Direito Privado no Common Law

A responsabilidade civil do Estado por prisões indevidas nos EUA e no Brasil - Parte I

Nesta primeira parte da coluna, analisaremos de que forma o sistema norte-americano vem lidando com as pretensões reparatórias fundamentadas em prisões manifestamente indevidas.

12/12/2022

As pretensões indenizatórias fundadas em encarceramento injusto        

Um dos mais influentes líderes negros dos EUA na luta contra o racismo, Malcolm X foi assassinado diante de centenas de pessoas em Nova York enquanto se preparava para discursar, em 1965. O assassino, Mujahid Abdul Halim, foi preso no local.

Mesmo diante da confissão de Halim, duas semanas depois do assassinato foram presos também Muhammed Aziz e Khalil Islam. Ambos foram processados e condenados à prisão perpétua pelo mesmo crime. Durante a batalha judicial objetivando provar suas inocências, Aziz (atualmente com 83 anos) foi libertado em 1985 e Islam, solto em 1987, morreu em 2009 sem ter sido até então inocentado formalmente.

Apenas em 2021, decorridos mais de 50 anos do crime e após inúmeras reviravoltas envolvendo o caso, a Suprema Corte de Nova York anulou as condenações de Muhammad A. Aziz e do falecido Khalil Islam. Durante a sessão de rejulgamento, a juíza Ellen N. Biden afirmou, “lamento que o tribunal não possa desfazer totalmente os erros judiciais desse caso e devolver os anos que foram perdidos aos acusados”.1

As pretensões indenizatórias de Aziz e de Islam foram fundamentadas em acusação maliciosa, denegação de direitos processuais e má conduta do governo, tendo sido imputadas acusações contra o Departamento de Polícia de Nova York e o escritório do promotor público de Manhattan de retenção de provas e coação de testemunhas para prestarem depoimentos falsos.

O caso foi recentemente encerrado por meio de um acordo, pelo qual se estipulou em favor de Muhammad Aziz e à família de Khalil Islam uma indenização de US$ 36 milhões (US$ 26 milhões a serem pagos pela cidade de Nova York e US$ 10 milhões pelo Estado de Nova York).

Trata-se apenas de mais um, dentre os inúmeros e crescentes casos de indenização estatal por erro do sistema de justiça criminal dos EUA,2 acarretando prisões indevidas a acusados, algumas vezes por décadas.3

Todavia, a gradativa evolução tecnológica (tal como os exames de DNA) e a persistência de advogados e de entidades não-governamentais na revisão das condenações injustas têm viabilizado anulações de processos penais ou absolvições, surgindo, então, as pretensões reparatórias cíveis.

A responsabilidade civil do Poder Público pelos encarceramentos indevidos levanta relevantes debates, seja quanto aos procedimentos (administrativos, judiciais e legislativos) adequados para o processamento dessas pretensões, seja quanto à forma de reparação e à quantificação dos valores devidos.  

Nesta primeira parte da coluna, analisaremos de que forma o sistema norte-americano vem lidando com as pretensões reparatórias fundamentadas em prisões manifestamente indevidas. Na segunda parte, analisaremos o mesmo tema sob a perspectiva do sistema de justiça brasileiro.               

Innocence Project e The National Registry of Exonerations 

A crescente preocupação com condenações criminais injustas e com a necessidade de amparar adequadamente os presos tem fomentado a atuação de entidades não-governamentais e o cadastramento de dados a respeito dos casos revistos ao redor do mundo.

Desde os anos 1990, mais de 60 organizações que se propõe ao assessoramento das vítimas de prisões indevidas já se estabeleceram nos EUA (California, Ohio, Washington, Florida, Arizona e New York) e em outros países (Argentina, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia e Holanda)4, inclusive no Brasil.5

Em 1992, um grupo de advogados, acadêmicos e pesquisadores norte-americanos criaram o Innocence Project - um projeto que objetiva a reforma do sistema de justiça criminal dos EUA e que sustenta a reversão de condenações injustas, buscando libertar pessoas presas em prol das quais subsistam provas técnicas robustas e seguras que evidenciem suas inocências.    

