Direito Privado no Common Law

Deus salve a suprema Corte! Uma breve nota sobre o poder da escolha

Como a discussão política entre os partidários do movimento Pró-Vida e Pró-Escolha teve um impacto político partidário para a polarização entre os partidos majoritários e influenciou o processo eleitoral e de escolha dos Justices para a Suprema Corte nos Estados Unidos.

17/10/2022

A polêmica obra do professor Laurence Tribe sobre a política e a Corte

Introdução

Na coluna de dois meses atrás, o caso Roe v. Wade foi apresentado com uma descrição da decisão e análise inicial da fundamentação judicial daquele julgamento histórico de 1973.1 Na coluna do mês passado, foram explicados os termos do debate acadêmico estadunidense com base na perspectiva doutrinária do Professor Laurence Tribe sobre o aborto,2 tendo sido apresentada a discussão do seu Tratado de Direito Constitucional3 e sua visão mais específica sobre os direitos reprodutivos nos Estados Unidos desenvolvida em uma monografia escrita sobre esse tema.4

A presente coluna apresenta ao público brasileiro a seguinte questão: como a discussão política entre os partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice) teve um impacto político partidário importante também para a polarização entre os partidos majoritários – Republicanos e Democratas – e influenciou também o processo eleitoral e de escolha dos Justices para a Suprema Corte nos Estados Unidos. O ponto de partida para a presente coluna é a obra God Save This Honourable Court: How The Choice of Justices Can Change Our Lives, que pode ser traduzida como Deus Salve Essa Honorável Corte: Como a Escolha dos Ministros Pode Mudar Nossas Vidas.5

O relevante papel do Senado no controle da escolha presidencial: O devido exercício do controle político da Corte Suprema

O livro de Laurence Tribe pode ser considerado uma defesa da tese de que o Presidente dos Estados Unidos não pode estar completamente livre para realizar a nomeação de seus escolhidos para a Suprema Corte sem que exista um controle cuidadoso por parte do Senado Federal sobre as visões dos escolhidos sobre os temas constitucionais contemporâneos.6 Aliás, uma brincadeira que se fazia sobre esse livro e que eu ouvi quando fui aluno dele na Harvard Law School era de que o título queria dizer, na verdade, “Deus Salve Essa Corte Honorável de Ronald Reagan”, já que o livro foi escrito justamente durante o período em que o ator de Hollywood ocupava a cadeira presidencial e buscava realizar sua revolução conservadora nos Estados Unidos.

Até a publicação do livro em 1985, o 40º Presidente dos Estados tinha somente nomeado a Justice Sandra O’Connor para o cargo em 1981. Conforme já tínhamos esclarecido na coluna anterior, sua posição passou a ser decisiva para os casos relativos a direitos reprodutivos.7 Não raro, sua opinião passou a balizar os termos da proteção jurídica ao aborto nos Estados Unidos, já que ela preservou o núcleo principal da decisão de Roe v. Wade em uma série de julgamentos, ao mesmo tempo em que passou a considerar válidas algumas restrições, limitações ou condições para o exercício de direitos reprodutivos nos termos impostos por algumas leis estaduais.8

No primeiro julgamento proferido por ela sobre esse tema em 1983, com uma corte dividida ao meio, a imprensa estadunidense nos lembra que “todos presumiam que ela iria decidir pelo corte de Roe v. Wade”, mas Sandra O’Connor não seguiu esse caminho e, na realidade, resolveu apresentar uma fundamentação em separado, decidindo o caso concreto de modo muito específico e salientando que poderia existir uma oportunidade no futuro para tratar do tema com maior profundidade e escopo, mas que, em sua opinião, tal tempo ainda não tinha chegado.9

Após essa decisão, ocorreu uma reação conservadora dentro do Partido Republicando no sentido de que deveriam ser nomeados Justices com uma visão de mundo mais claramente contrária aos direitos reprodutivos e que pudessem vir a derrubar a decisão proferida pela corte em Roe v. Wade. Com a decisão de aposentadoria do então Chief Justice Warren Burger, o Presidente resolveu elevar William Rehquist para a condição de Presidente da Suprema Corte, sendo que ele tinha sido justamente o autor do voto vencido naquele julgamento de 1973, conforme explicamos em coluna anterior.10 A decisão senatorial sobre essa nomeação já mostrou que existia uma divisão em linhas políticas partidárias, tendo sido aprovado pelo placar apertado de 65 a 33. Para o lugar aberto pela elevação de William Rehnquist, foi unanimemente aprovado o Justice Antonin Scalia, que viria a ser um defensor vigoroso de uma teoria constitucional conservador denominada de originalismo.11

Por sua vez, com a aposentadoria de Lewis Powell Junior em 1987, Ronald Reagan resolveu nomear o Juiz Federal ultraconservador Robert Bork para substituí-lo. Nessa ocasião, Laurence Tribe assessorou o Senador Ted Kennedy, Democrata por Massachusetts, para que liderasse uma campanha contrária à nomeação de Bork para a Suprema Corte. Após o candidato ter prestado os esclarecimentos em sua sabatina sobre sua teoria constitucional conservadora, o Senador Kennedy declarou que num Estados Unidos em que Bork fosse membro da Suprema Corte mulheres seriam obrigadas a fazer abortos em clínicas clandestinas, pessoas pretas seriam segregadas em restaurantes e crianças não teriam lições na escola sobre a evolução das espécies.12 O Senado viria a rejeitar a nomeação por um placar de 58 a 42 votos, o que viria a levar o Presidente Ronald Reagan a ter que nomear um jurista mais moderado para aquela vaga.13

