Introdução
Nos bancos escolares sempre aprendemos que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e somente no dia 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, foi encerrado o regime de trabalho escravocrata em nossa sociedade. Por outro lado, não somos ensinados sobre o fato de que a escravidão não era proibida pelos países europeus no início do século XIX. Somente em 2007 quando cursava meu LL.M. em Harvard foi que descobri que o movimento abolicionista inglês era historicamente reconhecido pela abolição do tráfico de escravos para as colônias britânicas em 1807. A celebração dos 200 anos da abolição do tráfico de escravos e do desenvolvimento de um movimento abolicionista globalizado que influenciaria a abolição pelo Parlamento Inglês da escravidão em todo o império britânico a partir de 1838. Uma vez decidida a questão escravocrata nos domínios britânicos, a Sociedade Anti-Escravidão Britânica e Internacional (British and Foreign Anti-Slavery Society) passou a se dedicar a promover a circulação das ideias de emancipação para outras sociedades, merecendo especial registro o impacto que a influência inglesa teve na formação de Joaquim Nabuco.1 O fato é que foram 50 anos de diferença entre a abolição da escravidão no império britânico e a abolição da escravidão no império brasileiro. A presente coluna pretende resgatar um pouco dessa memória histórica, a partir do impacto das ideias inglesas na formação de Joaquim Nabuco.
A Formação de Joaquim Nabuco
O livro Minha Formação, de Joaquim Nabuco, é uma obra clássica da literatura brasileira. Com o advento da proclamação da república em 1889, o monarquista Joaquim Nabuco teve uma década de certo ostracismo, quando se dedicou à produção de suas obras literárias. Além da monumental biografia de seu pai Nabuco de Araújo intitulada Um Estadista do Império, Joaquim Nabuco publicaria em 1900 uma espécie de autobiografia intelectual com ênfase em suas convicções ideológicas e políticas a partir de sua experiência de vida em Pernambuco, Rio de Janeiro, Europa e Estados Unidos. Segundo a historiadora Angela Alonso, por meio dos livros, Nabuco remodelou sua biografia, apresentando-se como um diplomata que teve a carreira interrompida pelo chamado para a causa da abolição e que, cumprida a missão e passada a turbulência da transição para a República, poderia retornar para a carreira diplomática.2 Gilberto Freyre considerou essa autobiografia psicológica como uma obra valiosa pela perspectiva sociológica, notadamente pela coragem de reconhecer a origem de fidalgo, a influência europeia e sua visão sobre a história e a formação do Brasil.3 Também Fernando Henrique Cardoso em sua análise sobre os ‘pensadores que inventaram o Brasil’ se dedica ao estudo de Joaquim Nabuco e associa seu liberalismo e seu espírito democrático ao ‘olhar do exterior’, referindo-se justamente à influência de ideias inglesas e estadunidenses.4
Logo na primeira frase de sua autobiografia intelectual, Joaquim Nabuco se refere ao liberalismo como o principal alicerce de sua razão.5 Importante, em sua juventude quando estudava Direito, contudo, existia uma mistura e uma confusão em seu espírito, quando era seduzido e arrebatado por todas as ideias, livros e autores que considerava brilhantes e originais.6 Em suas próprias palavras, "posso dizer que não tinha ideia alguma, porque tinha todas".7 Nesse capítulo introdutório, Joaquim Nabuco explica o papel decisivo que teve na sua formação a leitura do livro A Constituição Inglesa, de Bagehot, fixando em seu espírito uma predileção inalterável pela monarquia constitucional liberal, tendo dedicado o segundo capítulo de Mina Formação para explicar as razões para sua perspectiva.
