Direito Privado no Common Law

A opinião da Suprema Corte em Students for Fair Admissions versus Harvard: O voto do presidente John Roberts

O objetivo da presente coluna é justamente o de apresentar uma síntese dos termos da opinião principal, do Chief Justice John Roberts, resumindo o conteúdo de suas quarenta páginas para o público brasileiro.

28/8/2023

Introdução

Minha última coluna informou sobre a derrubada da ação afirmativa pela Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando os comentários que já tinham sido feitos pelos Justices durante a sessão de sustentação oral e analisando a reação inicial da opinião pública, dos analistas da corte e de lideranças políticas, especialmente Joe Biden e Barack Obama. Conforme anunciado naquele texto, caberia a futuras colunas elaborar a análise dos votos da Suprema Corte, especialmente por se tratar de uma decisão de 237 páginas e que tinha sido tornada pública havia apenas alguns dias. O objetivo da presente coluna é justamente o de apresentar uma síntese dos termos da opinião principal, do Chief Justice John Roberts, resumindo o conteúdo de suas quarenta páginas para o público brasileiro.

O voto do presidente John Roberts

Em primeiro lugar, o voto do Presidente John Roberts descreve os procedimentos de admissão de Harvard e da Universidade da Carolina do Norte, salientando que são aceitos respectivamente 2.000 e 4.200, dentre dezenas de milhares de candidatos. Todos os materiais da candidatura dos alunos são lidos inicialmente por um agente de admissão, que avalia seis categorias distintas, sendo que raça é um dos fatores a ser considerado. Em seguida, existe uma análise feita por subcomitês de abrangência geográfica que analisam os candidatos relativos a determinadas áreas específicas, sendo que a raça também é um dos fatores considerados no processo. Finalmente, o comitê final formado por 40 membros que delibera a admissão final dos alunos em Harvard também considera a raça como um fator decisório para a definição dos 2.000 estudantes aceitos para o Harvard College. A sentença considerou que esses programas de admissão violam a cláusula da proteção igual contida na 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

A primeira questão decidida foi o reconhecimento da legitimidade processual da organização Students For Fair Admissions (SFFA), que foi criada em 2014, no ano em que foram ajuizadas as ações judiciais e foi questionada pelos réus como se não fosse ‘genuína’.

Em seguida, o voto trouxe uma longa digressão sobre a evolução do tema na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, com o destaque negativo para o julgamento de Plessy v. Ferguson 163 U.S. 537 (1896), quando a segregação racial foi considerada constitucional, validando-se uma lei estadual de Louisiana que possibilitava a criação de vagões de trem somente para brancos e aprovando a doutrina do ‘igual embora separado’. Somente no período da Corte Warren com a marcante decisão de Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954) é que a Suprema Corte viria a considerar inconstitucional a segregação racial, proibindo que os Estados criassem escolas somente para crianças brancas e que as separasse com base no fator racial. A partir de então, o princípio de que a discriminação racial é inconstitucional teria chegado em outros domínios da vida, tais como ônibus, praias públicas e casas de banho e as relações afetivas através da vedação de leis estaduais que proibiam miscigenação, como, por exemplo, no caso Loving v. Virginia, 388 U.S. 1 (1967), relativo a um homem branco e uma mulher negra condenados a um ano de prisão por terem se casado em violação a uma lei estadual de 1924.  

 Para o Presidente da Suprema Corte, Chief Justice John Roberts, eliminar a discriminação racial significaria eliminar toda ela, aplicando-se o teste em duas etapas do escrutínio estrito adotado pela jurisprudência da corte para diferenciações com base em raça. A corte deve investigar se a classificação racial é adotada para obtenção de interesses governamentais relevantes e se o uso do critério racial é adequadamente sob medida, do modo necessário para se alcançar o resultado pretendido.

