Introdução
Na coluna anterior sobre a influência inglesa na emancipação brasileira, nosso foco principal foi a análise da biografia intelectual de Joaquim Nabuco, isto é, seu livro clássico 'Minha Formação'. Ao introduzirmos a coluna passada, alertamos que existia um exercício de reconstrução no texto e que a obra foi elaborada em um período de relativo ostracismo, após o advento da república e antes da retomada da sua relevante atuação como diplomata brasileiro. Como todo escrito autobiográfico sempre passa por um filtro elaborado pelo seu próprio autor, a presente coluna complementa a anterior ao completar a análise da influência inglesa no processo de emancipação brasileiro com base na vida do próprio Joaquim Nabuco tal como descrita na biografia elaborada pela historiadora Angela Alonso. Se o próprio abolicionista nos contou como certas ideias foram decisivas na sua formação, a descrição de sua vida permite entender como ele as aplicou ao longo de sua atuação profissional e política. A presente coluna pretende resgatar um pouco dessa memória histórica, a partir do impacto das ideias inglesas na vida de Joaquim Nabuco.
A vida de Joaquim Nabuco
Ao se exemplificar normas formalmente constitucionais costuma-se indicar na Constituição Brasileira a referência ao Colégio Pedro II no Artigo 242, § 2º, em que se define que a referida instituição está localizada no Rio de Janeiro e na órbita federal. Talvez esse exemplo possa ser problematizado pela relevância institucional que o Colégio Pedro II possui como uma organização de educação relevante do ponto de vista histórico e que serve como um paradigma pedagógico de sucesso até o presente. Excelentes colegas professores estudaram no Colégio Pedro II – tal como Thiago Bottino, Anderson Schreiber e Wallace Corbo da equipe de Professores da FGV Direito Rio – a exemplo de uma série de figuras históricas. Sobre a vida de Joaquim Nabuco, por exemplo, Angela Alonso nos informa que ele estudou nesse colégio da elite brasileira: “entre os dez e os quinze anos, Quinquim lá esteve, trajando o uniforme – casaca verde e cartola alta – formando-se cortesão”.1 O currículo incluía matemática, ciências, filosofia e muito de línguas, incluindo português, latim, grego, francês, alemão, italiano, e last but not least o inglês, tendo Joaquim Nabuco obtido o diploma de letras do Colégio Pedro II em 1865.2 De lá foi para a Faculdade de Direito de São Paulo, que preparava a elite imperial para a carreira política. Conforme o costume da época imperial, circulou também pela Faculdade de Direito de Recife para ali concluir os seus estudos.3
Ângela Alonso considera que Joaquim Nabuco “saiu da faculdade um perfeito dândi.4 Explica: “os dândis dedicavam-se com afinco às roupas e acessórios, apreciavam joias e mesmo maquiagem – caso de Castro Alves. Esse narcisismo, que os escravizava ao espelho e os deixava exasperados ao menor sinal de desalinho ou velhice, era parte de uma nova sensibilidade”.5 Esse estilo de vida caracterizado pelo uso de acessórios especiais – luvas, gravatas e echarpes – marcava a singularidade, cara ao mundo tradicional e essa excentricidade era o modo de instaurar uma nova aristocracia, a do requinte.6 O dandismo também pode ser considerado influência inglesa, na medida em que o escritor inglês Oscar Wilde era apontado como ícone desse estilo. Com o epicentro da vida social sendo os salões,7 Joaquim Nabuco poliu-se como aristocrata e se converteu em cosmopolita nos salões da sociedade aristocrática inglesa.8 Essa personalidade despreocupada e desocupada de bon vivant de Quincas se encerrou com a morte do seu pai, o Senador Nabuco de Araújo, e a necessidade de Joaquim Nabuco de se apresentar como seu herdeiro político e candidato a uma vaga no parlamento do império.9
