- Introdução.
A presente coluna encerra uma série de quatro colunas sobre o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos no reconhecimento de direitos reprodutivos. Uma primeira coluna explicou os termos do julgamento proferido em 1973 no conhecido caso Roe v. Wade, introduzindo ao leitor os fundamentos judiciais.1 Uma segunda coluna aprofundou a discussão a partir da moldura analítica formulada pelo Professor Laurence Tribe, renomado constitucionalista e Professor da Universidade de Harvard, que considera que se trata de um conflito entre valores absolutos.2 Uma terceira coluna chamou a atenção para o impacto daquele caso para os debates sobre a proteção aos direitos fundamentais pela Suprema Corte e sobre a legitimidade moral e política das decisões judiciais.3 Nesse contexto, a presente coluna conclui esse ciclo de tratamento do tema dos direitos reprodutivos, apresentando para o leitor brasileiro os termos do julgamento de Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, que foi publicada no dia 24 de junho de 2022.
O objetivo da coluna não é obviamente encerrar o tema, até mesmo porque se trata de uma questão que permanecerá em aberto e que certamente terá novos capítulos no futuro, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Assim é que se pretende explicar os termos do julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos e indicar potenciais caminhos para que o tema venha a ser tratado no futuro. Nesse contexto, aliás, deve se salientar que tais objetivos são modestos e que não implicam em nenhum esforço de previsão de futuro, mas apenas e tão somente de trabalhar com possíveis cenários a partir do presente. A presente coluna será dividida em quatro partes. Além dessa introdução, será feita uma explicação da fundamentação jurídica adotada pela Suprema Corte. A partir dessa análise, serão apresentados futuros caminhos para a proteção dos direitos reprodutivos nos Estados Unidos e no Brasil. Finalmente, a última parte apresentará as considerações finais.
- Os Termos da Decisão e uma Análise Inicial da Fundamentação Judicial.
O julgamento dizia respeito a uma lei do Mississippi que proibia a prática de aborto após o decurso do período de quinze semanas desde a concepção, tendo a constitucionalidade dessa legislação sido questionada em juízo pela clínica de aborto ‘Jackson Women’s Health Organization’ e por um de seus médicos, que alegavam que estava sendo violados os precedentes da Suprema Corte que tinham estabelecido um direito constitucional ao aborto. Após decisões judiciais do juízo local e do tribunal reconhecendo a inconstitucionalidade da lei do Mississippi, o caso chegou até a Suprema Corte e o Estado de Mississippi então defendeu que os precedentes judiciais Roe e Casey tinham sido equívocos judiciais e que a lei seria constitucional conforme um juízo de racionalidade.
No julgamento, a opinião da maioria da corte foi no sentido de que a Constituição não confere um direito ao aborto, derrubando os precedentes judiciais de Roe e Casey, e devolvendo a autoridade para regular o aborto ao povo e a seus representantes eleitos.4 Para a maioria, a Constituição não faz nenhuma referência expressa a um direito de obter um aborto e tampouco tal direito estaria enraizado na história nacional e na tradição jurídica de proteção da privacidade e da liberdade nos Estados Unidos. Ao contrário, conforme a opinião da maioria, até o final do século XX, não existia nenhum suporte para o reconhecimento de um direito de aborto no direito constitucional e nenhuma Constituição Estadual trazia cláusula constitucional expressa nesse sentido. Para a maioria, Roe teria ignorado a história constitucional e Casey teria se recusado a reconsiderar a análise histórica errada de Roe.
Para a maioria, existe um conflito de interesses entre a mulher e a vida em potencial que pode ser avaliado de modo diferente pelo povo dos vários Estados e são os representantes eleitos de cada unidade da federação que devem decidir como o aborto deve ser regulado em cada local. A maioria não consegue identificar um fundamento para justificar a existência de um direito fundamental ao aborto como corolário do direito da privacidade ou do direito à autonomia, considerando que a questão moral crítica colocada pela discussão sobre o aborto deve ser tratada como uma questão política e não como uma questão judicial. Como os parâmetros estabelecidos pelo precedente Roe v. Wade se assemelham a um esquema legislativo e os fundamentos são os esperados de um corpo legislativo, a opinião da maioria afasta a tese de que o aborto seria possível quando o feto não tiver viabilidade e derruba o precedente. Como os parâmetros de Casey com relação a análise de um ‘ônus indevido’ é fraco em termos de operacionalização, a maioria também derruba esse precedente.
