Direito Privado no Common Law

Os desafios regulatórios no combate ao monopólio das Big Techs: Comissão Federal do Comércio v. Amazon

A influência da Amazon sobre o comércio online moldou a vida dos comerciantes em todo o mundo, estabelecendo novas condições de trabalho para mais de um milhão de trabalhadores.

23/10/2023

A Comissão Federal de Comércio (F.T.C., na sigla em inglês), representada por sua presidente, Lina KHAN, juntamente com os Procuradores Gerais de 17 Estados norte-americanos, recentemente ajuizaram demanda contra a gigante do comércio eletrônico Amazon, por práticas irregulares de comércio.1

Na ação ajuizada, os autores acusam a Amazon da prática de monopólio do mercado virtual, na medida em que domina esmagadoramente o comércio online, ostentando uma fortuna estimada em US$ 1,3 trilhão.

Dentre os pedidos deduzidos na ação incluem-se a emissão judicial de ordens para: (i) adoção de medidas estruturais pela empresa ré, no intuito de reparar e prevenir a recorrência das violações da Amazon às diversas leis federais e estaduais e (ii) para restaurar a concorrência leal e remediar os danos causados pelas violações da lei por parte da Amazon. Para além das structural reliefs, pede-se ainda a condenação monetária equitativa das Amazon pelos danos causados a cada um dos requerentes pelas práticas de monopólio e eliminação da concorrência.

A influência da Amazon sobre o comércio online moldou a vida dos comerciantes em todo o mundo, estabelecendo novas condições de trabalho para mais de um milhão de trabalhadores. Conhecido como uma “loja de tudo” pela vasta gama de produtos que vende e pela velocidade com que os entrega, a Amazon adota práticas comerciais de aniquilamento dos pequenos comerciantes para favorecer os seus próprios serviços. 

A demanda proposta pelo governo federal norte-americano e outros 17 Estados nada mais reflete do que o já aguardado confronto entre a Amazon e Lina KHAN (presidente da F.T.C.) que, em 2017, quando ainda estudante de direito em Yale, publicou um artigo chamado  “O Paradoxo Antitruste da Amazon”, no Yale Law Journal.2

No referido artigo, KHAN defendeu que a Amazon não deveria ignorar o comportamento anticompetitivo apenas para satisfazer seus clientes com a promessa de preços mais baixos. Sustentou que as leis de combate ao monopólio, outrora robustas, foram marginalizadas, permitindo à Amazon acumular um poder estrutural que lhe viabiliza exercer um controle crescente sobre muitas partes da economia.

O argumento da tese de KHAN objetivou quebrar um certo consenso até então estabelecido nos círculos antitruste, que remonta à década de 1970, quando a regulamentação foi redefinida com o claro escopo de alcançar primordialmente o bem-estar do consumidor, via preço.3 Segundo a autora, todavia, os reguladores dos monopólios que se concentram tão somente na meta de melhores preços aos consumidores estariam a pensar apenas a curto prazo.

Na opinião de KHAN, uma empresa como a Amazon – que vende coisas, compete com outras que vendem coisas e é dona da plataforma onde os negócios são feitos – tem uma vantagem inerente que prejudica a concorrência leal. Os interesses a longo prazo dos consumidores incluem não apenas preços mais baixos, mas também a qualidade, variedade e inovação dos produtos – fatores melhor promovidos através de um processo competitivo robusto e de mercados abertos.

Na conclusão da tese, a ensaísta afirma que “como consumidores, como usuários, amamos essas empresas de tecnologia”, mas como cidadãos, como trabalhadores e como empresários, reconhecemos que o seu poder é preocupante. Precisamos de um novo quadro, um novo vocabulário sobre como avaliar e abordar o seu domínio.”4

A publicação desse artigo ajudou a incitar o debate sobre a necessidade de modernização das leis antitruste dos EUA para controlar as gigantes da tecnologia, transformando Lina KHAN em uma verdadeira celebridade improvável nos corredores de Washington.

A publicação do artigo no Yale Law Journal obteve 146.255 acessos, um grande best-seller no mundo dos tratados jurídicos. Tamanha popularidade trouxe também muitas críticas. Diversos e importantes acadêmicos encontraram falhas nas propostas de Lina KHAN para reviver e expandir a regulação antitruste, rotulando suas propostas como “Hipster Antitrust”, na medida em que “tudo que era velho voltou a ser legal.”5

Dentre os críticos, Timothy Muris (ex-presidente da F.T.C) e Jonathan Nuechterlein publicaram um artigo (“Antitruste na Era da Internet”) em resposta ao movimento de reforma antitruste, versando a respeito da A&P – rede varejista que praticamente inventou o supermercado moderno na década de 1920. Com os seus preços baixos e uma ampla gama de produtos, a cadeia tornou-se líder de mercado em sua época.6

A rede A&P possuía 70 fábricas e eliminou intermediários, o que lhe permitiu manter os custos baixos. No entanto, segundo concluiu o artigo de Muris e Nuechterlein, a própria popularidade da A&P desencadeou uma reação negativa que culminou no fechamento da empresa anos mais tarde. O governo investigou a A&P por práticas violadoras da regulação antitruste durante a década de 1940, instigado por concorrentes que não podiam competir. Após décadas de declínio, a A&P fechou suas portas definitivamente em 2015.