Os advogados que integram o projeto representam clientes ao longo do país, buscando a reversão de condenações criminais por via de exames de DNA (DNA-based reinvestigations), para além de prestar consultoria jurídica aos advogados principais.

Segundo dados do Innocence Project, até o momento, com o apoio do projeto, 375 presos nos Estados Unidos tiveram suas condenações revertidas (foram “exonerados”) com base em testes de DNA, incluindo 21 acusados que cumpriram pena no corredor da morte.6

Através do National Registry of Exonerations, os EUA vêm cadastrando os casos de presos que foram postos em liberdade após serem inocentados ou terem suas condenações anuladas com base em novas evidências técnicas ou comprovação de abusos do sistema acusatório. O registro fornece informações detalhadas sobre todas as exonerações conhecidas nos Estados Unidos desde 1989, mantendo também um banco de dados mais limitado de exonerações conhecidas anteriormente.7

De 1989 até julho de 2022, um total de 3302 casos de exoneração foram registrados. Só neste ano, 367 casos foram cadastrados, número muito maior do que a média anual até então registrada (200 casos por ano).

Se a imediata devolução da liberdade para os acusados indevidamente encarcerados constitui pretensão prioritária, não menos relevante é lhes viabilizar meios para a sempre difícil readaptação social. Após longos anos de cárcere, os egressos do sistema penitenciário (invariavelmente já vulneráveis antes da prisão) enfrentam a realidade de uma nova vida sem dinheiro, sem moradia, sem trabalho e sem qualquer credibilidade social.

Por isso, diversas empresas financeiras norte-americanas vêm explorando esse nicho de mercado, emprestando aos exonerados quantias expressivas para que consigam reconstruir suas vidas o mais rápido possível. Assim, os exonerados (cujos ressarcimentos por prisão indevida são praticamente certos) passam a constituir verdadeiros profit centers, financiando uma espécie de antecipação da futura reparação civil a taxas de juros por vezes extorsivas.8

Procedimentos indenizatórios

Existem, fundamentalmente, três formas para se requerer uma indenização por prisão indevida nos EUA: por procedimentos administrativos (state statutes), por ações judiciais (civil lawsuits) e por previsões legislativas especiais (private bills).

A primeira forma (state statutes) pode ser compreendida como administrativa, baseando-se em legislações estaduais e federal que preveem procedimentos de compensação por prisões injustas. Até junho de 2022, trinta e oito Estados e o Distrito de Columbia adotavam esse regime indenizatório.9

Os estatutos variam de Estado para Estado, sendo diversos os critérios elencados para o deferimento das compensações, assim como a entidade designada para deliberar sobre o requerimento de indenização (órgãos administrativos ou as próprias Cortes estaduais ou federais).

Em regra, o requerente não precisa provar qualquer conduta indevida do sistema acusatório do Estado, necessitando demonstrar, todavia, que foi encarcerado pela acusação da prática de um crime e que houve sua subsequente absolvição criminal.

Em alguns Estados exige-se que o requerente não tenha contribuído para a acusação ou para a condenação (declarando-se culpado, por exemplo). Ou seja, se em qualquer momento o acusado aceitou um acordo criminal para redução de pena, mediante assunção de culpa, não terá direito a qualquer indenização administrativa, ainda que revertida sua condenação posteriormente.10

A ilegitimidade desse critério - que nega compensação ao acusado ainda que seja absolvido -, intensifica ainda mais os debates envolvendo as diversas modalidades de acordos criminais e suas consequências (Plea Bargaining). Trata-se de instrumento processual que almeja uma suposta composição “consensual” entre a acusação e o acusado, mediante acordo que pode reduzir as penas ou evitar outras imputações criminais, caso o acusado se declare culpado.

