Direito Privado no Common Law

Fronteiras do Direito do Consumidor – Parte I

Em uma serie de duas ou três colunas, o autor vai tratar do tema das fronteiras do direito do consumidor.

28/11/2022

Introdução

Em 18 de abril de 2017, Oren Bar-Gill fez uma palestra intitulada “Fronteiras do Direito do Consumidor”, por ocasião de sua nomeação como Professor de Direito e Economia William J. Friedman e Alicia Townsend Friedman, na Faculdade de Direito de Harvard1.

Apesar de passados cinco anos desde a palestra, o seu conteúdo segue sendo extremamente atual e de altíssima qualidade. Pela atualidade e qualidade do conteúdo, trago aqui nesta e na próxima colunas os principais temas que Bar-Gill aborda em sua palestra. Em uma serie de duas ou três colunas, vamos tratar do tema das fronteiras do direito do consumidor.

Pontos de partida do problema no direito do consumidor: informação imperfeita e racionalidade imperfeita

Oren Bar-Gill inicia sua palestra afirmando que “o problema no direito do consumidor começa com informação imperfeita e racionalidade imperfeita. E tudo isso parte de um mero fato, um fato realmente importante e básico: os contratos de consumo são exatamente o tipo de contratos que nós nunca lemos.”

“E por que nós nunca os lemos?”, questiona Bar-Gill. “Porque eles são muito longos”, responde ele. E prossegue: “Não é, portanto, surpreendente que os consumidores não os leiam. De fato, não faz sentido lê-los. Na verdade, é provavelmente irracional lê-los.”

Para ilustrar esse ponto, Bar-Gill apresentou uma foto do amigo Omri Ben-Shahar, professor da Universidade de Chicago, que imprimiu os “termos e condições” do iTunes, colou uma página na outra e as pendurou no teto da biblioteca da faculdade de Direito da Universidade de Chicago:

Um outro argumento é o da difícil compreensão dos contratos: “os consumidores também não os leem porque, mesmo que o fizessem, provavelmente não os entenderiam. O fato de que não entenderiam se lessem é uma boa razão para não ler. Agora, por que não entenderiam? Primeiro, por causa do uso de jargões jurídico que mesmo alguns advogados não entendem, muito menos pessoas leigas.”

Além disso, complementa Bar-Gill, mesmo enfocando os termos comerciais dos contratos, como preço, termos que os consumidores devem, de fato, notar e pesquisar quando estão comparando produtos, mesmo com relação a esses tipos de termos, seria muito difícil para eles entendê-los e considerá-los de forma racional em sua tomada de decisão como consumidores.

A razão para isso, argumenta Bar-Gill, “é que em muitos desses mercados de consumo, em muitos desses contratos de consumo, os termos de preço são multidimensionais e complexos a um nível muito difícil de entender.”

Segundo Bar-Gill, “esses problemas de informação imperfeita e racionalidade imperfeita levam a maus resultados nos mercados de consumo. Esta é a realidade onde fornecedores prometem muito em seus anúncios publicitários, mas depois tentam minar e limitar essas promessas nas ‘letras miúdas’ do contrato.”

Em face desses problemas, segundo Bar-Gill, as questões a serem enfrentadas pelo Direito são: “o que se pode e deve fazer sobre esses problemas? Quais são as ferramentas jurídicas e regulatórias à disposição para tentar proteger os consumidores e evitar que esses maus resultados ocorram?”

Há diversas ferramentas disponíveis no arsenal jurídico. Em sua palestra, Bar-Gill se concentra no estudo de quatro promissoras categorias de técnicas regulatórias que estão na fronteira da regulação dos mercados de consumo: (i) novos deveres de informação, (ii) regras padrão; (iii) limites de preços e (iv) a teoria contratual.

Na presente coluna, por questões de espaço, é apresentada apenas a primeira delas. As demais serão apresentadas nas próximas colunas.

Deveres de divulgação ou informação (disclosure mandates)

Há essencialmente duas grandes formas de divulgação ou de informação no direito do consumidor: uma primeira é a forma antiga, quando a lei obriga os fornecedores a apresentarem antecipadamente todos os termos do contrato, isto é, um tipo de divulgação obrigatória. Existem muitos exemplos que a lei exige uma divulgação muito extensa e demorada dos termos do contrato.