A conclusão da maioria é no sentido de que o aborto não é um direito constitucional fundamental, de modo que os Estados podem regular o aborto por suas razões legítimas e, quando tais razões são questionadas em termos constitucionais, o Poder Judiciário não pode substituir suas crenças sociais e econômicas pelo julgamento dos corpos legislativos. O direito de regular o aborto, assim como ocorre com outras leis relativas à saúde e ao bem-estar, estão sujeitas a uma presunção forte de validade. Em síntese, a Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regular ou proibir o aborto, de modo que a corte derruba seus precedentes e devolve tal autoridade para o povo e seus representantes eleitos. A maioria foi formada pelos Justices Alito, Thomas, Gorsuch, Kavanaugh e Barret. O Presidente da Corte, Chief Justice Roberts, concordou com o julgamento, mas não com a opinião e elaborou um voto independente para explicar que não considerava adequado derrubar os precedentes de Roe e Casey. Por sua vez, a opinião contrária da minoria foi subscrita pelos Justices Breyer, Sotomayor e Kagan.
A opinião da maioria escrita pelo Justice Alito foi justificada a partir da teoria constitucional do ex-Diretor da Faculdade de Direito de Stanford, John Hart Ely, desenvolvida em uma série de artigos acadêmicos e na obra Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.5 Além disso, o voto foi baseado em uma longa análise histórica para demonstrar uma tradição de proibição do aborto nos Estados Unidos nos séculos XIX e XX, o que é evidenciado por uma coleção de normas penais incriminadoras apresentadas sob a forma de apêndice ao voto. Além de aderir ao voto, o Justice Thomas acrescentou um complemento à opinião para afirmar seu entendimento de que deveriam ser derrubados todos os precedentes judiciais elaborados com base na cláusula do devido processo legal substantivo, já que ele considera que tal doutrina seria equivocada – ‘um oxímoro’, em sua opinião - e que somente existe um devido processo legal formal com garantias estritamente processuais. Para o Justice Thomas, também deveriam ser derrubados precedentes judiciais que consideraram inconstitucionais leis proibindo métodos anticoncepcionais, casamentos de mesmo gênero e sodomia, porque toda decisão com base no devido processo substantivo seria demonstradamente errônea.
Por sua vez, Justice Kavanaugh faz questão de adotar uma posição bastante diferente, pretendendo deixar claro que a decisão diz respeito somente ao tema do aborto e que, em sua visão, a Constituição não seria nem pró-escolha e nem pró-vida, mas neutra, não tendo lado e deixando a questão para ser resolvida pelo povo e seus representantes eleitos através do processo democrático em cada um dos Estados e no Congresso. Não caberia aos membros da Suprema Corte esvaziar o processo democrático e definir uma única política pública para os trezentos e trinta milhões de pessoas nos Estados Unidos. A questão deve ser deliberada no âmbito da política local pelo povo e seus representantes. Além disso, ainda que um Estado proíba o aborto, um cidadão não pode ser impedido de viajar para realizar o aborto em um outro local que autorize o aborto. Em sua opinião, uma solução uniforme para todo o país não fazia sentido e tornava impossível um compromisso político para o futuro, fazendo sentido que a corte derrube Roe para retornar ao compromisso político que existia anteriormente e que possibilitava uma variedade de leis e de regulações do aborto em todo o país.