O voto também se refere aos precedentes específicos relativos aos processos de admissão de estudantes pelas universidades dos Estados Unidos. No caso Regentes da Universidade da Califórnia v. Bakke, 438 U.S. 265 (1978), a Suprema Corte ficou radicalmente dividida, tendo dado razão parcial à universidade e ao candidato a uma das vagas de medicina que tinha sido rejeitado duas vezes seguidas pela UC Davis, embora tivesse notas superiores a um grupo de 16 alunos de quotas raciais dentre o total de 100 estudantes de medicina aceitos anualmente. O entendimento final foi a partir do voto do Justice Powell, que considerou que, a princípio, programas de ação afirmativa poderiam ser válidos constitucionalmente já que a diversidade na sala de aula seria um interesse governamental relevante. Por outro lado, a corte considerou inconstitucional o programa de quotas raciais da UC Davis, determinado que Alan Bakke tinha sofrido discriminação e deveria ser admitido para a Faculdade de Medicina.

Devido à divisão da corte, não existia clareza sobre se a decisão da corte teria sido um precedente judicial ou não, mas no caso Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003), a Suprema Corte reafirmou Bakke como um precedente, considerando que os programas de ação afirmativa eram constitucionais, apesar da ressalva feita pela Justice Sandra Day O’Connor de que esperava que tais programas não existissem mais após o decurso de 25 anos.

John Roberts extraiu da jurisprudência da corte as seguintes premissas: os programas de admissão devem cumprir o escrutínio estrito, não podem usar raça como um estereótipo e deveriam em algum momento terminar. Para ele, os programas violam o escrutínio estrito, porque seus objetivos não seriam mensuráveis, já que dizem respeito a treinamento de futuros líderes, aquisição de novos conhecimentos, promoção de robusto mercado de ideias e preparação de cidadãos engajados e produtivos. Além desses objetivos serem etéreos, não existiria uma clara conexão entre os meios empregados e os objetivos perseguidos.  Algumas das categorias seriam ‘amplas’ – como asiático que não diferenciaria exatamente a parte da Ásia –, outras seriam ‘arbitrárias’ – como hispânicos – e existiria ainda subinclusão – pela ausência de uma categoria para o oriente médio, por exemplo. O voto afirma que o pedido das universidades por confiança é insuficiente e que não é possível ser deferente às decisões adotadas através desses programas de admissão.

Além disso, para a opinião da maioria da corte, os programas de admissão falham no respeito à cláusula da proteção igual, já que raça seria usado como um ‘negativo’, porque resultaria em um número inferior de admissões de estudantes de origem asiática. Admissões são um jogo de soma zero, em que um benefício dado para alguns candidatos e retirados de outros necessariamente dá uma vantagem para aqueles em prejuízo destes. Para o voto, existiria ainda um uso de raça como estereótipo porque existiria uma presunção reducionista de que todas as pessoas da mesma raça pensariam da mesma forma.    

Ademais, os programas de ação afirmativa não possuiriam um ponto final lógico. Se tais programas serão mantidos até que ocorra diversidade e representatividade significativa no campus universitário, não existe uma diretriz de proporcionalidade clara e para o Presidente John Roberts esse balanceamento racial seria patentemente inconstitucional. Por todas essas razões, o voto considerou que os programas de ação afirmativa não podem ser conciliados com a cláusula da proteção igual da 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, revertendo as decisões das instâncias inferiores e alterando a jurisprudência da Suprema Corte sobre ações afirmativas.

Considerações finais

O presente artigo se refere a uma decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando os termos do voto do Presidente John Roberts. Existem ainda outros aspectos a serem analisados, como o teor dos demais votos e a ressalva de que os próprios candidatos poderiam mencionar nos materiais de candidatura sobre a sua relação com a raça e que as Universidades poderiam considerar essa discussão concreta para análise do caráter e das capacidades dos candidatos. Futuras colunas poderão se dedicar a examinar outros aspectos da decisão da Suprema Corte nesse caso de derrubada da ação afirmativa.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.