Eleito deputado por Pernambuco em 1878, assenhorou-se de sua herança política, temperando as ideias do pai com seu talento para falar em público e seu desejo de encantar sua audiência.10 Até os inimigos reconheciam sua inteligência, cultura e persuasão.11 Segundo Angela Alonso, “os contemporâneos identificaram de diversas maneiras a raiz do carisma que transformou o dândi Quincas num político respeitável em 1879”.12 Nabuco encontrou uma agenda política aberta de modernização econômica e de reforma política, em que defendia o liberalismo econômico, o equilíbrio fiscal, a autonomia política do ensino universitário e a separação política entre o Estado e a Igreja.13 Como herdeiro político do seu pai, reiterou os discursos emancipacionistas e reapresentou um projeto de Nabuco de Araújo para alterar o regime de escravidão, tornando-o em uma espécie de colonato ou servidão de gleba como uma rápida forma de transição para que pudessem então atingir o status de cidadão plenos: com “um salário equitativo nas fazendas, quando formarem uma família tâo legitima como a do branco, quando vierem os filhos educados e iguais perante a lei, quando tiverem uma pequena propriedade”.14 Ao denunciar uma empresa de mineração inglesa pela exploração de trabalho escravo em contrariedade a um compromisso assumido de libertar tais trabalhadores após catorze anos de atividades, Joaquim Nabuco recebeu notoriedade na Imprensa internacional, o que lhe rendeu uma mensagem de agradecimento da British And Foreign Anti Slavery Society em 14 de fevereiro de 1880.15
A relação entre Joaquim Nabuco e os abolicionistas ingleses alterou a sua trajetória política, tendo ele se agarrado à questão da abolição da escravatura como sua principal bandeira política.16 Inspirado pelo líder do abolicionismo inglês, William Wilberforce, Joaquim Nabuco pretendia formar uma coalizão abolicionista na Câmara, engrossando-a gradualmente até obter a maioria.17 Lançando-se no vácuo político em uma busca arrojada de reconhecimento, apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão com previsão de pagamento de indenização aos proprietários de escravos, que previa uma data-limite para a completa abolição da escravidão em 01º de janeiro de 1890.18 Tal projeto proibia o tráfico ilegal e fixava os escravos à terra, suprimindo o mercado de escravos. Ao proibir a posse de escravos pelo Estado e extinguir o ‘escravo de ganho’, reduzia a escravidão urbana. Com a criação social para escravos com mais de sessenta anos ou portadores de doenças, constrangia a escravidão doméstica. Proibia a separação entre mãe e filho de até oito anos e criava a educação primária para os escravos. Ampliava o controle estatal sobre os proprietários de escravos, instituindo juntas de emancipação provinciais para fiscalizar o registro de escravos, a aplicação da lei do ventre livre e das cartas de alforria. Criava uma estatística pública anual da escravaria. Liberava a alforria compulsória por terceiros, desde que pago o preço do escravo.19 Ao apresentar o projeto de modo independente e pedir urgência contrariando a liderança partidária, Joaquim Nabuco não somente não conseguiu aprovar o seu projeto de lei, como também inviabilizou sua própria chance de reeleição para a Câmara dos Deputados.20
Por outro lado, ao longo da década de 1880, os reformistas criaram centenas de associações pela abolição da escravatura, secularização do Estado, expansão do ensino e difusão da ciência. Aliás, o exemplo da política inglesa advindo de Gladstone era justamente o de “falar diretamente aos cidadãos, persuadi-los e calçado neles, forçar os lordes a ceder seus anéis, com a promessa de lhes garantir os dedos”.21 Tal estratégia de mobilização social também tinha sido usada com sucesso pela British and Foreign Anti-Slavery Society nas colônias inglesas e mesmo a abolição na própria Inglaterra contou com a apoio de meetings de persuasão com a sociedade civil.22 Joaquim Nabuco quis repetir essa fórmula no Brasil também.23 Nesse contexto, foi criada a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão (SBCE) em 1880 num jantar na casa dos Nabuco, tendo o propósito de estabelecer uma rede política internacional que pressionasse o governo brasileiro.24 O próprio Joaquim Nabuco redigiu o Manifesto da SBCE, cujo argumento central era então novo: “a escravidão era o fulcro da herança colonial” e a “abolição era indispensável para completar a modernização e a autonomia política”.25 Assim foi que Joaquim Nabuco fincou um pé no sistema político e outro na sociedade civil, fazendo-se de pivô entre a velha política aristocrática dos salões do Parlamento e a nova política democrática das ruas, obtendo projeção nacional, o respeito da elite política e sucesso entre as associações.26