Segundo Bar-Gill, “hoje em dia está claro para todo mundo que isso é completamente inútil. É inútil pelo motivo mencionado acima, de que os consumidores não leem o contrato.”

Mas há novas formas de divulgação ou de informar os consumidores que podem realmente ajudar os consumidores. E é nelas, afirma Bar-Gill, que o foco deve ser então colocado.

Divulgações inteligentes (smart discloures) e problema de falsa inferência

Dentre essas novas formas, há as chamadas informações ou divulgações inteligentes (smart disclosures). Trata-se de breves divulgações resumidas que os consumidores podem ler e entender rapidamente.

Nos EUA, um exemplo desses tipos de divulgações é a caixa Schumer (Schumer box) para cartões de crédito. Uma caixa Schumer é uma tabela que aparece nos contratos de cartão de crédito que mostra informações básicas sobre as taxas e tarifas do cartão.2 Ainda nos EUA, outro tipo de nova divulgação seria um aviso de organismos geneticamente modificados (OGMs).

Como bem explica Bar-Gill, “este tipo de divulgação é muito diferente dos termos muito longos do contrato. Esses são avisos que os consumidores podem ver, entender e agir prontamente.” E, então, trata-se de divulgações que são eficazes, que podem realmente influenciar o comportamento dos consumidores.

Contudo, adverte Bar-Gill do seguinte: “Mas uma vez que se está no reino das divulgações que podem realmente influenciar o comportamento do consumidor, é muito importante que se tenha segurança de fazê-lo na direção certa. Há, então, desafios realmente importantes no design dessas informações.” Se elas não forem projetadas de maneira cuidadosa, resultados ruins podem ocorrer.

Um exemplo desse tipo de desafio é o problema de falsas inferências de deveres de informação3. Para entender esse problema, Bar-Gill explica que é preciso fixar a premissa de que o efeito que os deveres de divulgação têm no comportamento do consumidor “depende dos motivos que os consumidores atribuem aos reguladores que decidiram por esse novo tipo de divulgação. Então, pensando em particular nos avisos de OGMs, realmente importa qual é a razão, na mente do consumidor, pela qual o regulador decidiu exigir um aviso do tipo OGM.”

Bar-Gill ilustra essa ideia com o seguinte exemplo: “se os consumidores pensam que a razão pela qual um regulador exigiu esse tipo de aviso é porque o regulador obteve novas pesquisas sugerindo que os alimentos transgênicos são perigosos para a saúde ou para o meio ambiente, então os consumidores vão aumentar suas crenças sobre os riscos associados a esses produtos.” Por outro lado, “se os consumidores acreditam que o regulador, ao decidir sobre esse dever de divulgação, foi motivado por política, por pressão de grupos de interesse”, então tem-se um efeito muito diferente nas atitudes ou crenças de risco dos consumidores. E então, na verdade, o risco percebido diminui quando o regulador impõe a divulgação em vez da não divulgação”.

E agora vem a questão da falsa inferência: “o problema é que muitos consumidores têm falsas crenças sobre os motivos dos reguladores. Eles não sabem por que um regulador decidiu exigir a divulgação de OGM. Com efeito, no contexto dos OGMs [nos EUA], o problema era que muitos consumidores pensavam que a razão para a imposição de divulgação era pesquisa, quando na verdade não era.”

E isso causa, conclui Bar-Gill, um problema de falsa inferência. “De fato, faz com que os consumidores superestimem o risco associado aos alimentos OGMs, o que levará os consumidores a comprar menos desses alimentos transgênicos, o que é prejudicial aos consumidores e interfere na eficiência do mercado.”

Um outro motivo para a imposição desse tipo de dever de informação foi o direito de saber: de fato, “quando os reguladores americanos estavam considerando as divulgações de OGMs, muitos deles pensaram que o motivo ou justificativa para essa divulgação era um direito de saber, de ser informado. Eles pensaram que os consumidores têm um direito de saber o que estão comendo, independentemente de quaisquer riscos ou perigos associados a esse alimento.”

