O termo "overlook" normalmente significa ignorar ou negligenciar, mas neste julgamento foi utilizado em um sentido mais literal, como "ter uma vista de cima" ou "ver de um lugar mais alto". A decisão em Fearn v Tate Gallery board of trustees foi proferida em 1/2/23 pela Suprema Corte da Inglaterra. A decisão completa está aqui.
Em síntese, trata-se de uma plataforma de observação que faz parte de um edifício de extensão da galeria de arte Tate Modern, oferecendo vistas panorâmicas de Londres. Os proprietários de apartamentos em um conjunto habitacional vizinho - com um design moderno com janelas de vidro do chão ao teto - descobriram que os visitantes da plataforma de observação podem olhar para dentro de suas moradas. Assim, processaram o famoso museu nacional de arte moderna pelo tort de "nuisance" (incômodo/interferência). Tradicionalmente, uma demanda de "private nuisance" é ajuizada quando o uso e gozo da propriedade imobiliária do demandante sofre uma interferência substancial e desproporcional através de um objeto ou atividade. Inicialmente, a pretensão não logrou êxito nas instâncias inferiores.
Todavia, a Suprema Corte deu provimento ao recurso, por maioria de 3:2. O tribunal sustentou que, em princípio, é possível que uma vista panorâmica represente um incômodo, pelo menos no sentido que Lord Leggatt considerou a pretensão, como de "intrusão visual" : "A reclamação dos requerentes não é que o último andar do Edifício Blavatnik tem vista para seus apartamentos; nem é que no curso normal as pessoas naquele prédio olham para os apartamentos dos reclamantes e podem ver o interior. De fato, os requerentes deixaram expressamente claro no julgamento que não se opõem ao fato de serem vistos do Edifício Blavatnik, o que eles reclamam é o uso particular feito por Tate do último andar. Eles reclamam que a Tate convida ativamente o público a visitar e olhar daquele local em todas as direções, inclusive nos apartamentos dos reclamantes situados a apenas 30 metros de distância; que a Tate incita esta atividade sem interrupção durante a maior parte do dia, todos os dias da semana; e que isso tem a consequência previsível de que um número muito significativo de cerca de meio milhão de pessoas que visitam a galeria de observação da Tate todos os anos espiam os apartamentos dos reclamantes e tiram fotos deles. Argumentar que esse uso da propriedade do demandado não pode ser um incômodo porque "ser olhado" não entra neste conceito, é como argumentar que, porque o ruído doméstico comum causado pelos vizinhos não constitui um incômodo, convidar uma banda de música para praticar o dia todo, durante todos os dias no meu quintal não é considerado um incômodo acionável; ou porque o cheiro da comida do seu vizinho na hora das refeições é algo que você tem que tolerar, os odores nocivos da produção industrial não podem ser um incômodo acionável. A conclusão simplesmente não decorre da premissa".
Em reforço, o Tribunal rejeitou a sugestão de que a solução consistia em os requerentes fechasse as persianas ou cortinas, e também o argumento que a atividade do demandado, sendo indiscutivelmente realizada em benefício público, não se traduziria em responsabilidade civil.
O ponto de inflexão do julgamento concerne ao que constitui o uso e a ocupação normais da terra, considerado distinto no caso, pois a natureza e a extensão da visualização dos apartamentos dos reclamantes transcende "qualquer coisa que possa razoavelmente ser considerada como uma consequência necessária ou natural do uso e ocupação comuns e ordinários da terra do Tate". O tribunal caracterizou a localidade em que os apartamentos estão situados como "uma parte urbana do sul de Londres usada para uma mistura de fins residenciais, culturais, turísticos e comerciais". Em linha de princípio um ocupante nesse ambiente “pode esperar bem menos privacidade do que talvez um ocupante rural possa e que qualquer um que viva em uma cidade do interior pode esperar viver bastante lado a lado com os vizinhos. Nada obstante, a decisão frisou que não se encontrou nenhuma outra plataforma de observação naquela parte de Londres; nem que a operação de uma galeria de exibição pública seja necessária para o uso e ocupação comum e comum das terras da Tate gallery. Convidar o público a olhar de uma galeria de observação é manifestamente um uso muito particular e excepcional da terra. Nem mesmo pode ser considerado um incidente necessário ou comum de operar um museu de arte. Portanto, o Tate não pode confiar no princípio da reciprocidade, argumentando que não busca mais tolerância de seus vizinhos para suas atividades do que eles esperariam que o Tate mostrasse para eles. Em síntese, o Tate seria um "superobservador".