A analogia com o caso da Amazon parece óbvia: “Não deixem o governo perseguir a Amazon da mesma forma que perseguiu a A&P”, alertaram Muris e Nuechterlein, na medida em que a Amazon agregou centenas de bilhões de dólares em valor à economia dos EUA, revelando-se um inovador brilhante cujas descobertas “ajudaram a lançar novas ondas de inovação nos setores retalhista e tecnológico, para grande benefício dos consumidores”.

A Comissão Federal de Comércio (F.T.C.) vem investigando a Amazon por possível conduta anticompetitiva há vários anos, averiguando desde o mercado da empresa e seu serviço de assinaturas Prime, até as fusões corporativas e seu braço de computação em nuvem.

O marketplace da Amazon é o coração das operações de comércio eletrônico da empresa. Os comerciantes terceirizados - que agora respondem por mais da metade das vendas on-line da empresa -, pagam uma comissão sobre cada venda e têm a opção de também pagar à Amazon por serviços de armazenamento, remessa e publicidade.

Segundo as investigações, a Amazon impede que os vendedores ofereçam preços mais baixos em outros sites, política essa que, segundo a F.T.C., restringe a concorrência on-line na medida em que força os vendedores a aumentar os preços em plataformas concorrentes (como a Walmart) por medo de ter seus produtos reprimidos nos resultados de pesquisa da Amazon.

Na demanda judicial apresentada, o F.T.C. argumenta que a Amazon abusou de um impulsionador de vendas conhecido como Buy Box – o espaço valioso em seu site e aplicativo que solicita aos clientes “Compre agora” ou “Adicione ao carrinho”.

Os conflitos entre a Amazon e a F.T.C. se intensificaram desde que Lina KHAN assumiu a agência, em junho de 2021, quando o presidente Biden a nomeou à presidência.  Semanas depois de sua posse, a Amazon solicitou à agência que ela fosse impedida de atuar em investigações antitruste relacionadas à empresa.

Mas não foi apenas nos Estados Unidos que as práticas nocivas à concorrência adotadas pela Amazon foram e vem sendo investigadas. No âmbito da União Europeia isso também ocorre, desde a entrada em vigor de nova regulação que impõe maior transparência no acesso a dados e nas plataformas de publicidade e comércio eletrônico, bem como nos algoritmos de recomendação.

A Lei de Mercados Digital (DMA) e a Lei de Serviços Digitais (DSA) objetivam evitar o monopólio do setor e limitar crimes on-line de disseminação de notícias falsas e de violação da privacidade, além de tutelar menores de idade.

De acordo com a DMA, empresas com mais de 45 milhões de usuários ativos mensais e uma capitalização de mercado de 75 bilhões de euros são consideradas “gatekeepers”, que fornecem serviços de plataforma central. Essas empresas serão obrigadas a permitir a inter-operabilidade de seus aplicativos de mensagens com concorrentes e a permitir que os usuários escolham quais aplicativos desejam pré-instalar em seus dispositivos.[vii]

Uma lista de seis grandes empresas de tecnologia globais (designadas como “gatekeepers” de serviços online) terão que se adequar às novas regras do bloco para serviços e mercados digitais. As Big Techs relacionadas são a Alphabet (Google), a Amazon, a Apple, a ByteDance (controladora do Tik Tok), a Meta (Instagram e WhatsApp) e a Microsoft.

O objetivo da UE é reforçar a regulamentação das Big Techs e estimular a competição no setor. Embora referidas empresas tenham seis meses para se adaptar às novas regras, elas precisam nomear imediatamente um responsável pelo cumprimento, subordinado diretamente ao Conselho, e informar a Comissão Europeia sobre quaisquer fusões ou aquisições planejadas. Em caso de descumprimento das regras, as companhias podem ser multadas em até 10% do faturamento global.

Como se percebe, está em curso um movimento global no sentido de se modernizar e densificar a regulação das práticas antitruste na economia mundial, a partir da adequada compreensão do novo modelo empresarial imposto pelas Big Techs. 

Regulação antitruste: o cerco às Big Techs

Pelo cenário descrito, é interessante perceber o evidente movimento do governo norte-americano no combate ao monopólio em relação à Amazon e às demais empresas de tecnologia que ameaçam dominar o mercado.

Uma comissão nomeada pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos investigou práticas comerciais abusivas cometidas pela Amazon, pela Apple, pelo Google e pelo Facebook, concluindo que tais empresas detêm um poder de monopólio que as levou a cobrar taxas excessivas, excluir rivais e impedir a competição com aquisições. A partir de uma profunda investigação, foi publicado um relatório final do subcomitê antitruste que acusa essas empresas de práticas anticoncorrência, monopólio no mercado e intimidação de rivais.

