pedido liminar, ressalto que não tenho dúvidas de que a suspensão do andamento de processos é medida extrema que deve ser adotada apenas em circunstâncias especiais. Em juízo inicial, todavia, as razões declinadas pela requerente, bem como a reiterada aplicação do entendimento judicial consolidado na atual redação da Súmula 277 do TST, são questões que aparentam possuir relevância jurídica suficiente a ensejar o acolhimento do pedido.
Da análise do caso extrai-se indubitavelmente que se tem como insustentável o entendimento jurisdicional conferido pelos tribunais trabalhistas ao interpretar arbitrariamente a norma constitucional.
Ante o exposto, defiro o pedido formulado e determino, desde já, ad referendum do Pleno (art. 5º, §1º, Lei 9.882, de 1999) a suspensão de todos os processos em curso e dos efeitos de decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho que versem sobre a aplicação da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, sem prejuízo do término de sua fase instrutória, bem como das execuções já iniciadas.
Dê-se ciência ao Tribunal Superior do Trabalho, aos Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e da 2ª Região e ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, para as necessárias providências (art. 5º, § 3º, Lei 9.882, de 1999)”.
4 DAUBLER, Wolfgang. Direito do trabalho e sociedade na Alemanha. S. Paulo: LTr, 1997, p. 150.
5 GOLDIN, Adrián. Autonomía colectiva, autonomía individual e irrenunciabilidad de derechos. Cuadernos de Investigación del Instituto de Investigaciones Jurídicas y Sociales de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires, n. 22, 1991. P. 14.
6 PÉREZ DEL CASTILLO, Santiago. Estudos sobre as fontes do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998. P. 59.
7 MONTOYA MELGAR, Alfredo. Derecho del Trabajo, 31ª. Ed.. Madrid: Tecnos, 2010. P. 179.
8 id. ib.
9 ARESE, Cesar. La negociación colectiva. In: ARESE et alli. Evolución y Revolución de los Derechos Laborales Colectivos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2017. p. 197.
10 “Apud” PÉREZ DEL CASTILLO, op. cit. P. 59.
11 ALMEIDA, Renato Rua de. Das cláusulas normativas das convenções coletivas de trabalho: conceito, eficácia e incorporação nos contratos individuais de trabalho. Revista LTr 60-12/1604, dezembro de 1996.