Após não ser reeleito como deputado, Joaquim Nabuco obteve uma posição como correspondente internacional do Jornal do Comércio em Londres em 1881, vindo a ter uma experiência profissional relevante na Inglaterra. Seus anos em Londres foram politicamente bem animados, eis que Gladstone aprofundou suas reformas modernizadoras e democratização do sistema político inglês entre 1880 e 1885 e as ações do parlamento repercutiam em excelentes artigos de alto nível na imprensa inglesa em que, por exemplo, o The Economist era dirigido por Bagehot.27 Ao todo, Joaquim Nabuco escreveu 58 artigos como correspondente internacional, desenvolvendo uma disciplina intelectual, etos profissional e um estilo de escrita mais direto e incisivo, que seria evidente na elaboração de O Abolicionismo.28 O grande livro de Joaquim Nabuco foi elaborado a partir de uma pesquisa realizada na sala de leitura do British Museum, em que um acervo de 600 mil livros disponíveis para consulta viabilizou o seu plano de estudar economia, política e literatura com profundidade.29 Angela Alonso brinca com o fato de que a sala de leitura do British Museum se tornou célebre pelo fato de ser o local em que Karl Marx fez sua pesquisa para seu magnum opus ‘Das Kapital’: ‘Nabuco não terá notado um senhor desalinhado, afogado em livros. Era Karl Marx tentando acabar O Capital’.30 O fato é que Joaquim Nabuco tinha pensado em se tornar um literato, mas definiu limites mais realistas para sua empreitada e produziu um livro que era “uma condensação de todas as suas experiências intelectuais até esse tempo”.31 Ele pedia ao Imperador que fizesse a reforma, amparado numa espécie de pacto nacional, caberia ao próprio Joaquim Nabuco retornar ao Brasil em 1884 para liderar o processo de abolição da escravatura. Enfim, os detalhes dessa empreitada terão que esperar por uma coluna futura, mas é inegável a influência inglesa na emancipação brasileira, tal como evidenciado pela vida e pela biografia de Joaquim Nabuco.
Considerações finais
A atuação de Joaquim Nabuco foi inspirada pela sua experiência na Inglaterra e nos Estados Unidos. Além das experiências compartilhadas pelo próprio político, escritor, abolicionista e diplomata brasileiro em sua autobiografia intelectual, existem inúmeras passagens na vida e na biografia de Joaquim Nabuco que foram decisivos para suas iniciativas progressistas em defesa do liberalismo econômico, o equilíbrio fiscal, a autonomia política do ensino universitário e a separação política entre o Estado e a Igreja. Não se tratou somente de uma abstração, mas de ideias que foram transformadas em programas de ação e em projetos, tal como a campanha abolicionista. O impacto das ideias inglesas na vida de Joaquim Nabuco é exemplo pródigo da influência inglesa na emancipação brasileira.
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1 ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco. Editora Companhia das Letras, 2007, p. 24.
2 Idem, p. 24-25.
3 Idem, p. 25-27.
4 Idem, p. 28.
5 Idem, p. 29.
6 Idem, p. 30.
7 Idem, p. 32.
8 Idem, p. 49.
9 Idem, p. 74.
10 Idem, p. 90.
11 Idem.
12 Idem.
13 Idem, p. 91-92
14 Idem, p. 98.
15 Idem, p. 98-99.
16 Idem, p. 103.
17 Idem, p. 105.
18 Idem, p. 106.
19 Idem.
20 Idem, p. 110.
21 Idem, p. 115.
22 Idem.
23 Idem.
24 Idem, p. 116.
25 Idem, p. 117.
26 Idem, p. 120-121.
27 Idem, p. 153.
28 Idem, 146.
29 Idem, p. 159-160.
30 Idem, p. 160.
31 Idem, p. 161.