O que se pode extrair do julgamento são muitas duvidas e poucas certezas. Antes de chegarmos à questão se essa emanação é ou não substancial, há uma premissa teórica para o ilícito de nuisance: Um incômodo requer alguma emanação invadindo a propriedade do reclamante. Um terreno é um espaço físico. Os direitos em relação a ele dizem respeito à aptidão de usar esse espaço físico. Se alguém invadi-lo sem permissão, isso é considerado nas jurisdições do common law uma transgressão (o tort de trespass). Porém, se um vizinho criar um ruído, uma luz forte ou um cheiro que prejudique sua capacidade física de usar esse espaço, estaremos potencialmente diante de um incômodo (nuisance). A essência deste ilícito é a depreciação do gozo dos direitos inerentes à ocupação da terra. Neste sentido tradicional, ser "olhado" não participa de tal conceito. Pode ser algo que ofenda o vizinho ou lhe cause sofrimento, porém, não temos o direito de exigir que nossos vizinhos se abstenham de fazer coisas que nos incomodam ou que se abstenham de fazer coisas que preferiríamos que não fizessem. A aptidão física do titular de usar a terra para qualquer finalidade que deseje não será de forma alguma afetada. Em outros termos, como a plataforma de observação é diferente de qualquer grande banco de janelas em qualquer atração que atrai multidões de pessoas em qualquer metrópole? É concebível que a famosa CN tower de Toronto, agora seja um incômodo, assim como todos os estádios, aquários, museus, que têm janelas? Todas as pessoas com áreas de exibição pública agora correm o risco de serem processadas, e o assunto quase certamente terá que ser resolvido em cada julgamento.
Em resposta a este argumento, os que sustentam a decisão da Suprema Corte, afirmam que casos extremos de visão de um lugar mais alto podem afetar a fruição da propriedade da mesma forma que ruídos. Ser observado pode afetar o uso do espaço físico mais do que os cheiros. Ruídos intensos podem significar que não se pode fruir o imóvel para fins comuns, como descanso ou recreação. Mas, igualmente, existem usos perfeitamente normais que alguém pode querer fazer de sua terra que se tornam menos atraentes ou impossíveis porque alguém está sendo vigiado. Em um singelo exemplo: muitos moradores de um prédio serão mais capazes de tirar uma soneca ao meio-dia, apesar do barulho alto da fábrica, do que aqueles capazes de fazê-lo sabendo que metade de Londres os está observando dormir!
Outrossim, se derivarmos o conceito indeterminado de "superobservador" para outras demandas, mesmo que os futuros demandantes sejam derrotados no julgamento porque à luz de todas as provas o ilícito não é suficientemente grave (seria necessária a potencial intrusão sobre 10 pessoas, 100 pessoas, 1 milhão de pessoas?), a ameaça de um processo sobre qualquer plataforma de exibição será certamente suficiente para dissuadir uma série de empreendedores. A tragédia consistirá no empobrecimento dos espaços públicos em benefício de um grupo de proprietários que desejam viver em uma bolha de vidro e depois se opõem a que as pessoas olhem para eles.
Analisando as dificuldades práticas da própria liminar (injunction), a Suprema Corte deixou para o tribunal inferior, a tarefa de determinar se há interesse público em manter a galeria com vistas de 360 graus. Caso a liminar seja concedida, será para impedir as vistas no lado sul por meio de persianas ou paredes e durante todo o tempo em que a galeria de visualização estiver aberta. Todavia, se o incômodo só surgir após uma certa intensidade de uso, então um fechamento permanente para o lado sul pode ser arbitrário. Outra alternativa seria limitar o número de frequentadores a qualquer momento (abaixo do limite atual de 300), ou ao longo do dia, à área de exibição. Sendo denegada a liminar, no tocante a indenização pela manutenção do status quo, os percalços não são menores: a condenação pecuniária será prospectiva. Assim, como o valor seria colocado no título para vincular os proprietários subsequentes? Será a base financeira o declínio nos valores de mercado ou na receita de aluguel das unidades afetadas em comparação a outras não sobrecarregadas com a intrusão visual? Ninguém sabe como esse cálculo seria feito. A indenização pode ser tão vultosa que talvez a Tate simplesmente opte por aceitar a liminar exigindo que seja interrompida a visualização pelo lado sul.
