Neste artigo propomos uma abordagem ética e jurídica sobre o papel do Estado e da empresa na regulação e funcionamento do mercado de trabalho, com impacto nos rumos do direito trabalhista e da gestão empresarial.
O objetivo é destacar a verdadeira revolução cultural em andamento, que atribui extraordinária importância à empresa na formulação das políticas sociais, econômicas e ambientais.
Nossas categorias mentais estão se transformando. O direito do trabalho, em sua concepção moderna, é instrumento de síntese dos interesses comuns ao capital, ao trabalho e à sociedade.
Não se destina apenas a compensar a inferioridade econômica do trabalhador, mas também a organizar a produção. Ao lado da proteção e redistribuição da riqueza, é o direito que regula as relações de produção.
Cabe-lhe atuar para diminuir a enorme distância, no plano normativo, social e econômico, entre empregados e desempregados, típicos e atípicos, permanentes e precários, formais e informais, que leva à grande questão do nosso tempo: inclusão versus exclusão.
Diante do impacto da economia digital nas formas de produzir e de trabalhar, o direito do trabalho só sobreviverá na medida em que se tranforme em "direito do mercado de trabalho", não se concentrando apenas na figura do empregado clássico, hoje em decadência no mundo.
Deve redistribuir essa proteção entre os demais trabalhadores, especialmente os vulneráveis, a fim de que o sistema normativo seja efetivamente justo.
A prática revela que as teorias orientadas a trazer para dentro do conceito de emprego toda e qualquer forma de trabalho, como a conhecida subordinação estrutural, criam enorme risco na contratação de serviços de terceiros e nas plataformas digitais.
No mundo contemporâneo a tecnologia é condição necessária para o acesso ao trabalho e ao progresso; sem ela teríamos verdadeiro caos político, econômico, social e ambiental.
Países que não a produzem ou não a adquirem estão condenados à exclusão.
A tecnologia nos mantém conectados às plataformas digitais em nossos diversos egos sociológicos como investidores, trabalhadores e consumidores.
No campo do trabalho não podemos ignorar e muito menos reprimir formas atípicas de prestação de serviços.
A empresa moderna está cercada por dezenas, centenas ou milhares de fornecedores de bens e serviços. Usa intensamente trabalho autônomo, temporário, intermitente, avulso e precário. As plataformas promovem inúmeros tipos de prestação de serviços.
Essa realidade impõe uma regulação plurinormativa aplicável a todos os trabalhadores e não apenas aos empregados, assentada em quatro pressupostos: estrutura legal com normas básicas de proteção dos direitos humanos, negociação coletiva, práticas de governança corporativa e proteção do meio ambiente.
Definitivamente, após a pandemia nunca mais seremos os mesmos.
Está sendo atingido o cerne do sistema de produção, o que exige o desenvolvimento de um capitalismo colaborativo.
A proteção à saúde criou barreiras entre os países, exacerbando a xenofobia e a discriminação étnica, fomentando o trabalho digital no plano nacional e internacional. A concorrência cresceu entre trabalhadores nacionais e estrangeiros. Os níveis de desocupação e de pobreza são inquietantes.
Há aumento significativo do intervencionismo estatal, com programas de renda mínima e investimento para combater a desigualdade. Borbotam políticas para enfrentamento da crise (vide o exitoso Kurzarbeit na Alemanha).
Até nos países menos desenvolvidos programas de renda mínima universal deixaram de ser uma utopia.
Os modelos políticos só sobreviverão se combinarem eficiência econômica, eficácia social e sustentabilidade. O conhecido conceito de economia social de mercado agregou dois valores que a realidade nos impõe: a saúde e o meio ambiente.
A riqueza das nações é medida pelo respeito aos direitos humanos, à ecologia e à ética nos negócios. O capitalismo moderno não se preocupa apenas com o lucro, mas também com os meios pelos quais é alcançado, mediante instrumentos de compliance.
A empresa deve gerar valor para todos que a compõem: investidores, trabalhadores, fornecedores, consumidores e a comunidade.
É o capitalismo de stakeholders, que vai muito além do interesse do acionista (shareholder) porque se baseia em compromissos éticos com a sociedade e a força de trabalho.