Por outro lado, alguns Estados exigem em seus estatutos que o requerente obtenha um perdão governamental, que a exoneração seja baseada apenas em evidências de DNA, ou que o requerente não tenha condenações criminais anteriores.

Por fim, alguns Estados condicionam o deferimento da indenização à renúncia do requerente ao seu direito de mover ações judiciais contra entidades ou agentes governamentais, ou exigem o reembolso das quantias pagas, caso posteriormente o exonerado obtenha uma indenização maior por meio do processo judicial.

A segunda forma de se obter uma indenização por prisões injustas se dá através de uma ação judicial (civil rights suit), movida geralmente em um Tribunal federal, com fundamento na violação dos direitos dos acusados presos ao devido processo legal ou em novas provas que demonstrem suas inocências.

Ao contrário das reivindicações sob os estatutos de compensação, essas ações judiciais se fundamentam na culpa grave (ou dolo) que orientou as autoridades públicas que integram o sistema de justiça criminal quanto às investigações, acusação ou julgamento de um caso criminal, acarretando encarceramento injusto. Com muita frequência, a motivação das demandas ressarcitórias se baseia na grave violação do devido processo legal dos acusados.

 A imensa maioria dos processos judiciais indenizatórios por prisões indevidas é solucionada por via de acordos com alguns ou com todos os réus.11

A terceira forma de obtenção de indenização por encarceramento indevido se dá pela aprovação de leis especiais que determinem reparação específica a casos concretos (private bills).

Como não é difícil compreender, trata-se de hipótese de difícil implementação, na medida em que depende da discricionariedade parlamentar de cada entidade política dos EUA. Essa “indenização legislativa” depende de forte influência política e da sujeição das vítimas a longos prazos de tramitação dos procedimentos legislativos. 

Assim, esse método nunca se revelou um caminho eficiente, previsível ou sustentável para compensação, sendo gradativamente abandonado em virtude da adesão da maioria dos Estados aos estatutos de compensação12 e do aumento do número de exonerações ocorrendo a cada ano nos EUA.13

A quantificação das indenizações

A compensação por encarceramentos indevidos nem sempre é realizada pecuniariamente. Alguns Estados preveem formas não compensatórias aos requerentes, oferecendo-lhes serviços sociais especiais, tais como formação educacional e profissional, acesso a cuidados de saúde e apoio à habitação.14

Relativamente às indenizações pecuniárias, os estatutos de compensação estabelecem métricas compensatórias próprias. Na maioria das vezes, há previsão de pagamento único ou de valores anuais.

No âmbito federal, em 2004, o Congresso norte-americano aprovou um estatuto próprio (Justice for All Act), garantindo aos indivíduos exonerados pela suposta prática de crimes federais indenização de US$50.000 por ano de encarceramento indevido, e US$100.000 por ano aos que aguardavam presos injustamente no corredor da morte.

 Muitos estatutos estaduais são geralmente iguais à métrica federal15, com alguns aumentos permitidos em função da inflação.16

Ainda assim, os valores indenizatórios a partir dos parâmetros previstos nos estatutos estaduais variam consideravelmente. O Estado de Wisconsin, por exemplo, paga US$5.000 por ano de encarceramento indevido, até o limite de US$ 25.000. O Estado do Texas, em contraste, paga US$ 80.000 por ano como um montante fixo, acrescidos de uma anuidade.17

Já em ações movidas judicialmente, os valores são muito variados, tomando por base o tempo em que os exonerados foram injustamente encarcerados, os danos materiais e pessoais sofridos e o grau de censurabilidade da atuação do sistema de justiça acusatório.

De acordo com o professor Jeffrey Gutman, da George Washington University, um total de US$ 2,65 bilhões já foram pagos nos EUA a 716 presos exonerados registrados no National Registry por via de ações judiciais (normalmente, através de acordos). Isso implica uma média indenizatória de $3.7 milhões por caso, e aproximadamente US$318.000 por ano de prisão indevida.