Ninguém pode negar que o valor dos apartamentos vizinhos será reduzido porque vistos por cima. Contudo esta não é a essência do ilícito de nuisance. Se houver perda econômica consequente ou outra que seja ressarcível, pode haver discussão no âmbito do dano patrimonial. Em uma analogia radical, se o meu vizinho for um ativista proeminente da Ku Klux Klan, isso também pode me causar um sofrimento terrível, diminuir o valor de minha propriedade e ser algo que eu preferiria profundamente que ele não fizesse, a ponto de fazer com que eu me mude. Mas não interfere na minha aptidão física de usar o espaço a que tenho direito e, portanto, não é um incômodo privado (private nuisance).
Hipótese distinta de ilícito se dá quando alguém é visto em um espaço privado quando preferiria que isso não ocorresse. Ilustrativamente, se alguém instalar uma câmera de vídeo fora de um quarto de hotel que estou dividindo com a minha parceira para espiar pelas cortinas, a lei pode considerar isso uma violação ao direito de privacidade. Mas não é um ilícito simplesmente pelo fato de alguém titularizar qualquer direito em relação ao quarto de hotel, ou seja, em relação à coisa física, o espaço, que é objeto de direito. Uma vez que começamos a proteger direitos não titulados, como não ser olhado (também conhecido como privacidade), perde-se a justificativa para o reclamante tutelar um real interesse proprietário.
Porém, não podemos olvidar que existem precedentes na Suprema Corte. Lord Goff em Hunter v Canary Wharf (1997)1 baseou-se explicitamente na ideia de uma emissão negativa, deixando espaço para essa possibilidade: "…De fato, para que uma ação de perturbação privada mencione a respeito da interferência com o usufruto de sua terra pelo autor, ela geralmente surgirá de algo que emana da terra do demandado. Tal emanação pode assumir muitas formas - ruído, sujeira, fumaça, um cheiro nocivo, vibrações e coisas do gênero. Ocasionalmente, as atividades nas terras do réu serão tão ofensivas para os vizinhos que constituem um incômodo acionável, como em Thompson-Schwab v. Costaki [1956],2 onde a visão de prostitutas e seus clientes entrando e saindo de instalações vizinhas se enquadrava nessa categoria. Esses casos devem, no entanto, ser relativamente raros". Contudo, mesmo neste caso excepcional, é a visão de atividades ofensivas, que pode ser tida como interferência, o que é muito diferente de alguém olhando para você. Ademais, ao contrário do ruído, cheiros, vibrações, etc, os casos de sex shop e bordel devem ser tratados como de public nuisance (perturbação pública), nada tendo a ver com o espaço físico a que o reclamante tem direito.
Colha-se ainda como precedente o caso Motherwell v Motherwell (1976)3, envolvendo telefonemas de assédio. Baseando-se particularmente nos antigos casos de "vigiar e assediar", Clement JA refere-se ao princípio de que atos de outra forma legais podem se tornar ilegais "pelas circunstâncias em que são executados, como tempo, local, extensão ou a forma de execução." Ele conclui que "a referência frequente nos casos a perturbações emanadas da terra dos réus reflete apenas as circunstâncias dos fatos particulares perante o tribunal, não uma limitação intencional do alcance do princípio" para permitir uma reclamação por nuisance por invasão de privacidade através de abuso do sistema de comunicações telefónicas.
