Direito Privado no Common Law

Método de resolução de casos - Parte IV

A presente coluna é a quarta e última sobre método de resolução de casos no Direito. Aqui aprofundarei a questão dos desafios para a aplicação de um método estruturado de resolução de caso no Direito brasileiro.

26/9/2022

Introdução

A presente coluna é a quarta e última sobre método de resolução de casos no Direito. Aqui aprofundarei a questão dos desafios para a aplicação de um método estruturado de resolução de caso no Direito brasileiro.

Há, pelo menos, três desafios: 1) uma percepção generalizada no Brasil de que que não haveria resposta “correta” para casos jurídicos; 2) uma aversão do (jurista) brasileiro a método; e 3) uma inferior adequação do Código Civil a um raciocínio analítico relativo a créditos.

Percepção generalizada de ausência de resposta correta

Esse primeiro obstáculo chegou a ser mencionado na última coluna. Ele foi apresentado por Otavio Luiz Rodrigues Jr.. Questiona-se ele se "o estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil". A resposta dele merece ser transcrita:

O estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil?

Eis uma pergunta que me intriga. A resposta, embora não seja definitiva para mim, é negativa. O estudo dos casos não resistiria por duas razões. A primeira está em que não [há] uma deferência institucional às respostas "corretas" dos casos, tal como se dá na Alemanha. Dito de outro modo: há um enorme respeito social pelas respostas aos exames (sobre os quais se falará na próxima coluna), elaborados pelos professores, ainda que exista alguma crítica se formando em torno disso. A segunda é que o próprio modelo se estruturou com base em técnicas de subsunção, com esteio no fundamento legal (com o já referido grau de refinamento doutrinário e jurisprudencial). No Brasil, tem-se o incrível consenso de que "não há uma resposta correta", o que é um efeito natural de um Direito que se louva (no campo jurisprudencial) em "decido conforme minha consciência" (Lenio Streck) e no qual muitos juízes e professores entendem ser desnecessário usar a lei como baliza para suas decisões ou posições em classe. Se toda resposta é válida, se qualquer fundamento é aceitável, se o Direito é "sentimento", "vontade" ou "bom senso", como dizer que a resposta de um aluno para o caso proposto com suporte no pigeonhole é insusceptível de contestação?1

Entendo a crítica e partilho da apreensão. Penso, contudo, que a questão não é simplesmente se o estudo de caso funcionaria ou não como método central no Brasil. A questão é que, para funcionar, algumas mudanças precisariam se operar. E a utilização do método pode servir de propulsor para essas mudanças. Por mais que o terreno não pareça propício, a tentativa de mudança tem de começar em algum lugar. E onde melhor do que na faculdade, onde começa a formação dos juristas?

Aversão a método

Um outro obstáculo é uma certa aversão a método do (jurista) brasileiro. É perceptível nos juristas brasileiros, sobretudo nos estudantes, uma resistência ou mesmo aversão a método, a modelos, a padrões, a uma forma estruturada de apresentar o seu pensamento. Talvez seja algo ligado à cultura e que seja agravado pela pouca idade.

Essa minha constatação de fato não está embasada em pesquisa empírica, mas não posso negar uma percepção que permeia toda a minha trajetória lidando com juristas brasileiros, formados ou em formação.

Em minhas aulas, primeiro apresento o método. Depois passo para os alunos e alunas casos para eles e elas solucionarem à luz da metodologia. As respostas, contudo, quase que invariavelmente não seguem o método ensinado. Ao serem confrontados com as incongruências, as resistências começam a aparecer.

Essa questão é tão recorrente que já tenho até um "antídoto" pronto. Como esse é um tema difícil, de insistir que o aluno siga um método ensinado, encontrei uma forma lúdica de enfrentá-lo. Em sala, coloco para tocar um áudio chamado "o pulo do gato em vendas", narrado por Max Gheringer2.

Segundo Max, em empresas de vendas, quando se contrata novos vendedores, é comum que os vendedores mais antigos treinem os mais novos. Em mais ou menos um mês, todos os "truques" de vendas conseguem ser ensinados.

Ou melhor: "quase todos". Quando os novos vendedores não conseguem alcançar os mesmos resultados dos vendedores mais antigos, a reclamação dos mais jovens é sempre a mesma: "os vendedores mais antigos não ensinam tudo o que sabem." Pelo contrário, deixariam de fora das lições o que há de mais importante: o "pulo do gato".