Desde o Fórum Econômico de Davos de 2020 o padrão ESG (environment, social and governance) vem dominando os debates ao impor respeito a regras ambientais, sociais e corporativas que constituem o núcleo do capitalismo colaborativo, com ressonância no Pacto Global da ONU1.
Esse movimento é uma forma de resistência à primeira onda da globalização, na qual as empresas enxergavam na redução das barreiras estatais mera oportunidade de negócios, transferindo de país a país os chamados bancos de trabalho2, explorando a combinação de mão-de-obra barata com proteção jurídica incipiente.
A estrutura piramidal3 do direito foi posta em xeque porque o Estado perdeu força diante das empresas.
No final da década de 1990, em aparente exercício de futurologia, AMARTYA SEN4 defendia a necessidade de ultrapassar a concepção internacional para alcançar uma proteção mundial independente dos estados.
Aos poucos se foi desenvolvendo o conceito de cidadania global5, ganhando força quando uma das principais gestoras mundiais de fundos de investimento passou a exigir rigorosos padrões de governança corporativa e social. São famosas, desde 2012, as cartas de seu Chairman aos CEOs das empresas controladas6.
O padrão ESG institui uma economia comportamental que aumenta o padrão de socialização da empresa para atender aos interesses e valores nela envolvidos.
Torna mais visível e indissociável sua faceta institucional ao expandir as obrigações com a sociedade. Essa responsabilidade envolve integração voluntária dos interesses dos parceiros de cadeia produtiva e de consumo.
Vai muito além da governança corporativa. É uma postura cívica que interfere no conceito jurídico de empresa e revaloriza seu caráter institucional.
No mundo em que vivemos é inaceitável o sacrifício dos direitos humanos e da natureza. Os novos desafios ambientais, sociais e de governança exigem códigos de boas práticas corporativas.
Em 2006 a OIT adotou a “Declaração sobre Justiça Social para uma Globalização Justa”, que defende o equilíbrio entre os níveis de proteção do trabalho, avaliando as vantagens comparativas entre os países.
No processo de institucionalização da empresa e de sua responsabilidade social não basta ser cumpridora das leis, devendo assumir compromissos éticos e de governança.
A autorregulação, associada a um bom sistema de negociação com os sindicatos e grupos intermediários, cria um direito flexível ou "soft law" cujo descumprimento acarreta consequências nefastas para a imagem e reputação da empresa.
A certificação ISO 26000 criada em 2010 com base na responsabilidade corporativa, exige respeito à natureza e aos direitos humanos no trabalho.
A empresa e seus empregados, subcontratados, franqueados, fornecedores de bens e serviços, além dos consumidores, são componentes de um sistema de produção e consumo. O código de conduta vai orientar e coordenar o desempenho da atividade empresarial.
O pluralismo na produção das normas, através da lei estatal, da negociação coletiva e dos códigos empresariais, estimula formas próprias e éticas de produzir riqueza e pavimenta o caminho para uma cogestão apta a gerar:
a) políticas públicas de proteção ao trabalhador nas variáveis ??da vida profissional, com ou sem trabalho;
b) reciclagem e qualificação profissional;
c) proteção ao meio ambiente;
d) redistribuição da proteção trabalhista dos empregados para oferecer direitos mínimos aos atípicos, a maioria com grande vulnerabilidade econômica;
e) investimento produtivo.
Essa parceria contribui para uma sociedade na qual, sem negar os conflitos a ela inerentes, Estado, empresas, trabalhadores e consumidores tenham papel efetivo e equilibrado na busca do progresso social e econômico de modo sustentável.
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1 Veja-se esta página de CARLO PEREIRA:
"Em 2020, quando a Organização das Nações Unidas completou 75 anos, mais de 1300 CEOs espalhados por cerca de 100 países enviaram uma carta compromisso ao secretário-geral da ONU, António Guterres, reforçando a necessidade de mobilização e cooperação global para lidar com os desafios do nosso tempo. Entre os compromissos, os CEOs manifestaram seu engajamento com:
A promoção da liderança ética e da boa governança por meio de estratégias, políticas, operações e relacionamentos baseados em valores, envolvendo todas as partes interessadas.