Ou seja, atualizando o conceito de "nuisance", a luz daquilo que nos sistemas do civil law se enquadraria no modelo do abuso do direito, devemos indagar: alguém acha certo que a Tate construa uma plataforma de observação permitindo que centenas de milhares de pessoas olhem para os apartamentos ao lado, forçando essas pessoas a mudar a forma como usam sua propriedade? A evidência parece esmagadora de que o público na plataforma de observação da Tate está destruindo a capacidade dos proprietários dos apartamentos de desfrutar de sua propriedade. As áreas de estar dos apartamentos dos reclamantes estão sob observação constante da galeria de observação da Tate durante grande parte do dia, todos os dias da semana; o número de espectadores está na casa das centenas de milhares a cada ano; e os espectadores frequentemente tiram fotos do interior dos apartamentos e às vezes as publicam nas redes sociais. Não é difícil imaginar como seria opressivo viver em tais circunstâncias para qualquer pessoa comum - como estar em exibição em um zoológico. Não é de surpreender que o juiz tenha concluído que esse nível de intrusão visual seria razoavelmente considerado pelo proprietário como uma intrusão material em sua residência. Nesse caso, o conceito do ilícito de interferência substancial no uso e gozo da se desenvolve para resolver problemas como este.
Enfim, O problema de solucionar hard cases por meio da “razoabilidade” é óbvio. Uma vez que o tribunal ordene que meu vizinho não olhe para minha propriedade, isso demandará a execução de um planejamento com árduos limites sobre o que é aceitável ou não em termos de interferência. É justamente por isso e por todos os argumentos favoráveis e contrários à pretensão que a decisão sob exame foi dividida em 3:2.
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1 Disponível aqui. Uma grande torre foi construída na área de Docklands, no leste de Londres, que agora atende pelo nome de One Canada Square. Foi construída pela Canary Wharf Ltd. A torre tinha 250 metros de altura e foi concluída no final de 1990. Sua localização era muito próxima (a menos de 10 quilômetros de distância) do principal transmissor de televisão da BBC, localizado no Crystal Palace. Como resultado, a torre interferiu na recepção de televisão de um grupo de moradores da Isle of dogs. Essa interferência foi corrigida em abril de 1991 por meio da instalação de um retransmissor de transmissão na Balfron Tower. A ação arguiu perturbação privada durante o período em que a interferência foi sentida. 690 reclamações foram feitas contra a Canary Wharf Ltd por esses motivos. Além disso, 513 reclamações foram iniciadas contra a London Docklands Development Corporation por danos sofridos pelo excesso de poeira que emanava do canteiro de obras. Alguns dos reclamantes eram proprietários ou inquilinos, mas outros não tinham nenhum interesse de propriedade.
2 Disponível aqui. Em Chesterfield, em uma rua nobre do West End, dois homens chamados Frank e Harold Thompson-Scwab moravam nessa rua com sua família, incluindo um filho pequeno. Blanche Costaki e um amigo moravam na mesma rua. Ambas eram prostitutas. O reclamante (Thompson-Schwab) ficou chateado ao ver as prostitutas entrando e saindo regularmente das instalações do réu (Costaki). Eles viam regularmente as mulheres encontrando muitos homens, então decidiram buscar uma liminar dos tribunais para impedir tais condutas, argumentando que o gozo de sua casa estava sendo interferido ao ver a atividade ilícita do réu. Eles também argumentaram que a área em que viviam era boa e que viam esse tipo de atividade como interferência no “gozo cómodo e conveniente” dos bens do reclamante. Os tribunais também consideraram a ideia de que esse tipo de atividade poderia ter um impacto na futura moralidade da rua
3 Disponível aqui. Este caso surgiu de um pedido de indenização e uma liminar contra o réu por assediar os queixosos em sua casa por abuso do sistema telefônico. O réu era parente dos queixosos e os assediou fazendo um número excessivo de ligações telefônicas para os queixosos, às vezes até 30 ligações por hora. O objetivo de muitas ligações para seu irmão era difamar sua cunhada. O tribunal de primeira instância concedeu aos autores nominal damages e uma liminar que impediu o réu de assediar os autores por telefone e por contato pessoal. Em apelação ao Tribunal de Apelação de Alberta, o recurso foi indeferido e o julgamento do tribunal de primeira instância foi confirmado. O Tribunal de Apelação de Alberta declarou que os atos do réu constituíam uma invasão da privacidade dos queixosos. O Tribunal de Apelação de Alberta declarou que os atos do réu constituíam uma interferência real no conforto ou conveniência de viver de acordo com os padrões do homem comum.