O relatório recomenda mudanças nas leis antitruste e a edição de novas regras que dificultem a compra de empresas menores por parte das gigantes de tecnologia, além de separar algumas unidades de negócios para impedir práticas monopolistas no mercado.8

Entre outras sugestões, os membros do Comitê recomendaram que novas leis sejam aprovadas para proibir as empresas de darem vantagem aos seus próprios produtos nas plataformas que controlam, citando listagens no mecanismo de busca do Google e o marketplace da Amazon, que prioriza produtos da sua própria marca nas buscas, como exemplos de comportamento monopolista. 

O texto também recomenda que as empresas tornem seus serviços compatíveis com os concorrentes e permitam que os usuários transfiram seus dados. Para ampliar a fiscalização, os democratas pedem um aumento no orçamento da Comissão Federal de Comércio para que o órgão consiga monitorar adequadamente as gigantes de tecnologia. 

Especificamente no caso do Facebook, dentre a ampla gama de práticas e condutas analisadas, afirma o relatório que a empresa “manteve seu monopólio por meio de uma série de práticas de negócios anticompetitivas”, dentre as quais, “adquirir potenciais rivais e escrever suas normas de forma a propiciar vantagem aos seus serviços, e sufocar iniciativas alheias”. O estudo determinou que, depois de sua aquisição pelo Instagram, em 2012, empresa cresceu tanto que terminou em larga medida concorrendo contra si mesma, e não contra outros rivais no mercado.9

 O Google, por sua vez, domina esmagadoramente o mercado de pesquisas on-line em geral. Dados disponíveis publicamente sugerem que a empresa captura mais de 87% das pesquisas nos EUA e mais de 92% das consultas em todo o mundo. A empresa foi acusada de manter o monopólio de pesquisa por via de práticas abusivas, como obter dados de terceiros, sem permissão, para melhorar os resultados de busca, além de manipular seu serviço de busca a fim de destacar seus produtos.10

No que diz respeito à Amazon, o relatório conclui que vendedores que recorrem ao mercado da empresa se sentem incapazes de protestar contra as taxas e regras impostas porque dependem demasiadamente de seus serviços. O relatório também afirma que a companhia emprega rotineiramente dados obtidos de terceiros a fim de melhorar e vender seus produtos.11

No caso da Apple, o relatório afirma que “na ausência de competição, o poder de monopólio da Apple sobre a distribuição de software para dispositivos iOS resultou em danos aos concorrentes e à competição, reduzindo a qualidade e a inovação entre os desenvolvedores de aplicativos e aumentando os preços e reduzindo as opções para os consumidores”.12

O relatório aponta ainda que a Apple dificulta a distribuição de aplicativos de software em dispositivos iOS e impõe barreiras a seus concorrentes ao controlar seu sistema operacional e a App Store, beneficiando seus próprios produtos.

A regulação das práticas que induzem o monopólio e a consequente eliminação da concorrência, como se percebe, assume novos contornos em um movimento global, na medida em que se normaliza o modelo negocial imposto pelas Big Techs.

O grande desafio com o qual a virtualizada sociedade de massa do século XXI passa a conviver diz respeito à equalização dos múltiplos objetivos de uma regulação que deve buscar a melhor tutela dos direitos individuais e sociais, sem ignorar a realidade e a relevância das grandes empresas de tecnologia para as relações sociais contemporâneas.

___________

1 United States District Court.  Western District of Washington.  Disponível aqui. Acesso em 08 de outubro de 2023.

2 KHAN, Lina. Amazon’s Antitrust Paradox. The Yale Law Journal 126, n. 03, Jan. de 2017, 710-805. Disponível aqui. Acesso em 08 de outubro de 2023.

3 Idem.

4 Idem.

5 The New York Times. Amazon’s Antitrust Antagonist Has a Breakthrough Idea. Disponível aqui. Acesso em 08 de outubro de 2023.

6 Muris, Timothy J. and Nuechterlein, Jonathan E., Antitrust in the Internet Era: The Legacy of United States v. A&P (May 29, 2018). George Mason Law & Economics Research Paper No. 18-15. Disponível aqui ou aqui. Acesso em 09 de outubro de 2023.  

 

7 Parlamento Europeu. A Lei dos Mercados Digitais e da Lei dos Serviços Digitais da UE em detalhe. Disponível aqui. Acesso em 15 de outubro de 2023.

8 Investigation of Competition in Digital Markets.  Majority staff report and recommendations subcommittee on antitrust commercial and administrative law of the committee on the judiciary. Disponível aqui. Acesso em 16 de outubro de 2023.

9 Ibid., p. 142-144. Um estudo interno do Facebook, conhecido como Memorando Cunningham, aconselhou o presidente-executivo da empresa, Mark Zuckerberg, em outubro de 2018, sobre como a empresa poderia continuar a promover o crescimento tanto do Facebook quanto do Instagram sem que um deles chegasse a um “ponto de inflexão” no qual passaria a roubar usuários do outro. Um executivo do Instagram descreveu essa abordagem como “conluio, mas dentro de um monopólio interno”.

10 Ibid., p. 177.

11 Ibid., p. 250.

12 Ibid., p. 333.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.