Direito Privado no Common Law

Fronteiras do direito do consumidor – Parte II

O projeto do padrão ótimo, depende tanto da distribuição dos diferentes tipos de consumidores, quanto da distribuição dos custos de informação entre os consumidores.

6/2/2023

Introdução

Em 18 de abril de 2017, Oren Bar-Gill fez uma palestra na Faculdade de Direito de Harvard intitulada "Fronteiras do Direito do Consumidor", por ocasião de sua nomeação como professor de Direito e Economia William J. Friedman e Alicia Townsend Friedman.

Apesar de passados cinco anos desde a palestra, o seu conteúdo segue sendo extremamente atual e de altíssima qualidade. Pela atualidade e qualidade do conteúdo, iniciei no fim do ano passado uma série de colunas para trazer esse conteúdo para o público brasileiro.

Na palestra, Oren Bar-Gill apresenta os pontos de partida do problema no direito do consumidor, que são informação imperfeita e racionalidade imperfeita. Para combater isso, ele também apresenta quatro promissoras categorias de técnicas regulatórias que estão na fronteira da regulação dos mercados de consumo: (i) novos deveres de informação, (ii) regras padrão (default rules); (iii) limites de preços e (iv) a teoria contratual.

Na primeira coluna, tratamos dos deveres de informação, mais especificamente das divulgações inteligentes (smart discloures) e problema de falsa inferência e das divulgações voltadas ao Sistema 11.

A presente é a segunda coluna, na qual vamos tratar das regras padrão (default rules).

Regras padrão (default rules)

A segunda ferramenta regulatória são as regras padrão ou supletivas. As regras padrão têm sido usadas cada vez mais por formuladores de políticas públicas (policy makers). E, em muitos casos, essas regras são muito poderosas.

Um bom exemplo disso é o estudo de Johnson e Goldstein sobre o uso de regras padrão no contexto de doação de órgãos2. Neste estudo, os autores demonstraram que os países que adotaram por regra padrão a doação de órgãos tinham uma percentagem bem mais elevada de doadores em sua população em comparação com países que adotaram como regra padrão a não doação de órgãos.

Nos países que adotaram por regra padrão a não doação de órgãos, quando uma pessoa vai tirar a carteira de motorista, ela preenche um formulário. E uma das perguntas do formulário é: “se você quer ser um doador de órgãos, marque a caixa aqui”. Nos países que adotaram por regra padrão a doação de órgãos, a pergunta era diferente: “se você não quer ser doador de órgãos, marque a caixa aqui”.

E acontece que essa mudança de padrão tem um efeito enorme. É basicamente quase tão forte quanto uma regra impositiva. E, claro, o impacto desse tipo de política em termos de vidas salvas é muito importante. Portanto, este é um exemplo de uma regra padrão que é muito poderosa, ou também pode-se dizer muito “aderente”, o que significa que apenas algumas pessoas optam por sair do padrão.

Mas os padrões nem sempre são “aderentes”. Por exemplo, nos EUA, quando se abria uma conta corrente em um banco, a regra tradicional era a de que o consumidor obtinha automaticamente uma proteção contra falta de fundos (overdraft protection), o que no Brasil é chamado de “cheque especial”. E isso significa que se o consumidor usar seu cartão de débito e acabar gastando mais dinheiro do que há na conta, o banco vai honrar e permitir essa compra, mas é claro, cobrar uma taxa por isso. Portanto, esta era a proteção e esse foi o padrão por muitos anos.

Há alguns anos, a regra nos EUA mudou. O padrão foi alterado de “com proteção” para “sem proteção”, isto é, o padrão passou de “com opção de cheque especial” para “sem opção de cheque especial”. E agora os consumidores precisam optar deliberadamente pela opção de cheque especial. Esse padrão, no entanto, foi muito menos “aderente” do que o padrão de doação de órgãos. Isso porque um número muito grande de consumidores passou a optar expressamente pelo cheque especial. E a pergunta que fica é: por quê? Por que um padrão é tão “aderente” e outro não?

Uma explicação é que os bancos investiram muito dinheiro e esforço para garantir que os consumidores optassem pelo cheque especial, porque ganham muito dinheiro com as taxas associadas a esse recurso. Essa é então uma explicação que provavelmente contém alguma carga de verdade.

Mas também é verdade que não se tem ainda uma boa teoria das regras padrão. Em um artigo recente, Oren Bar-Gill e Omri Ben-Shahar começaram a desenvolver uma tal teoria3. Para eles, esta teoria é baseada na suposição de que os consumidores inicialmente são muitas vezes desinformados sobre aspectos importantes da decisão. Então, em particular, eles assumem que existem dois tipos de consumidores. Alguns consumidores realmente não precisam e não querem opção de cheque especial. Outros consumidores querem e precisam dessa opção. Mas, inicialmente, os consumidores não sabem se fazem parte do primeiro ou do segundo grupo. Eles podem não saber exatamente qual é o custo do cheque especial – como essas taxas são calculadas, quão altas elas são. Eles também podem não saber qual é a probabilidade de precisarem sacar mais dinheiro do que dispõem em sua conta corrente. Com que frequência isso acontecerá? Eles terão outro método de pagamento disponível ou não?

Portanto, essas informações não estão muitas vezes disponíveis para os consumidores inicialmente. Mas eles podem obter essa informação. Eles podem investir tempo e esforço, às vezes dinheiro, para se informar. E um outro tipo de elemento dessa análise é que esses custos de informação são heterogêneos. Para alguns consumidores, eles podem se informar muito rapidamente com um custo muito baixo ou com baixo investimento. Para outros consumidores, pode ser difícil e caro se informar.

Um dos resultados dessa análise é que a de que, alguns consumidores, aqueles geralmente com custos de informação menores, eles serão informados e, se descobrirem que fazem parte do grupo que se beneficia com a opção do cheque especial, optarão por sair da nova regra padrão e obterão a proteção de que precisam. E essa teoria também diz, ou permite prever, que tipo de padrão e quais tipos de mercados serão mais “aderentes” e quais padrões serão menos “aderentes”, ou mesmo algo “escorregadios”.

E tudo isso depende da distribuição dos custos de informação. Se muitos consumidores tiverem baixos custos de informação, os padrões serão mais “escorregadios”. Se mais consumidores tiverem custos de informação mais altos, os padrões serão mais “aderentes”.

Esse tipo de estrutura também permite fornecer orientação aos formuladores de políticas públicas sobre como escolher o padrão ideal. O padrão ideal é com opção de cheque especial ou o padrão ideal é sem opção de cheque especial?

E novamente, essa escolha, ou o projeto do padrão ótimo, depende tanto da distribuição dos diferentes tipos de consumidores, quanto da distribuição dos custos de informação entre os consumidores.

Na próxima coluna trataremos da terceira ferramenta regulatória, que são os limites de preços.

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1 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/377677/fronteiras-do-direito-do-consumidor--parte-i

2 JOHNSON, Eric J.; GOLDSTEIN, Daniel G. Do Defaults Save Lives?. Science, vol. 302, p. 1338-1339, 2003.

3 BAR-GILL, Oren; BEN-SHAHAR, Omri. Rethinking Nudge: An Information-Costs Theory of Default Rules (April 24, 2020). Forthcoming in the University of Chicago Law Review, Harvard John M. Olin Discussion Paper n. 1031, U of Chicago, Public Law Working Paper n.. 744, University of Chicago Coase-Sandor Institute for Law & Economics Research Paper n. 906, Harvard Public Law Working Paper n. 20-39.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.