Direito trabalhista nos negócios

Turnos ininterruptos de revezamento - Breves apontamentos

Turnos ininterruptos de revezamento - Breves apontamentos.

7/3/2022

O constituinte de 1988 estabeleceu no art. 7º, XIV, jornada diferenciada de seis horas para os turnos ininterruptos de revezamento, salvo ajuste diverso em norma coletiva.

A jornada reduzida visa atenuar os impactos negativos da alteração de turno no organismo do trabalhador, mais precisamente no chamado ritmo circadiano, espécie de “relógio biológico” responsável por várias funções e variações de temperatura, hormônios, digestão, sono etc.

A palavra circadiano tem origem no latim (circa diem) e, literalmente, significa “em torno do dia”.

É corrente a ideia de que diversas funções do organismo humano estão naturalmente estruturadas em torno de um dia, escalonadas em períodos relativamente precisos.

Merece referência, acerca das diversas espécies de “relógio biológico”, interessante pesquisa patrocinada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)1: 

“Houve uma época em que, durante quatro meses seguidos - nem pensar em descansar nos finais de semana ou feriados -, um grupo de biólogos do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) acompanhou dia a dia o crescimento e a reprodução de colêmbolos, insetos primitivos sem olhos nem pigmentação, que têm menos de um milímetro de comprimento e habitam regiões profundas das cavernas.(...).

As centenas de páginas de anotações atestam que se deve considerar a existência de uma complexa organização temporal para compreender o funcionamento das atividades cotidianas dos seres vivos, como alimentação, sono, descanso e o trabalho de modo geral. (...) essa organização temporal envolve não só um relógio biológico, como se pensava, mas pelo menos dois outros tipos. De todos, o mais conhecido é o circadiano - com uma duração aproximada de 24 horas, é regido pela alternância entre claro e escuro e coordena, por exemplo, o sono dos seres humanos (...). Um estudo publicado em fevereiro na Biological Rhythm Research, que contou com a colaboração da equipe da USP, comprova a manifestação do circadiano em bebês prematuros: ao contrário do que se imaginava, já que bebês ainda não se relacionam com o claro e o escuro, a pesquisa exibiu uma variação da temperatura dos recém-nascidos que se repete a cada ciclo de aproximadamente 24 horas - indício evidente de registro do circadiano (...) além dos relógios biológicos dos seres vivos, é a natureza que apresenta um ritmo de funcionamento (...). O ciclo claro e escuro é uma referência importante para promover essa harmonia, por indicar o momento de comer, acordar e dormir.”

A proteção constitucional tem o objetivo, com base em experiências médicas, de assegurar o equilíbrio dessas funções ou, ao menos, reduzir os efeitos prejudiciais dos turnos ininterruptos de revezamento.

A finalidade precípua da norma é tutelar o empregado que trabalha “periodicamente obrigado à mudança de hábitos (horário de sono, refeição etc.)”2.

Os prejuízos do revezamento vão além da saúde do trabalhador, eis que atingem também o convívio familiar e a vida social.

Não bastasse isto, praticamente inviabilizam a qualificação – ou requalificação – profissional, pois impedem o trabalhador de frequentar cursos de longa e média duração, o que pode levar à sua estagnação na organização produtiva.

As notas principais do turno ininterrupto de revezamento obviamente não estão no texto constitucional; a doutrina e jurisprudência é que as vêm delineando.

Já está assentado que o intervalo não descaracteriza o turno ininterrupto, como se vê na Súmula nº 360 do TST3.

Por outro lado, a jornada reduzida só se justifica quando o empregado trabalha em turnos diferenciados, como diz acertadamente o saudoso PEDRO PAULO TEIXEIRA MANUS:

“Em síntese, para que a jornada seja reduzida a seis horas diárias, é preciso que o empregado trabalhe normalmente em turnos (diurno e noturno), alternadamente, em regime de revezamento” (Direito do Trabalho na Nova Constituição. S. Paulo: Atlas, 1989, p. 32).

A jurisprudência também exige alternância em intervalos pequenos. Assim, por exemplo, a alternância de turnos acompanhando períodos de safra e entressafra não configura a hipótese constitucional.

Nesse sentido, o seguinte julgado:

“TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO – INTERVALOS DE ALTERNÂNCIA A CADA 4 MESES – DESCARACTERIZAÇÃO – Para que se verifique prejuízo à saúde obreira, justificando a adoção da jornada de 6 horas diárias, a alternância de turnos deve se dar em intervalos semanais ou quinzenais, de forma a afetar o ciclo circadiano, a rotina diária de repouso/vigília do trabalhador, situação que não se verifica no caso em questão. Recurso ordinário do autor ao qual se nega provimento.” (TRT 02ª R. – RO 1000738-68.2017.5.02.0074 – Relª Sonia Maria Forster do Amaral – DJe 23.10.2018 – p. 12943)

O trabalho em turno ininterrupto de revezamento é considerado prejudicial à saúde do trabalhador e, por essa razão, a jurisprudência majoritária4 consolidou o entendimento de que a alteração para turnos fixos se insere no chamado jus variandi, ou seja, pode ser determinada unilateralmente pelo empregador.

