O governo Federal publicou na última segunda-feira, 28/3, duas medidas provisórias que tratam do teletrabalho.
Uma delas (MP 1.109) torna perene o conjunto de medidas que podem ser utilizadas pelo governo, empregados e empresas para enfrentamento de calamidades públicas. São mecanismos que se mostraram eficazes durante a pandemia do COVID-19, agora incorporados ao ordenamento.
Bastará novo reconhecimento de calamidade pelo Poder Executivo Federal (artigo 2º) para colocar em prática os institutos: teletrabalho por decisão unilateral da empresa, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados, banco de horas e suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do FGTS.
Grande realce merece a manutenção do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, programa que literalmente salvou milhões de empregos com o aporte do BEm nas hipóteses de suspensão dos contratos ou redução da jornada com redução proporcional do salário. Estamos alinhados a outros países, servindo de exemplo a Alemanha, que mantém programas análogos (Kurzarbeit) há mais de um século.
A consagração desses mecanismos, com a conversão dessa MP em lei, parece bem adequada.
A outra medida provisória (MP 1.108) traz inovações nas regras gerais do teletrabalho. Muitas questões não estavam bem resolvidas com o tratamento dado pela lei 13.467/17.
As regras da Reforma Trabalhista de 2017 foram importantíssimas para o teletrabalho durante a pandemia, com a manutenção de empregos e da produção, embora alguns pretendam sua revogação.
Mas é certo que há problemas práticos. Empresas, empregados e sindicatos os enfrentaram com as ferramentas de que dispunham, mas sempre se sujeitarão ao crivo do Judiciário. Por muitos anos haverá ações discutindo se foram certas ou erradas.
Essa nova legislação reduz algumas incertezas, mas cria outras.
A redação do artigo 62, III, da CLT, nos termos da lei 13.467/17, retirava os empregados em teletrabalho da proteção do Capítulo Duração do Trabalho.
Naquele momento provavelmente se teve em conta total liberdade horários, não se justificando controle, horas extras, intervalos etc.
Entretanto, ficou claro na pandemia que tal liberdade não vale para todas as atividades.
Há empregados de quem se espera apenas o resultado, pouco importando o tempo. Muitos outros, entretanto, atuam em horários pré-definidos em razão da natureza da atividade ou por estarem engajados no trabalho em equipe.
No jargão dos profissionais de recursos humanos, atividade remota sem jornada definida é "teletrabalho" e, quando definida, é "home office".
Em "home office", segundo essa classificação, os empregados devem respeitar os horários fixados e têm direito a hora extra, mas assim não estava escrito na lei.
A MP propõe, como solução, excluir do Capítulo Duração do Trabalho apenas "os empregados em regime de teletrabalho que prestam serviço por produção ou tarefa".
A iniciativa é louvável, mas a redação enseja novos embates.
A rigor, a contratação por produção ou tarefa não afasta, por si só, as regras acerca de duração do trabalho.
Os comissionistas puros têm jornada definida quando não enquadrados nas exceções do artigo 62 e, assim, fazem jus a hora extra, conforme a Súmula 340 do TST.
A MP utiliza termos imprecisos. Sua intenção fica mais clara na leitura do artigo 75-B, § 2º (...O empregado submetido ao regime de teletrabalho ou trabalho remoto poderá prestar serviços por jornada ou por produção ou tarefa...).
Melhor seria distinguir "com jornada definida" e "sem jornada definida". Desse modo se excluiriam os empregados "em regime de teletrabalho com plena liberdade de jornada e horários, não descaracterizando esta exceção o eventual comparecimento ao estabelecimento do empregador ou a reuniões".
Por oportuno, cabe recordar que o controle, quando necessário, não precisa ser o tradicional. São admissíveis o "controle por exceção" e também "meios alternativos" negociados com os sindicatos.
Outra importante mudança está na definição do caput do artigo 75-B da CLT.
A redação anterior considerava "teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador". Agora, alude à "prestação de serviços fora das dependências do empregador, de maneira preponderante ou não".
O parágrafo primeiro diz que "o comparecimento, ainda que de modo habitual, às dependências do empregador para a realização de atividades específicas, que exijam a presença do empregado no estabelecimento, não descaracteriza o regime de teletrabalho ou trabalho remoto".
Essas alterações são endereçadas ao chamado trabalho híbrido, muito desejado por empresas e empregados. Há forte tendência, após a pandemia, a uma alternância entre trabalho dentro e fora do estabelecimento.
A norma prevê regime híbrido, mas persiste o problema da jornada e seu controle.
Ressalvada a regulamentação específica por negociação coletiva, certamente haverá controvérsia sobre o cabimento da exceção do artigo 62, III, da CLT nessas situações.
Caberia perguntar sobre a possibilidade de escolha entre trabalho com e sem jornada definida de forma alternada, ou seja, dentro ou fora da empresa. Através de negociação evidentemente será possível, mas por aplicação pura e simples da MP há vários riscos.
No teletrabalho o local perdeu relevância apenas em parte, pois ainda é dado importante para outros direitos previstos na lei.
O último texto desta coluna tratou especificamente desse tema, mas há duas inovações trazidas pela MP.
Como se sabe, o sindicato representa a categoria na base territorial, a qual muitas vezes é inferior aos limites da atuação do teletrabalhador, causando dúvida sobre a representação sindical.
O artigo 75-B, § 7º, da CLT passa dispor que “"aos empregados em regime de teletrabalho aplicam-se as disposições previstas na legislação local e nas convenções e acordos coletivos de trabalho relativas à base territorial do estabelecimento de lotação do empregado".
No § 8º é resolvido em parte o problema do trabalho transnacional, ao afirmar que "ao contrato de trabalho do empregado admitido no Brasil que optar pela realização de teletrabalho fora do território nacional, aplica-se a legislação brasileira, excetuadas as disposições constantes na lei 7.064, de 6 de dezembro 1982, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes".
A regra nada diz sobre o trabalho prestado a partir do Brasil em proveito de tomador no exterior.
Também não ressalva a incidência das normas imperativas, como tradicionalmente se faz em direito internacional privado.
Lamentavelmente a MP não inovou na questão dos equipamentos e despesas em teletrabalho, mantendo no artigo 75-D ampla liberdade para a negociação individual, sem qualquer parâmetro.
Isso pode ensejar desequilíbrios e já há ações em que se postula o ressarcimento de gastos.
O texto poderia trazer critérios para evitar abusos, além de permitir o reembolso em valores pré-fixados, sem correspondência exata com os custos muito variáveis, reduzindo inclusive o risco de incorporação ao salário ou inclusão na base de cálculo de imposto de renda e contribuições previdenciárias.
A única inovação é a regra de que "o empregador não será responsável pelas despesas resultantes do retorno ao trabalho presencial, na hipótese do empregado optar pela realização do teletrabalho ou trabalho remoto fora da localidade prevista no contrato, salvo disposição em contrário estipulada entre as partes".
Diante desse quadro, persiste de grande relevância a negociação coletiva para ajuste dos modelos à realidade das empresas e para reduzir o risco de conflitos.
Estes são apenas alguns apontamentos sobre as inovações, havendo outras nuances e preocupações.
Em conjunto com o Migalhas estamos organizando evento para tratar do tema sob diversas perspectivas. Em breve será divulgado.
Todos os leitores estão convidados.