Diante disso, reflete Bar-Gill que, se um consumidor é racional e acredita que esse é o motivo, então ele não deveria alterar sua percepção sobre o risco do produto. Mas o que se percebe é que, na realidade, “há também um aumento mesmo quando os consumidores pensam que o motivo é um direito de saber”, de ser informado. Agora, de fato, pondera Bar-Gill, “pode ser que esses consumidores sejam imperfeitamente racionais. Pode ser que eles estejam confundindo o direito de saber com pesquisas realmente novas sobre danos causados por OGMs. Mas, por alguma razão, isso agrava o problema da falsa inferência e interfere na eficiência dos mercados.”

Em conclusão sobre esse ponto, Bar-Gill explica que isso não significa que “os deveres de divulgação sejam ruins. [...] Mas isso sugere que eles devem ser bem projetados, que se deve ter cuidado com as escolhas a respeito da divulgação ou da não divulgação de informações.”

Divulgações voltadas ao Sistema 1

Avançando de tema em sua palestra, Bar-Gill explica que o que foi dito até agora foi focando nos “deveres de divulgação que são projetados para facilitar o processo de pensamento deliberativo dos consumidores, usando o que os psicólogos chamam de processamento do Sistema 2. A ideia aqui é fornecer informações aos consumidores. Eles estão incorporando essas informações em seu processo de tomada de decisão deliberativa e, portanto, tomando esperançosamente decisões melhores.”4

“Mas há outro tipo de divulgação”, como explica Bar-Gill: “Há um tipo de divulgação que, em vez de invocar processos deliberativos do Sistema 2, na verdade visa a ativar o Sistema 1 intuitivo, emocional ou afetivo, processado em nosso cérebro. E então um excelente exemplo aqui são as divulgações gráficas, as imagens de advertência em maços de cigarro. Elas não são projetadas para fornecer informações de uma forma racional e deliberativa. Elas são fornecidas para provocar respostas emocionais, de medo e desgosto. Elas também são muito eficazes em influenciar o comportamento, mas através de um canal muito diferente.”

Conclusão

Em conclusão a essa primeira técnica regulatória, afirma Bar-Gill que, “quando se reúne esses dois tipos de divulgação, as divulgações inteligentes do Sistema 2 e também as divulgações do Sistema 1, nota-se que a divulgação pode ser muito eficaz em influenciar o comportamento. E isso é uma coisa boa. Mas também é algo que requer cautela e design deliberado por parte dos reguladores e formuladores de políticas públicas.”

Tradicionalmente, em face de um problema de assimetria informacional nos mercados de consumo, as pessoas sugeriam adicionar uma imposição de divulgação. E a imposição de dever de informação sempre foi pensada como um tipo de intervenção suave, um tipo de intervenção não paternalista nos mercados. No final das contas, a indústria ficava feliz com isso, porque realmente nada de efetivo havia sido feito. E legisladores, por sua vez, ficavam satisfeitos, com a impressão de que pelo menos estavam fazendo algo, mas sem realmente nada de determinante ter sido realizado.

Com relação à nova divulgação, isso não é mais verdade. Como visto, essas novas divulgações são muito poderosas para afetar os resultados do mercado. E assim não se pode mais pensar que isso é “apenas” informação ou divulgação. Elas passam a levantar, portanto, uma verdadeira questão de paternalismo. Mas isso não significa que elas não devem ser utilizadas, conclui Bar-Gill. “Significa apenas que devem ser utilizadas com cuidado.”

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1 A palestra está disponível no YouTube: “Frontiers of Consumer Law”.

2 “A caixa Schumer mostra informações sobre o custo do cartão para os consumidores, incluindo sua taxa percentual anual (TPA) para compras, TPA para transferências de saldo, TPA para adiantamentos em dinheiro, TPA de multa, período de carência, taxa anual, taxa de transferência de saldo, taxa de adiantamento de dinheiro, taxa de atraso de pagamento, taxa de excesso e taxa de pagamento devolvido. Os emissores de cartão de crédito devem incluir a caixa Schumer em todas as solicitações de cartão de crédito, seja a oferta online ou pelo correio.” (Para mais informações, clique aqui)

3 Oren Bar-Gill, Cass Sunstein e David Schkade tentaram entender, identificar e medir esse tipo de problema no seguinte artigo: BAR-GILL, Oren; SCHKADE, David; SUNSTEIN, Cass R.. Drawing False Inferences from Mandated Disclosures. Harvard Public Law Working Paper n. 17-06, Febr. 2017.

4 Sobre o tema dos Sistemas 1 e 2, cf. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.