Abordar as desigualdades e injustiças sistêmicas por meio de tomadas de decisão inclusivas, participativas e representativas em todos os níveis do negócio.
Parcerias com a ONU, governos e sociedade civil para fortalecer o acesso à justiça, garantir responsabilidade e transparência, proporcionar segurança jurídica, promover a igualdade e respeitar os direitos humanos.
A ONU ouviu o setor empresarial e a carta gerou desdobramentos. O Pacto Global da ONU está lançando um framework para apoiar as empresas na implementação efetiva destes compromissos de governança e integridade e, portanto, com impactos diretos no ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes. Segundo António Guterres, a iniciativa "visa inspirar as empresas a abraçar seu papel na governança transformacional, que inclui fortalecer o multilateralismo e reimaginar o contrato social. Só então poderemos reconstruir uma economia melhor, cumprir a Agenda 2030 e não deixar ninguém para trás". (PEREIRA, Carlo. Como promover empresas responsáveis, éticas, inclusivas e transparentes). Disponível aqui.
2 DÄUBLER, Wolfgang. Globalização econômica e direito do trabalho. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL RELAÇÕES DE TRABALHO, Anais... Brasília, MTb, 1998. p. 42-43.
3 Assinala DANIELA IKAWA, a partir da lição de GUNTHER TEUBNER, que o "direito empresarial globalizado teve (...) que se adaptar a uma flexibilização da estrutura normativa, que deixou seu desenho piramidal, isto é, hierárquico, para adotar outro, circular. O direito empresarial seguiu, portanto, o aumento de discricionariedade das empresas globalizadas, no tocante à escolha entre normas convencionais e governamentais, e entre normas de diferentes ordenamentos jurídicos nacionais". (IKAWA, Daniela. Implicações jurídicas da globalização econômica. In: PIOVESAN, Flávia (coord.). Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. S. Paulo: Max Limonad, 2002. p. 500).
4 "Un enfoque internacional es inevitablemente parasítico respecto a las relaciones entre naciones, ya que funciona entre distintos países y naciones. En cambio, un enfoque realmente global no tiene por qué considerar a los seres humanos sólo, o principalmente, como ciudadanos de determinados países, ni aceptar que la interacción entre ciudadanos de distintos países tenga que pasar inevitablemente por las relaciones entre las distintas naciones. Muchas instituciones globales, incluso las que son esenciales para nuestra vida laboral, deben ir mucho más allá de los límites de las relaciones internacionales.
(...)
La economía mundial, cada vez más globalizada, exige a su vez un enfoque cada vez más mundializado de las éticas básicas y de los procedimientos sociales e políticos. La economia de mercado en sí no constituye únicamente un sistema internacional, sino que sus conexiones mundiales transcienden las relaciones entre naciones, y a menudo entre las personas de diferentes países y entre las diversas partes de una transación comercial.
La ética capitalista, con sus puntos fuertes y sus debilidades, es una cultura esencialmente mundial del siglo XX y no solamente una construcción internacional. Abordar las condiciones de la vida de trabajo, así como los intereses y los derechos de los trabajadores en general, exige igualmente transcender las limitaciones propias de las relaciones internacionales, más allá de las fronteras nacionales y de las relaciones mundiales." (Alocución del Sr. Amartya Sen, "Premio Nobel de Economía – 15 de junio de 1999", na Conferência Internacional do Trabalho, 87ª reunião, 1-17 de junho de 1999, [30.08.99]).
5 RICHARD OLIVER já vislumbrava a crescente consciência de uma "cidadania global", segundo a qual a censura a práticas de exploração de mão-de-obra estrangeira romperia fronteiras. Sustentava que a sociedade em geral, ao saber da degradante exploração de mão-de-obra, tem se recusado a adquirir os produtos respectivos. Essa atitude, segundo o autor, tem feito com que algumas empresas reavaliem suas operações no estrangeiro, assegurando a melhoria da proteção aos trabalhadores (Oliver, Richard. Como serão as coisas no futuro. São Paulo: Negócio Ed., 1999. p. 51-52).
6 Disponível aqui.