Em sua opinião independente, o Presidente da Suprema Corte, Chief Justice Roberts, considera que o direito de escolha deveria ainda ter sido preservado pela Suprema Corte e que o caso não autorizava a derrubada completa dos precedentes judiciais Roe e Casey. Trata-se de um voto bastante técnico, em que ele explica que os termos iniciais da questão colocada pelo Estado de Mississippi tinham um escopo mais limitado e se reduziam a ‘esclarecer se as proibições do aborto antes da viabilidade do feto são sempre inconstitucionais’. O Chief Justice esclarece que somente após a decisão da Suprema Corte de aceitar julgar o caso é que o Estado do Mississippi afirmou que pretendia a derrubada completa dos precedentes Roe e Casey, sendo que seria possível julgar o caso e afirmar a constitucionalidade da lei apenas e tão somente pelo fato de que o período de quinze semanas seria suficiente para assegurar o direito de escolha. Para ele, a opinião da maioria acabou sendo um gambito contrário à prática de não estabelecer uma regra constitucional mais ampla do que aquela necessária e suficiente para o julgamento do caso. Portanto, por considerar que a lei do Mississippi preservava o direito de escolha, ele concorda com o resultado do julgamento, mas apresentou uma opinião independente por rejeitar a fundamentação da maioria.
Finalmente, o voto da minoria salienta que o governo não podia controlar o corpo de uma mulher ou o curso da vida da mulher e nem poderia determinar como o futuro de uma mulher será. A Suprema Corte já tinha estabelecido uma ponderação entre equilíbrios conflitantes ao definir que o Estado poderia proibir abortos após a viabilidade fetal, contanto que a proibição contivesse exceções para proteger a vida e a saúde da mulher. Por outro lado, até que a viabilidade fosse atingida, não poderia existir um obstáculo substancial ao direito da mulher. A nova decisão afetará desproporcionalmente mulheres pobres com dificuldade para viajar para outros Estados. Além disso, existe uma redução de direitos de mulheres e do seu status como cidadãos livres e iguais, já que até ontem a Constituição garantia a liberdade reprodutiva de cada mulher e hoje o Estado pode forçar uma mulher a dar a luz: “O Estado pode transformar o que, quando livremente acontece é uma maravilha em algo que, quando forçado, pode ser um pesadelo”.
- Presente e Futuro dos Direitos Reprodutivos nos Estados Unidos e no Brasil.
O julgamento foi mais um capítulo sobre a questão e certamente não um ponto final no diálogo judicial e político sobre os direitos reprodutivos das mulheres nos Estados Unidos e no Brasil. Trata-se de uma questão tão polêmica que uma minuta do voto da maioria foi tornado acessível ao público antes de ser tornado definitivo e oficialmente publicado em um raríssimo episódio de vazamento de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos antes do seu anúncio oficial.6 Não por acaso, a decisão mobilizou os movimentos políticos progressistas e conservadores, que se reuniram para respectivamente criticar e festejar os termos da decisão proferida pela maioria da Suprema Corte nesse caso.7 Em termos políticos partidários, a direita republicana buscou capitalizar o episódio, já que se tratava de um compromisso de campanha do ex-Presidente Donald Trump a pretensão de derrubar o direito constitucional ao aborto e suas nomeações de Justices conservadores foram decisivas para o resultado final.8 Por outro lado, o Presidente Joe Biden também se valeu de uma retórica política de defesa dos direitos reprodutivos das mulheres e do desenvolvimento de programas de apoio para que mulheres possam viajar para fazer abortos como uma estratégia para preservar sua maioria parlamentar nas eleições de 2022.9
No caso brasileiro, por sua vez, espera-se que a Presidente do Supremo Tribunal Federal deverá pautar o julgamento da ação que busca o reconhecimento dos direitos reprodutivos entre nós no próximo ano, antes de sua aposentadoria, para apresentar sua opinião.10 Antes da derrubada de Roe v. Wade, em julgamento pela 1ª Turma do STF em 2016, a Ministra Rosa Weber decidiu conforme o precedente judicial estadunidense, no sentido que o aborto não deve ser considerado crime, se praticado no primeiro trimestre da gravidez.11 Naquela ocasião, também votaram nesse sentido os Ministros Luís Roberto Barroso e Luís Edson Fachin.12 Contudo, a tendência da maioria da corte parece ser no outro sentido, isto é, de não reconhecer a existência de um direito constitucional ao aborto na Constituição brasileira.13