Dito de outro modo, ainda que a alteração implique, para quem trabalhar durante o dia, a perda do adicional noturno, o aumento da jornada (vg. de seis para oito horas, mas com a remuneração correspondente) e outros eventuais benefícios previstos em lei ou norma coletiva, a hipótese não se submete ao artigo 468 da CLT.

Por fim, vale lembrar que a Carta de 1988 admite jornada superior a seis horas, no turno ininterrupto, mediante negociação coletiva.

Isto significa a viabilidade, com base no artigo 7º, XIII e XXVI, de pactuar coletivamente jornada de oito horas ou mesmo superior, respeitando-se os limites semanais e mensais.

Também é viável jornada de oito horas com o acréscimo de eventuais horas extras, mas há muitos julgados em sentido contrário.

A Súmula n. 423 do C. TST dispõe que, “estabelecida jornada superior a seis horas e limitada a oito horas por meio de regular negociação coletiva, os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento não têm direito ao pagamento da 7ª e 8ª horas como extras”.

Na prática, é corrente a interpretação a contrario sensu desse verbete no sentido de que horas habituais acima da oitava hora descaracterizam o elastecimento negociado.

Nesse sentido:

“RECURSO DE REVISTA – TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO – EXTRAPOLAÇÃO HABITUAL DA JORNADA DE OITO HORAS PACTUADA EM NORMA COLETIVA – DESCARACTERIZAÇÃO – HORAS EXTRAS – A jurisprudência desta Corte entende que, em se tratando de jornada de trabalho em turnos ininterruptos de revezamento, ampliada por norma coletiva, não se admite a sua extrapolação além da oitava hora. No caso, o Tribunal Regional, ao entender pela validade do regime adotado em turnos ininterruptos de revezamento, mediante negociação coletiva, mesmo quando elastecida habitualmente a jornada além da oitava hora, não observou o preconizado na Súmula 423 do TST, a qual, interpretando o art. 7º, XIV, da Constituição Federal, assegura o elastecimento, por negociação coletiva, desde que não ultrapassada a jornada de oito horas. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST – RR 217-27.2011.5.04.0291 – Rel. Des. Conv. Fábio Túlio Correia Ribeiro – DJe 19.10.2018)

Essa presunção de abuso não pode ser aplicada como regra geral. Aliás, muitas vezes a própria norma coletiva disciplina a possibilidade de horas extras e, em alguns casos, com adicional diferenciado ou outras contrapartidas. Merece referência o seguinte aresto:

“RECURSO DE REVISTA EM FACE DE DECISÃO PUBLICADA A PARTIR DA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.015/2014. HORAS EXTRAS. TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. ELASTECIMENTO POR NORMA COLETIVA SUPERIOR A OITO HORAS DIÁRIAS. DURAÇÃO MENSAL DO TRABALHO INFERIOR A 180 HORAS. O entendimento desta Corte Superior, consubstanciado na Súmula n.º 423, é no sentido de que, “estabelecida jornada superior a seis horas e limitada a oito horas por meio de regular negociação coletiva, os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento não tem direito ao pagamento da 7.ª e 8.ª horas como extras”. Na hipótese, embora a norma coletiva tenha estabelecido jornada de 10h45, constata-se que mensalmente a duração não ultrapassava as 180 horas previstas para os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento. Desse modo, tem-se que a negociação coletiva é mais benéfica ao autor, pois a totalidade do labor mensal era inferior e a remuneração era paga considerando a duração mensal de 220 horas, superior à que efetivamente laborava no mês. Logo, deve-se prestigiar a norma coletiva, conforme assegura o art. 7.º, XXVI, da Constituição Federal. Diante de tais circunstâncias, o presente caso não se amolda ao entendimento constante da Súmula n.º 423 desta Corte, por se tratar de jornada de trabalho diferenciada. Merece reforma decisão regional. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento.” (Processo: RR -10429-36.2015.5.03.0149, Relator: Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, 7.ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/10/2017).

A restrição da autonomia privada coletiva, além de afrontar a Carta Magna, não se concilia com os artigos 611-A e 611-B da CLT.

O tema é sensível em razão da teleologia da norma, mas há que privilegiar a autonomia negocial dos representantes das partes diretamente envolvidas.

__________

1 BICUDO, Francisco. Sob o jugo de Cronos. Revista Pesquisa, nº 77. S. Paulo: FAPESP, julho de 2002. p. 44-46.

2 TST-RR-197.850/95.7 (Ac. 2ª T-0358/97) - 3º Reg. - Rel. Min. Moacyr Roberto Tesch Auersvald. DJU 4.4.97, pág. 10.861, In: FERRARI, Irany. Julgados Trabalhistas Selecionados. v. 5. S. Paulo: LTr, 1998.  p. 409, ementa 990.

