O processo do trabalho não dispõe de regra específica de competência para ações civis públicas, o que remete ao artigo 769 da CLT e, em consequência, ao artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor, com sua redação dúbia:
"Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:
I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;
II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente."
Sobre a aplicação subsidiária do processo comum cabe citar NELSON NERY JUNIOR1:
"Ao dizermos que essas ações seguem as regras da ação coletiva do sistema normativo do processo civil coletivo, queremos significar que a elas se pode opor a sistemática específica da CLT para os dissídios coletivos e ações de cumprimento, de aplicação restrita a essas duas situações.
Ao contrário, o sistema normativo do processo civil coletivo tem incidência e aplicabilidade muito mais ampla do que as normas da CLT, merecendo, por isso, a atenção do jus laboralista na interpretação de seus institutos."
Merece destaque também YONE FREDIANI2:
"Se considerarmos que a Ação Civil Pública tem por objetivo a defesa de direitos ou interesses coletivos, vinculados às relações de emprego, dúvidas não devem pairar quanto à competência da Justiça Especializada para apreciação da Ação Civil Pública, que deverá ser proposta perante a Vara do Trabalho, levando-se em consideração a extensão do dano causado ou a ser reparado; se de âmbito supra-regional ou nacional, o foro será o do Distrito Federal, na conformidade do entendimento cristalizado na OJ nº 130 da SDI II".
CARLOS HENRIQUE BEZERRA LEITE3 diz:
"No âmbito do processo laboral, portanto, à míngua de legislação específica, a ação civil pública deve ser proposta perante os órgãos de primeira instância, ou seja, as Varas do Trabalho do local onde ocorreu ou deva ocorrer a lesão aos interesses metaindividuais defendidos na demanda coletiva.
Nesse sentido, a SDI-1 do TST firmou o entendimento (TST-ACP 154.931/94.8, REl. Min. Ronaldo Leal) de que a regra de competência fixada no art. 93 do CDC é aplicável à ACP no âmbito trabalhista, ou seja, se o dano for de âmbito local, a competência será da Vara do Trabalho territorialmente competente; se de âmbito regional, de uma das Varas do Trabalho da Capital; finalmente, se de âmbito supra-regional ou nacional, de uma das Varas do Trabalho do Distrito Federal. No mesmo sentido é a OJ n. 130 da SDI-2".
RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO4, defendendo a competência das Varas do Trabalho para ações de âmbito nacional, invoca ADRIANA MARIA DE FREITAS TAPETY, para quem incide a "regra de competência contida no art. 93, II, da Lei n. 8.078/90 (...), o qual prevê ser competente a justiça local, no foro da capital do Estado ou no Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional".
A jurisprudência trabalhista era pacífica, como revelam inúmeros julgados, especialmente do TST (vg. TST – CC 170061/2006-000-00-00.0-18ª R. – SBDI-2 – Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva – DJU 09.03.2007; TST – ACP 92867 – SDC – Rel. Min. João Oreste Dalazen – DJU 22.11.2002; TST – ROACP 553159 – SBDI 2 – Rel. Min. Francisco Fausto – DJU 10.11.2000 – p. 545; TST – ACP 652115 – SBDI 2 – Rel. Min. Ronaldo José Lopes Leal – DJU 19.04.2002).
Os reiterados pronunciamentos levaram à edição da OJ nº 130 da SBDI II do TST:
"130. Ação civil pública. Competência territorial. Extensão do dano causado ou a ser reparado. Aplicação analógica do art. 93 do Código de Defesa do Consumidor.
Para a fixação da competência territorial em sede de ação civil pública, cumpre tomar em conta a extensão do dano causado ou a ser reparado, pautando-se pela incidência analógica do art. 93 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, se a extensão do dano a ser reparado limitar-se ao âmbito regional, a competência é de uma das Varas do Trabalho da Capital do Estado; se for de âmbito supra-regional ou nacional, o foro é o do Distrito Federal."
Embora sem precedentes expressivos contrários, essa orientação foi revista pelo TST por uma provável razão de política judiciária: evitar excesso de ACPs nas varas do Distrito Federal.
Eis a redação atual:
"130. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMPETÊNCIA. LOCAL DO DANO. LEI Nº 7.347/1985, ART. 2º. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
I – A competência para a Ação Civil Pública fixa-se pela extensão do dano.
II – Em caso de dano de abrangência regional, que atinja cidades sujeitas à jurisdição de mais de uma Vara do Trabalho, a competência será de qualquer das varas das localidades atingidas, ainda que vinculadas a Tribunais Regionais do Trabalho distintos.