No caso brasileiro, poderia ser interessante uma decisão conforme os termos de Dobbs v. Jackson, que reconhecesse que uma solução uniforme para todo o país é uma solução inadequada e que, a exemplo do que ocorreu durante a pandemia da COVID-19, caberia a cada entidade da federação decidir como deve ser tratada essa questão de saúde pública. Uma decisão que reproduzisse os termos da decisão da maioria republicana na Suprema Corte não poderia ser acusada de ativista, já que caberia ao poder legislativo nos Municípios e nos Estados decidir pela existência ou não do direito reprodutivo. Caso o ente político não reconhecesse a existência do direito reprodutivo através de uma legislação local, subsistiria a possibilidade de incidência da lei penal incriminadora federal. Por outro lado, caso o ente político autorize a interrupção da gravidez como parte de sua política sanitária no âmbito local e regional, estaria afastada a possibilidade de incidência da norma penal incriminadora. A solução conservadora estadunidense de atribuir aos poderes legislativos à deliberação sobre a questão poderia ser importante para preservar o Supremo Tribunal Federal e possibilitar que os movimentos sociais se mobilizem em eleições locais e regionais para que a questão seja regulada conforme as necessidades de saúde pública das variadas regiões e cidades do país.
Considerações Finais.
O tema dos direitos reprodutivos é complexo, controvertido e difícil devido ao conflito entre valores absolutos. Na experiência dos Estados Unidos, o caso Roe v. Wade foi uma decisão judicial surpreendente e que motivou uma mobilização política para sua reversão e debates intensos sobre os valores em conflito, a questão da saúde e da vulnerabilidade da mulher ou da vida em potencial. A presente série de colunas procurou mostrar de modo analítico os termos da jurisprudência, dos debates acadêmicos e das discussões políticas sobre o aborto nos Estados Unidos, de modo a que o leitor brasileiro possa aprender mais a partir do direito comparado para refletir sobre os potenciais caminhos jurisprudenciais e políticos no Brasil. Com a reversão de Roe v. Wade e a inexistência de uma maioria favorável aos direitos constitucionais reprodutivos no Supremo Tribunal Federal, uma solução de atribuir a autoridade decisória para o poder legislativo de todas as unidades da Federação para deliberar sobre essa política pública poderia ser uma solução interessante de compromisso. Tal decisão poderia blindar o Supremo Tribunal Federal de críticas por reproduzir os termos da decisão da maioria conservadora nos Estados Unidos e ainda poderia viabilizar que o direito reprodutivo da mulher seja protegido naqueles locais em que assim decidir o Poder Legislativo municipal ou Estadual.
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1 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/372038/os-termos-da-decisao-da-suprema-corte-dos-estados-unidos
2 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/373666/o-conflito-de-valores-absolutos-o-debate-academico-sobre-roe-v-wade
3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/375359/deus-salve-a-suprema-corte-uma-breve-nota-sobre-o-poder-da-escolha
4 https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf
5 ELY, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Harvard University Press, 1980.
6 https://www.politico.com/news/2022/05/02/supreme-court-abortion-draft-opinion-00029473
7 https://www.bbc.com/news/world-us-canada-61788929
8 https://www.cnbc.com/2022/06/24/roe-v-wade-decision-trump-takes-credit-for-supreme-court-abortion-ruling.html
9 https://www.bbc.com/news/world-us-canada-62096252
10 https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2022/09/12/mesmo-no-comando-do-stf-rosa-weber-nao-deve-abrir-mao-da-acao-sobre-aborto.htm
11 https://veja.abril.com.br/saude/rosa-weber-que-ja-votou-pro-aborto-vai-relatar-acao-sobre-tema/
12 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345
13 https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2022/10/14/stf-tende-a-nao-descriminalizar-aborto-em-julgamento-esperado-para-2023.htm
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*Pedro Fortes é Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.