Bagehot não elaborou um livro de história constitucional ou de direito constitucional, mas sobre o funcionamento da máquina política, explicando que a alma da moderna Constituição Inglesa seria justamente o ‘governo de gabinete’, em que o poder legislativo escolhe o poder executivo, como uma espécie de comissão encarregada da parte prática dos negócios e que se harmoniza pela possibilidade de mudança e de dissolução.8 Os modos de explicar a Constituição Inglesa foram desconstruídos, na medida em que não se trata de um sistema de separação de poderes, mas sim de fusão de poderes, em que os poderes executivo e legislativo se unem por um laço que é o gabinete e, de fato, só existe um poder, que é a Câmara dos Comuns, de que o gabinete é a principal comissão.9 Antes de ler Bagehot, Nabuco tinha “o preconceito democrático contra a hereditariedade, o princípio dinástico e a influência aristocrática”, mas passou a considerar eficientes as partes imponentes da Constituição Inglesa, especialmente devido à estabilidade do seu governo efetivo e à calma do espírito nacional.10 A ideia principal recebida de Bagehot foi a superioridade prática do governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial estadunidense, considerando que se tratava de um governo sobre influência mais direta do povo e da opinião pública.11
No capítulo sobre Londres, Nabuco brinca com a ideia sobre se a humanidade tivesse que ser reduzida a uma só, qual povo ele salvaria se tivesse que escolher entre a França e a Inglaterra. A brincadeira era de que seu dever seria de socorrer a França porque a Inglaterra saberia se salvar sozinha: "sabe nadar".12 Em suas reminiscências sobre a cidade, a City, Westminster e o British Museum, Nabuco confessa: "O fato é que amei Londres acima de todas as outras cidades e lugares que percorri".13 Um endereço especial para ele era a residência do embaixador brasileiro em Londres à Rua Grosvenor Gardens, Gabriel número 32, em que teve acesso à alta sociedade londrina através do Barão de Penedo, que lhe serviu de elo de união.14
Particularmente com relação à influência inglesa, Nabuco explica que criou uma segunda natureza e modificou o seu temperamento, tornando-o monárquico de razão e de sentimento pelo contágio do espírito inglês. Nabuco elogiou o governo da Câmara dos Comuns, pela suscetibilidade às oscilações do sentimento público, a rapidez de seus movimentos e a concentração de sua força. Nabuco também afirmou ter ficado impressionado com a autoridade dos juízes, dizendo que somente na Inglaterra é que existem juízes. Apesar do prestígio da Suprema Corte dos Estados Unidos como um tribunal forte e poderoso, para Nabuco, somente na Inglaterra é que o Juiz é mais forte do que os poderosos. Aliás, para exemplificar, Nabuco se refere ao fato de que famílias com séculos de nobreza, residências históricas, riqueza e posição social como o Marquês de Salisbury e o Duque de Westminster terão tratamento igual ao mais humilde de seus criados diante de um juiz.15
Referindo-se novamente à obra de Bagehot, no livro A Constituição Inglesa, Nabuco considera que sua teoria constitucional seria um "verdadeiro evangelho", salientando que ter visto o funcionamento do próprio sistema dava uma impressão viva do que tinha aprendido na academia.16 Com a ressalva de que o maior erro que se pode cometer em política seria o de copiar de sociedades diferentes instituições que cresceram com base em elementos históricos específicos, Nabuco explica que passou a considerar que a forma de governo monárquica seria superior à forma republicana.17
A característica singular seria o fato de o posto mais elevado da hierarquia do governo ficar fora da competição, isto é, se o rei quiser influir na política com suas ideias próprias e sua iniciativa, tem primeiro que abdicar e se eleger como um representante do povo na Câmara dos Comuns.18 A experiência inglesa de Nabuco o fez valorizar a unidade, permanência e continuidade do governo monárquico e a considerar a república como uma "utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício em que só se conhecesse a loucura das grandezas".19 Nabuco vislumbrava, inclusive, a existência de republicanismo – proteção da res pública – na forma de governo monárquico, valorizando o espírito inglês de tradição, realidade, ganho, força e generosidade, progresso e melhoramento e ideal.
Nesse contexto, a constituição emerge como uma procuração dada pela nação inglesa à Câmara dos Comuns, tendo sido formada espontaneamente e inconscientemente com a língua inglesa sem que nenhum grande legislador tenha redigido o seu texto e nenhum homem de Estado a teria idealizado. A tradição produz a faculdade de admirar a base histórica de uma instituição. Nabuco salienta que a liberdade é o grande atributo do homem e a ordem seria a verdadeira arquitetura social. O espírito inglês também é pautado pelo espírito prático, de realidade, inspirado pelo utilitarismo – em que reformas devem ser justificadas por uma vantagem econômica, ao menos indireta e ser justificada por algarismos.20 Também o fair-play é parte integrante da consciência coletiva.
Considerações finais
A formação de Joaquim Nabuco foi inspirada pela sua experiência de vida na Inglaterra e nos Estados Unidos. Em sua autobiografia intelectual, o eminente político, escritor, abolicionista e diplomata brasileiro salientou a influência inglesa na sua formação política. Não se tratou somente de uma abstração, mas de ideias que foram transformadas em programas de ação e em projetos, tal como a campanha abolicionista. Em Minha Formação, aliás, Nabuco afirma que o espírito inglês foi decisivo para que a abolição tivesse prioridade com relação a todos os outros projetos de reforma.21 O impacto das ideias inglesas na formação de Joaquim Nabuco é um exemplo pródigo da influência inglesa na emancipação brasileira.
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1 Leslie Betell e José Murilo de Carvalho (Organizadores), Joaquim Nabuco e os Abolicionistas Britânicos, Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
2 Alonso, Angela. Joaquim Nabuco. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 290-1.
3 Freyre, liberto. Prefácio.
4 Cardoso, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 52-59.
5 Nabuco, Joaquim. Minha Formação. Brasília: UnB, 1981, p. 27.
6 Idem, p. 28.
7 Idem, p. 29.
8 Idem, p. 32-33.
9 Idem, p. 33.
10 Idem., p. 35-36.
11 Idem, p. 36.
12 Idem, p. 73.
13 Idem, p. 77.
14 Idem, p. 79.
15 Idem, p. 86.
16 Idem.
17 Idem, p. 86-87.
18 Idem.
19 Idem, p. 87.
20 Idem, p. 90-91.
21 Idem, p. 91.