III – Em caso de dano de abrangência suprarregional ou nacional, há competência concorrente para a Ação Civil Pública das varas do trabalho das sedes dos Tribunais Regionais do Trabalho.
IV – Estará prevento o juízo a que a primeira ação houver sido distribuída."
Com todo o respeito ao novo entendimento, a nosso ver não se deveria desprezar o critério legal em proveito de conveniências judiciárias.
Mais importante, entretanto, é a tese fixada pelo STF quando do julgamento do Tema 1075 de repercussão geral, no qual, ao definir a eficácia territorial da sentença superando a estranhíssima redação do artigo 16 da LACP, avançou na definição da competência reafirmando a aplicação do artigo 93 do CDC.
Destaca-se do julgamento do RE 1.101.937:
"1. A Constituição Federal de 1988 ampliou a proteção aos interesses difusos e coletivos, não somente constitucionalizando-os, mas também prevendo importantes instrumentos para garantir sua pela efetividade.
2. O sistema processual coletivo brasileiro, direcionado à pacificação social no tocante a litígios meta individuais, atingiu status constitucional em 1988, quando houve importante fortalecimento na defesa dos interesses difusos e coletivos, decorrente de uma natural necessidade de efetiva proteção a uma nova gama de direitos resultante do reconhecimento dos denominados direitos humanos de terceira geração ou dimensão, também conhecidos como direitos de solidariedade ou fraternidade.
3. Necessidade de absoluto respeito e observância aos princípios da igualdade, da eficiência, da segurança jurídica e da efetiva tutela jurisdicional.
4. Inconstitucionalidade do artigo 16 da LACP, com a redação da Lei 9.494/1997, cuja finalidade foi ostensivamente restringir os efeitos condenatórios de demandas coletivas, limitando o rol dos beneficiários da decisão por meio de um critério territorial de competência, acarretando grave prejuízo ao necessário tratamento isonômico de todos perante a Justiça, bem como à total incidência do Princípio da Eficiência na prestação da atividade jurisdicional.
5. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS DESPROVIDOS, com a fixação da seguinte tese de repercussão geral:
"I - É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original.
II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).
III - Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas".
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão do Plenário, sob a Presidência do Senhor Ministro LUIZ FUX, em conformidade com a certidão de julgamento, por maioria, apreciando o tema 1.075 da repercussão geral, acordam em negar provimento aos recursos extraordinários e fixou a seguinte tese: "I - É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original. II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). III – Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e, fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas", nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro MARCO AURÉLIO. O Ministro EDSON FACHIN acompanhou o Relator com ressalvas. Impedido o Ministro DIAS TOFFOLI. Afirmou suspeição o Ministro ROBERTO BARROSO."
Para maior clareza, veja-se do voto prevalecente no STF:
"Portanto, em se tratando de ação civil pública com abrangência nacional ou regional, sua propositura deve ocorrer no foro, ou na circunscrição judiciária, de capital de Estado ou no Distrito Federal. Em se tratando de alcance geograficamente superior a um Estado, a opção por capital de Estado evidentemente deve contemplar uma que esteja situada na região atingida."
Como se vê, a redação atual e a antiga da OJ 130 da SBDI II do TST é incompatível com decisão da Suprema Corte, que projeta efeitos erga omnes.
Se há incompetência de Vara do Trabalho do interior para dano de abrangência regional ou nacional, eis que extrapola sua jurisdição, é indispensável que a OJ 130 seja alterada em linha com a orientação do STF.
Infelizmente ajustes dessa espécie demoram a ocorrer, o que provoca insegurança jurídica. Há muitos exemplos dessa relutância, o maior deles na ultrapassada Súmula 331 do TST.
Por outro lado, a solução do STF não resolve todos os problemas práticos.
É comum em ações civis públicas trabalhistas a apresentação de dano local como causa de pedir, a partir de autos de infração em face de um só estabelecimento, para embasar pedido com abrangência nacional.
Isso se torna mais grave quando não há clareza nos limites do pedido, pois se pretende genericamente condenação em obrigações de fazer ou não-fazer, sem especificar a abrangência.
Em tais situações, não há solução razoável senão a adstrição da sentença aos limites da causa de pedir, ainda que o pedido seja territorialmente mais amplo.