Por outro lado, aquela campanha contrária à nomeação também significaria que Laurence Tribe jamais seria nomeado pelos Democratas para a Suprema Corte, já que viria a sofrer idêntica resistência por parte dos Republicanos. De fato, o Professor da Harvard Law School viria inúmeros ex-alunos na corte e teria a oportunidade de litigar e ganhar dezenas de casos naquele Tribunal Superior, mas jamais seria indicado para compor a Suprema Corte dos Estados Unidos.14

A política do aborto: de um novo direito para uma nova direita.

Em sua monografia sobre o aborto como um conflito entre valores absolutos, Laurence Tribe identifica não somente uma guinada na jurisprudência constitucional da Suprema Corte dos Estados Unidos, mas também uma guinada política partidária.15 A partir de uma reação imediata e intensa da Igreja Católica, líderes religiosos chamaram Roe v. Wade de uma decisão horripilante e de uma tragédia, tendo sido cogitada inclusive a formalização de um pedido de excomunhão do único Justice católico na corte em 1973, ocorreu o surgimento de um movimento político de defesa do direito à vida.16 Líderes religiosos na cúpula da Igreja Católica nos Estados Unidos anunciaram que as visões da religião não tinham se alterado e que o aborto continuava a ser considerado um crime equivalente ao homicídio.17

A mobilização dos líderes religiosos católicos foi acompanhada pela mobilização de líderes políticos que começaram a preparar a estratégia política para que Roe v. Wade fosse derrubada.18 De um lado, no nível legislativo estadual, a estratégia de guerra passava pela criação de inúmeros obstáculos jurídicos e administrativos para restringir e inviabilizar o exercício do novo direito recém reconhecido pela Suprema Corte.19 Buscava-se impedir os abortos em uma zona cinzenta de constitucionalidade com períodos de espera de vinte-quatro horas, proibição de uso de recursos públicos, registro obrigatório de informações como pré-requisitos para abortos, exigências de vários exames médicos e regulações com consentimento de homens ou, no caso de gravidez de menores, dos seus pais.20

Por outro lado, após o impacto reduzido na campanha eleitoral de 1974, os líderes religiosos buscaram mobilizar todas as paróquias locais para que esse tema do aborto fosse decisivo na disputa político-partidária a partir da campanha nacional de 1976.21 Apesar de ter sua importância variável conforme a disputa e a conjuntura política e econômica, o tema se tornou uma parte permanente do debate político-partidário dos Estados Unidos desde a década de 1970. Aliás, não por acaso, Donald Trump prometeu que iria nomear magistrados que viriam a derrubar a decisão proferida pela Corte em Roe v. Wade,22 mas isso é o assunto da nossa próxima coluna.

Considerações finais

O caso Roe v. Wade deu origem à discussão política entre partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice), tendo o tema dos direitos reprodutivos e a visão sobre o aborto se tornado central nas sabatinas para nomeação de Justices para a Suprema Corte e nas campanhas político-eleitorais nos Estados Unidos. No final das contas, se Laurence Tribe exortava o Senado a salvar a Suprema Corte da Presidência da República na época em que Ronald Reagan era o Presidente, o precedente Roe v. Wade seria derrubado após as nomeações de magistrados conservadores por Donald Trump, o que será objeto da próxima coluna.

No caso brasileiro, por coincidência, no dia de escrita dessa coluna foi publicada uma reportagem com uma projeção de que o Supremo Tribunal Federal possui uma composição contrária ao reconhecimento judicial de direito ao aborto e de direitos reprodutivos, de modo que não existira a possibilidade de uma decisão judicial análoga a Roe v. Wade.23 Por outro lado, a imprensa tem noticiado um projeto de ‘empacotamento da corte’ (‘court packing’) com proposta de ampliação do número de Ministros24 ou maior probabilidade de impeachment após os resultados das eleições para o Senado no início desse mês.25 Logo, nosso contexto é distinto, mas é importante aprender com a experiência de outras sociedades para refletir sobre nossas questões e tomar as decisões adequadas para a nossa realidade institucional.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Laurence Tribe, American Constitutional Law, New York: The Foundation Press (1978).

4 TRIBE, Laurence H. Abortion: The clash of absolutes. WW Norton & Company (1992).

5 TRIBE, Laurence H. God Save This Honorable Court: How the Choice of Justices Can Change Our Lives. New American Library (1985).

6 Idem.

Disponível aqui.

8 Idem.

Disponível aqui

10 Disponível aqui

11 SCALIA, Antonin. Originalism: The lesser evil. U. Cinn. L. Rev., v. 57, p. 849, 1988.

12 Disponível aqui.  

13 Idem.

14 Disponível aqui.  

15 TRIBE, Laurence H. Abortion: The clash of absolutes. WW Norton & Company, 1992. Capítulo 7.

16 Idem.

17 Idem.

18 Idem.

19 Idem.

20 Idem.

21 Idem.

22 Disponível aqui

23 Disponível aqui

24 Disponível aqui

25 Disponível aqui

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.