“Súmula nº 360 do TST. Turnos ininterruptos de revezamento. Intervalos intrajornada e semanal A interrupção do trabalho destinada a repouso e alimentação, dentro de cada turno, ou o intervalo para repouso semanal, não descaracteriza o turno de revezamento com jornada de 6 (seis) horas previsto no art. 7º, XIV, da CF/1988.”

4 Há muitos julgados nesse sentido:

RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA MUDANÇA DE TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO PARA TURNO FIXO – LICITUDE ALTERAÇÃO DO DIVISOR DE 180 PARA 200 – SÚMULA Nº 431 – PROVIMENTO – O artigo 468 da CLT dispõe que "Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia". No caso, houve a alteração contratual com mudança do labor em turno ininterrupto de revezamento para turno fixo e adoção do divisor 200 em detrimento do divisor 180. A jurisprudência desta Corte Superior é firme no entendimento de que o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento constitui um regime com alto grau de desgaste físico, mental e psíquico, prejudicial ao convívio social e à saúde do trabalhador, resultante das contínuas mudanças de turnos, razão por que o legislador condicionou sua validade a uma jornada reduzida de seis horas (artigo 7º, XIV, da Constituição Federal). Em consequência, firmou-se decisão de que não há óbice no artigo 468 da CLT tampouco ilicitude na alteração da jornada em turnos ininterruptos de revezamento para o turno fixo, por este proporcionar condição mais benéfica ao trabalhador, situando-se no campo do jus variandi do empregador. Sendo lícita a mudança da jornada em turno ininterrupto de revezamento para turno fixo, com jornada de 40 horas semanais, a aplicação do divisor 200 está em consonância com a Súmula nº 431. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (....) (TST – RR 278-87.2013.5.04.0008 – Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos – DJe 11.10.2018) 

ALTERAÇÃO DE TURNO INTERRUPTO [SIC] DE REVEZAMENTO PARA TRABALHO E HORÁRIO FIXO – A alteração do turno ininterrupto de revezamento para o trabalho em horário fixo, por ser, de regra, mais benéfica ao trabalhador, não se insere nas vedações do artigo 468, da CLT, pois se situa no campo do jus variandi do empregador, tendo sido observada a regra do artigo 71, da CLT, com relação à duração do trabalho contínuo que exceda de seis horas, razão pela qual conclui-se como válida a alteração. Recurso não provido. (TST – RR 181.447/95.4-15ª R – 1ª T. – Rel. Min.Conv. João Cardoso – DJU 1 09.08.1996) 

I- RECURSO ORDINÁRIO INTERPOSTO PELO RECLAMADO – ALTERAÇÃO CONTRATUAL – MUDANÇA DO REGIME DE TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO PARA TURNO FIXO – ALTERAÇÃO LÍCITA – O trabalho em turnos ininterruptos de revezamento constitui regime que acarreta alto grau de desgaste físico, psicológico e social do trabalhador, prejudicial ao convívio social e à saúde do empregado, razão pela qual o legislador constituinte condicionou sua validade a uma jornada reduzida de seis horas (artigo 7º, XIV, da Lei Maior). Por corolário, assim como por proporcionar condição bem mais benéfica ao trabalhador, a alteração do regime de jornada em turnos de revezamento para a jornada fixa não encontra óbice no artigo 468 do Diploma Consolidado, estando inserida no campo do jus variandi do empregador. Precedentes da Corte Superior Trabalhista. Recurso a que se dá provimento. (...) (TRT 02ª R. – ROT 1000773-48.2018.5.02.0444 – Relª Jane Granzoto Torres da Silva – DJe 06.09.2019 – p. 15791)

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Antonio Galvão Peres é doutor e mestre em Direito do Trabalho (USP) - Professor de Direito do Trabalho do Curso de Pós-graduação de Direito do Agronegócio do IBDA - Professor do Curso de Direito do Agronegócio do INSPER -. Membro do Conselho Superior de Relações de Trabalho da FIESP (2017-2021) - Professor Adjunto de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP (2006-2014) - Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, do qual foi presidente da Comissão de Direito do Trabalho (2010-2012) - Coordenador do Núcleo de Assuntos Legislativos da Comissão da Advocacia Trabalhista da OAB/SP.

Luiz Carlos Amorim Robortella é doutor em Direito do Trabalho (USP) – Professor do Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie (1974-1995) - Professor Titular de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da FAAP (2000-2008) - Presidente da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (2022-2024)- Titular da cadeira n. 29 da Academia Iberoamericana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social - Membro do Conselho Superior de Relações de Trabalho da FIESP - Membro do Grupo de Altos Estudos do Trabalho – GAET; Representante do Brasil no Comitê Executivo da Sociedade Internacional de Direito do Trabalho e da Seguridade Social em Sidney, Austrália – 2008, Sevilha, Espanha – 2011, Santiago, Chile – 2012, Praga, República Checa – 2017, Turim, Itália – 2018, Córdoba, Argentina – 2019 e Lisboa, Portugal – 2021.