Assim já decidiu o TST:
"RECURSO DE REVISTA - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - COISA JULGADA - EFEITOS - DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS - DANO LOCAL - LIMITAÇÃO DA COISA JULGADA EM RAZÃO DO PEDIDO E DA CAUSA DE PEDIR, INDEPENDENTEMENTE DA INCIDÊNCIA DO ART. 16 DA LEI N º 7.347/85. A competência representa a parcela da jurisdição atribuída ao órgão julgador. Divide-se de acordo com três critérios: material, territorial e funcional. O critério territorial relaciona-se à extensão geográfica dentro da qual ao magistrado é possibilitado o exercício de sua função jurisdicional, e não se confunde com a abrangência subjetiva da coisa julgada, que depende dos sujeitos envolvidos no litígio (art. 472 do CPC). Em se tratando de demanda coletiva, que visa à defesa de direitos individuais homogêneos, cujos titulares são pessoas determinadas que titularizam direitos divisíveis, mas de origem comum (art. 81, parágrafo único, III, do CDC), os efeitos da coisa julgada serão erga omnes (art. 103, III, do mencionado diploma legal), sob pena de não se conferir a tutela adequada à situação trazida a exame do Poder Judiciário, em patente afronta à finalidade do sistema legal instituído pelas Leis nºs 7.347/85 e 8.078/90, qual seja a defesa molecular de interesses que suplantem a esfera juridicamente protegida de determinado indivíduo, por importarem, também, ao corpo social. Nessa senda, o art. 16 da Lei nº 7.347/85 (com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9.494/97), ao limitar os efeitos da decisão proferida em ação civil pública à competência territorial do órgão prolator da sentença, confunde o mencionado instituto com os efeitos subjetivos da coisa julgada, por condicioná-los a contornos que não lhes dizem respeito. Entretanto, no caso concreto, a decisão regional, ao reconhecer que, subjetivamente, a coisa julgada produzida na demanda alcançaria todos os empregados do banco-reclamado do país, distancia-se dos termos do pedido e da causa de pedir da demanda. Proposta a ação civil pública pelo Ministério Público do Trabalho perante a Vara do Trabalho de Bauru, postulando a defesa de interesses individuais homogêneos dos empregados do banco-reclamado que se ativavam na agência bancária de Bauru, tendo como causa de pedir o auto de infração lavrado pela fiscalização do trabalho estritamente naquela localidade, tem-se que a demanda visa à reparação de dano local, não sendo possível, em razão dos limites do pedido e da causa de pedir, estendê-la aos empregados do reclamado em todo o país. Irrelevante, no caso, a aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, visto que a limitação pretendida pela ré não decorre desse dispositivo, mas dos próprios termos do pedido da ação civil pública. Por isso, reconhece-se no caso que a coisa julgada, a qual produz efeitos em todo o território nacional, como manifestação da soberania do Estado que é, alcança subjetivamente apenas dos empregados do banco-reclamado de Bauru, por observância aos limites da lide." (RR – 155485-67.2003.5.15.0091, Relator Ministro: Luiz Phillippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 08/02/2012, 1ª Turma, Data da Publicação: 24/02/2012).
Outras decisões defendem a lógica pragmática da condenação preventiva: se há violação da lei em determinado estabelecimento, cabível condenação estendida para desestimular condutas análogas em outras unidades, mesmo sem debate e prova nos autos.
Essa lógica atropela as regras de competência territorial e os princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
3. Outro tema pouco estudado é o risco do chamado forum shopping, que pode ter consequências muito graves, especialmente em ações civis públicas.
Em determinado caso concreto, a jurisprudência nas ações individuais era favorável à tese de nosso cliente em quase todos os Estados da federação, sendo vacilante em alguns e maciçamente desfavorável em apenas um Tribunal Regional do Trabalho.
O MPT mapeou o cenário e escolheu comarca inserida exatamente nos limites daquele TRT para ajuizar ação civil pública com pedido de abrangência nacional, confiante na jurisprudência ali predominante. Ao fim e ao cabo houve acordo e a questão não chegou a ser decidida.
Outro caso espantoso envolve insalubridade. Varas diferentes, com base nas perícias, afastavam o adicional, com exceção de uma delas que, inconformada, expediu ofício ao MPT. Este prontamente ajuizou ação civil pública perante esse mesmo juiz com pedido de abrangência Estadual. A ação foi julgada procedente, é claro, sendo rejeitada inclusive a suspeição alegada pela empresa.
Os diversos sistemas processuais organizaram-se para repudiar esse tipo de forum shopping, ou seja, a parte escolhe o juízo onde propor a ação quando pode prever o resultado ou impor à parte adversa ônus excessivo (dificuldade de defesa, prova etc).