Uma das maiores indenizações judiciais em prol de exonerados foi a fixada em 2007, no importe de US$ 101,7 milhões, concedidos a Peter Limone, Joseph Salvati, Louis Greco e Henry Tameleo (Salvati e Tameleo foram exonerados postumamente).18

Dentre os maiores veredictos fixados para um único exonerado, destacam-se os US$ 41milhões concedidos a Jeffrey Deskovic em 2014 e, mais recentemente (2021), os US$ 25,2 milhões fixados em proveito de Eddie Bolden, em Illinois.

E no sistema de justiça brasileiro? Como se processam as pretensões de indenização por prisões injustas?

Será o tema da nossa próxima coluna.

__________

1 The New York Times. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022.

2 O primeiro caso de erro judicial registrado nos EUA, que levou à prisão acusados inocentes, ocorreu em 1806. Dominic Daley e James Halligan foram sentenciados à morte e executados pelo assassinato de Marcus Lyon. A exoneração dos acusados somente ocorreu no ano de 1984, conforme narrado por Delvac, Kelly Shea, "Liberty and Just [Compensation] for All: Wrongful Conviction as a Fifth Amendment Taking" (2022). Connecticut Law Review, 541. Disponível aqui. Acesso em 06 de dezembro de 2022.

3 Segundo dados do National Registry, até o momento, 3302 exonerações foram cadastradas, implicando aos acusados, no total, a perda de impressionantes 28.150 anos por prisões indevidas. Disponível aqui. Acesso em 06 de dezembro de 2022.

4 Conforme dados da California Innocence Project, disponíveis aqui. Acesso em 06 de dezembro de 2022.

5 Disponível aqui. Acesso em 07 de dezembro de 2022.

6 Innocence Project.  Fundado em 1992 por Barry C. Scheck e Peter J. Neufeld na Escola de Direito Benjamin N. Cardozo da Universidade Yeshiva, o projeto tornou-se uma organização independente sem fins lucrativos. Disponível aqui.  Acesso em 04 de dezembro de 2022.

The National Registry of Exonerations. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022.

8 Conforme reportagem do New York Times, essas empresas financeiras investem em casos de responsabilidade civil envolvendo reclamações contra seguradoras, casos de erro médico e de prisões indevidas, apostando nas futuras e quase certas indenizações, normalmente negociadas pelas vítimas por via de acordos. Os empréstimos às vítimas chegam a ser estipulados a taxas de até 33% ao ano. They Were Unjustly Imprisoned. Now, They’re Profit Centers. New York Times, ed. 27 nov. Disponível aqui. Acesso em 07 de dezembro de 2022.

Compensation for Exonerees. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022.

10 They Were Unjustly Imprisoned. Now, They’re Profit Centers. New York Times, ed. 27 nov. 2022. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022.

11 Compensation for Exonerees, Ibid., p. 02.

12 Ibid., p. 02.

13 Conforme sustenta Delvac, Kelly Shea, "Liberty and Just [Compensation] for All: Wrongful Conviction as a Fifth Amendment Taking" (2022). Connecticut Law Review, 541. Disponível aqui. 7 de dezembro de 2022.

14 O Estado de Montana, por exemplo, autoriza compensações mediante apoios comunitários sociais e educacionais, mas nenhuma indenização pecuniária administrativa. Will the state pay you for a wrongful conviction? Depends on the state. Disponível aqui. Acesso em 07 de dezembro de 2022.

15 GUTMAN, Jeffrey S. Are Federal Exonerees Paid? Lessons for the Drafting and Interpretation of Wrongful Conviction Compensation Statutes. The Cleveland State Law Review, v. 69, Issue 2, p. 01-57.

16 Ibid., p. 03.

17 Dados disponíveis aqui. Acesso em 05 de dezembro de 2022.

18 Ibid., p. 03.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.