Exemplo dessa cautela está no artigo 286 do CPC:
Art. 286. Serão distribuídas por dependência as causas de qualquer natureza:
I - quando se relacionarem, por conexão ou continência, com outra já ajuizada;
II - quando, tendo sido extinto o processo sem resolução de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda;
III - quando houver ajuizamento de ações nos termos do art. 55, § 3º, ao juízo prevento.
Parágrafo único. Havendo intervenção de terceiro, reconvenção ou outra hipótese de ampliação objetiva do processo, o juiz, de ofício, mandará proceder à respectiva anotação pelo distribuidor.
Esse preceito remete ao artigo 253 do CPC/73, que combate o forum shopping ao impedir que o autor, descontente com distribuição a juiz contrário à sua tese, dela desista (ou simplesmente a faça arquivar, nos termos do artigo 844 da CLT) para buscar outro com precedentes favoráveis ao seu interesse.
A respeito da primeira alteração desse artigo, ensina CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO5 que "a prevenção de que cuidava o art. 253 era somente aquela relativa a outras causas, desde que conexas à primeira, e não à própria primeira causa, quando reproposta. Ainda assim, certos setores da jurisprudência evoluíram no sentido de considerar prevento o juízo da primeira propositura não somente para o processo que lhe foi distribuído e para as causas conexas, mas também para a própria causa primeira, quando o demandante desistisse e depois voltasse a propô-la. (...) Essa tendência foi assimilada pelo direito positivo (...)."
O mestre adverte que a "a desistência e ulterior repropositura da demanda é um expediente (abusivo e inescrupuloso – José Rogério Cruz e Tucci) de que às vezes lançam mão os demandantes, em busca de melhor sorte"6.
Atualmente, a prevenção não se restringe ao caso de desistência, abrangendo também as demais hipóteses de extinção sem julgamento do mérito. Evitam-se assim os artifícios para burlar o princípio do juiz natural7 e o sistema recursal.
Merece referência decisão do TRT da 2ª região8:
"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – ARQUIVAMENTO POR DESISTÊNCIA – REPRODUÇÃO DE AÇÃO IDÊNTICA – PREVENÇÃO – Arts. 253, II, e 87, do CPC. Prevenção saneadora implícita. Reprodução de causas. Desistência que acarretaria a redução do novo inciso II do art. 253 do CPC à completa ineficácia, tornando inútil o objetivo precípuo da alteração feita pela Lei nº 10.358/2001, que é o de impedir a escolha do juiz pelas partes e coibir a ciranda da distribuição de feitos idênticos. Incidência, ademais, do art. 87 do CPC. Conflito negativo de competência improcedente." (TRT 2ª R. – CC 10994-2005-000-02-00 – (2006021077) – SDI – Relª Juíza Wilma Nogueira de Araujo Vaz da Silva – DOESP 09.01.2007).
Não só a jurisprudência, mas também a doutrina, aceita a aplicação destas inovações ao processo do trabalho. Pondera ESTÊVÃO MALLET9 que "as novas hipóteses de prevenção, em caso de reiteração do pedido ou de identidade de ações, procuram impedir a escolha, pelo autor, do órgão judiciário de sua conveniência (...). A preocupação não é exclusividade do processo civil. (...) Assim, é aplicável, também no processo do trabalho, o art. 253, do CPC, como já concluía a doutrina, antes da reforma legislativa".
Quando há competência concorrente de juízos diversos se agrava o risco de violação à ética judiciária porque o autor escolhe o que oferece maior possibilidade de êxito e/ou dificuldade para a defesa.
Em direito comparado e internacional o forum shopping é pejorativamente qualificado – e repudiado –, tendo contribuído para o desenvolvimento da teoria do forum non conveniens como forma de proteção aos consumidores da prestação jurisdicional nos sistemas de common law.
Para explicar a teoria do forum non conveniens no direito norte-americano, C. Ryan Reetz e Pedro J. Martinez-Fraga10 reportam-se à doutrina do realismo jurídico, segundo a qual o juiz, antes de examinar o direito aplicável à espécie, firma sua convicção a partir do simples sentimento de justiça.
Veja-se o seguinte excerto:
"A doutrina do forum non conveniens nos tribunais americanos ilustra a preocupação realista. Ao aplicar a doutrina, os tribunais são compelidos a uma análise subjetiva sobre a importância (deference) a ser atribuída à escolha do foro pelo autor e confrontá-la (engage in balancing) com o conceito semi-aberto (only partially-articulated array) dos ‘interesses públicos e privados’ (public and private interest factors). A extrema generalidade desses conceitos e a ampla discricionariedade conferida pelas cortes de apelação aos juízes de primeiro grau (trial judges) não deixa aos juízes outra alternativa senão a de decidir o que lhes parece justo diante das circunstâncias."
A teoria do forum non conveniens, segundo estes autores, se cristalizou no âmbito federal americano inicialmente com as decisões da Suprema Corte nos casos Gulf Oil Corp. v. Gilbert e Koster v. Lumbermen's Mutual Casualty Co., cujos conceitos foram aperfeiçoados no julgamento Piper Aircraft Co. v. Reyno. Essas decisões fixaram os parâmetros utilizados até hoje, muito embora os tribunais inferiores tenham de enfrentar detalhes especiais11.
A teoria foi assim sintetizada no caso Piper12:
"[...] a escolha do foro pelo autor raramente deve ser confrontada. Contudo, quando um foro alternativo tiver jurisdição para julgar o caso e o processo no foro escolhido puder ‘ser opressivo e vexatório para o réu [...] de forma desproporcional à conveniência do autor’ ou quando 'o foro escolhido seja inapropriado por conta de problemas administrativos ou jurídicos próprios do Juízo', este poderá, no exercício de sua discricionariedade, rejeitar a ação. Para nortear a discricionariedade do Juízo, a Suprema Corte [em Gilbert] estabeleceu uma lista de ‘fatores de interesse privado’ que afetam a conveniência dos litigantes e uma lista dos ‘fatores de interesse público’ que afetam a conveniência do foro."
Alguns ordenamentos de civil law recepcionaram a teoria, como se vê, exemplificativamente, do artigo 3135 do Código Civil de Quebec:
"Ainda que competente para conhecer do litígio, a autoridade de Quebec pode, excepcionalmente e por iniciativa de alguma das partes, declinar tal competência se verificar que as autoridades de outro Estado podem dar melhor solução ao litígio” (CODE CIVIL. Titre III Compétence Internationale. Lexinter.net. Disponível aqui).
A teoria do forum non conveniens pretende, mais que tudo, reforçar o combate ao forum shopping, ou, em palavras simples, a escolha do julgador pela parte.
Com base nessa rigorosa base ética, o juiz pode declinar sua competência ainda que, em tese, seja aceita em relação à matéria.
Ouça-se MIGUEL CHECA MARTINEZ13:
"A extensão da doutrina do forum non conveniens tem sido apresentada como um dos métodos que permite corrigir no âmbito angloamericano situações injustas criadas pelo forum shopping. Se o tribunal provocado pelo demandante possuir uma escassa vinculação com o objeto, mas suas regras lhe atribuírem competência judicial, somente será possível evitar o resultado pretendido pelo demandante quando se recorre a esta doutrina. É um artifício (escape device) que flexibiliza as normas sobre competência judicial internacional, permitindo ao juiz verificar a conveniência de serem competentes outros tribunais mais conectados com o objeto. Sua razão de ser se deve à existência de um sistema de competência judicial internacional deficiente e que, portanto, permitia certos excessos (quasi in rem jurisdiction, transient jurisdiction) frente ao demandado, que era colocado em uma situação em que os custos processuais (comparecia em um foro inesperado e alheio às circunstâncias da controvérsia) eram fundamentalmente injustos e precisavam encontrar algum mecanismo de correção."
No plano internacional, destaque na mídia é a ação ajuizada por Katherine Smith e cinco colegas em face do banco Dresdner Kleinwort Wasserstein.
Katherine – empregada norte-americana lotada em Londres – alega ter sofrido discriminação sexual, assim como suas colegas de Wall Street. A justiça inglesa reconheceria sua competência para julgar o litígio, na medida em que Londres era o local habitual de trabalho. Contudo, preferiu participar da ação nos EUA, pleiteando uma indenização bilionária (US$ 1,4 bilhões) supostamente por saber que a média das indenizações em casos análogos no Reino Unido é da ordem de apenas £6,23514.
Condutas dessa espécie têm ocorrido em nosso país, mas a elas não se dá a devida atenção.
A decisão do STF, reafirmando a competência concorrente para ações civis públicas que envolvem danos de abrangência regional ou nacional, reaviva a importância ética e jurídica do tema.
__________
1 NERY JUNIOR, Nelson. O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos – um estudo sobre a ação civil pública trabalhista. Revista LTr, v. 64, nº 2. São Paulo: LTr, fevereiro de 2000. p. 154
2 FREDIANI, Yone. Direito processual do trabalho: execução e procedimentos especiais. t. II. Rio de Janeiro: 2007. p. 124.
3 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. S. Paulo: LTr, 2007. p. 155.
4 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública trabalhista: análise de alguns pontos controvertidos. Revista LTr. v. 60. nº 09. São Paulo: LTr, setembro de 1996. p. 1193.
5 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. S. Paulo: Malheiros, 2002. p. 73-74.
6 Op. cit., p. 74.
7 Destaca-se, a propósito da violação do princípio do juiz natural, o seguinte acórdão do TRF da 2ª Região:
"PROCESSO CIVIL – CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – ART. 44 DO PROVIMENTO Nº 01/2001 DA CORREGEDORIA – PRESCINDÍVEL APLICAÇÃO – EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO – DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA – PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – Trata-se de conflito negativo de competência suscitado pelo Juízo da 19ª Vara Federal do Rio de Janeiro em face do Juízo da 30ª Vara Federal desta mesma Seção Judiciária que declinou de ofício de sua competência ante o entendimento de inexistir prevenção em relação ao processo nº 2006.51.01.003450-0 o qual fora julgado extinto sem Resolução do mérito, na forma do artigo 267, I c/c artigo 295, V, ambos do Código de Processo Civil. Com efeito, da leitura do art. 44 do Provimento nº 01, da Corregedoria-Geral desta Corte fica evidente que a extinção do processo, sem análise de mérito, torna prevento o juízo prolator da referida decisão. O ato normativo em tela representa a concretização do princípio do juiz natural, impedindo que a parte escolha o julgador de sua demanda. Precedentes desta Corte citados. Conflito conhecido para declarar competente o juízo suscitado.” (TRF 2ª R. – CC 2006.02.01.005121-0 – RJ – Relª Juíza Vera Lúcia Lima – DJU 04.10.2006 – p. 130).
8 Da fundamentação deste acórdão, colhe-se esta passagem:
"Além do mais, a se prescindir da prevenção, na inovação criada pela alteração legal, estar-se-á caracterizando o efeito sem causa, até mesmo porque a ação extinta por desistência existiu apenas e tão-somente no juízo que a extinguiu e em nenhum outro. Logo, não poderia justificar a etiologia com uma ação subseqüente que, distribuída a juízo diverso, reiterasse o pedido da ação extinta, só que no formato de uma (nova) primeira exibição. Essa facilidade, como é sabido, produziu um grande caldo de cultura para os insatisfeitos com a distribuição de seus processos a determinados juízes dos quais receavam, por antecipação, receber tratamento rigoroso ou até mesmo a previsão de insucesso na causa.
Enfim, negar a imanência da prevenção em uma dependência tão claramente definida em lei acarretaria a redução do novo inciso II do art. 253 do CPC à completa ineficácia, pois tornaria inócuo o objetivo precípuo da alteração feita pela citada lei 10.358/2001, que é o de impedir a escolha do juiz pelas partes e coibir a ciranda da distribuição de feitos idênticos."
9 MALLET, Estevão. O processo do trabalho e as recentes modificações do Código de processo Civil. Revista de Processo. n. 139. S. Paulo: setembro de 2006, p. 117.
10 REETZ, C. Ryan; MARTINEZ-FRAGA, Pedro J. Forum non conveniens and the foreign forum: a defense perspective. The University of Miami Inter-American Law Review, Miami, v. 35, n. 1, p. 2, 2003-2004.
11 REETZ, C. Ryan; MARTINEZ-FRAGA, Pedro J. Forum non conveniens and the foreign forum: a defense perspective, cit., p. 4.
12 Apud REETZ, C. Ryan; MARTINEZ-FRAGA, Pedro J. Forum non conveniens and the foreign forum: a defense perspective, cit., p. 4.
13 CHECA MARTINEZ, Miguel. Fundamentos y límites del forum shopping: modelos europeo y angloamericano. Rivista di Diritto Internazionale Privato e Processuale, Padova, v. 34, n. 3, p. 537, lug./sett. 1998.
14 Vejam-se as seguintes notícias: Does shopping around really benefit the employee? Forum shopping - bringing discrimination cases in countries where the payout will be bigger - gives staff unrealistic expectations, says Keith Potter. Employer's Law, March 8, 2006. p. 8; e CHONG, Liz. DKW vows to fight women bankers' $1.4bn discrimination case. The Times. January 11, 2006. Disponível aqui. Acesso em: 05 nov. 2007.