Então, um dia, a direção da empresa decidiu ensinar para os novos vendedores como era "o pulo do gato". Para isso, eles convidaram um especialista em zoologia, que fez uma apresentação sobre "as 7 etapas do pulo gato", as quais se desenvolvem da seguinte forma:

1ª) o gato gira a cabeça para que seus olhos fiquem paralelos ao solo, mesmo que o resto do corpo ainda esteja torto; 2ª) o rabo fica esticado na posição vertical, girando constantemente para ajudar no equilíbrio; 3ª) o gato gira a coluna e alinha a parte dianteira do corpo com a cabeça; 4ª) a parte traseira do corpo é alinhada com a parte dianteira; 5ª) as quatro patas se emparelham para que possam tocar o solo ao mesmo tempo; 6ª) a poucos centímetros do chão, o gato estica bem as pernas e arqueia a coluna; 7ª) no exato momento em que toca o solo, o gato descontrai as patas e endireita a coluna. A ação funciona como um perfeito amortecedor de impacto. E aí o bichano sai caminhando sossegado, como os vendedores mais antigos faziam ao final de cada dia.

Ao final da apresentação, os novos vendedores estavam com "aquela cara de quem não está entendendo nada". Daí o diretor de vendas explicou: "o gato sempre acerta o pulo porque nunca muda a sequência. Os jovens vendedores sempre tentavam queimar etapas ou fazer algo diferente do que os veteranos faziam. E esse era o problema. Em vendas, o pulo do gato chama disciplina."

Pois bem. Assim como acontece com com os vendedores jovens, os alunos de direito tentam “queimar etapas”, ou fazer algo diferente do que foi ensinado, quando vão resolver casos à luz do método estruturado de casos. Aqui também a solução é a disciplina.

No caso dos alunos de direito, a aversão a método parece estar ligada a uma falsa impressão de que o método seria limitador, desnecessário, formal e sem sentido. Que aplicar um método estruturado para resolver casos, seria como tentar solucioná-los por meio de uma "receita de bolo".

Nada disso é verdadeiro. O método não limita. Ele não restringe a criatividade ou mesmo a eventual genialidade de ninguém. Ele não dá de antemão as respostas ao caso. O que o método faz é propor uma organização do pensamento e da comunicação. É apontar uma direção lógica a partir da qual as discussões podem e devem seguir. E o caminho, ao menos na área do direito civil, é sempre baseado nas previsões legais vigentes, em especial em dispositivos legais do Código Civil

O método não limita a criatividade. Pelo contrário, ele é muitas vezes elemento propulsor de ideias, questões e discussões materiais que os juristas possivelmente não teriam tido se estivessem argumentando livremente.

Inferior adequação do Código Civil

Um terceiro e último obstáculo é o fato de o Código Civil não estar tão bem amoldado à forma de raciocínio do método estruturado. No direito civil, especialmente no direito das obrigações, impera litígios envolvendo créditos. Normalmente, alguém quer exigir de outrem alguma prestação, seja a entrega de algo, a realização de uma atividade, ou o pagamento de uma dívida pecuniária. Para se determinar se a pessoa tem ou não razão, o ponto de partida acaba sendo sempre a existência ou não desse crédito, o que consequentemente leva à análise da respectiva base creditícia, ou seja, da norma jurídica a partir da qual surge o crédito.

Pois com alguma frequência, a base creditícia no Código Civil não é tão clara. Vou mencionar aqui apenas exemplo: um caso utilizado na Alemanha como de aplicação do Gutachtenstil envolve a seguinte situação: A, de 15 anos, solicita a B, também de 15 anos, que venda a terceiro sua bicicleta, pois está precisando de dinheiro. A chega a entregar a B a sua bicicleta. Quando ficam sabendo do acordo, os pais de A dão uma bronca nele e dizem para ele desfazer essa bagunça e pegar a bicicleta de volta. Entre outras, a pergunta do caso é se A pode exigir de B a bicicleta de volta.

A primeira via de tentativa é pelo contrato de mandato, que naturalmente vai se mostrar infrutífera pelo fato de as partes envolvidas serem absolutamente incapazes. Como o contrato é nulo, não pode ser através dos efeitos dele que A pode querer exigir a bicicleta de volta. Essa é a conclusão a que se chega tanto na Alemanha quanto no Brasil.

Mas ponto aqui é outro. Para a base creditícia de A, a ser analisado se o seu suporte fático foi preenchido ou não, o BGB fornece uma norma muito clara, enquanto o Código Civil brasileiro não. No BGB, a base é o § 667, o qual estatui o “dever de devolução” do mandatário: "O mandatário é obrigado a devolver ao mandante tudo o que receber para cumprir o mandato e o que obtiver com a realização da operação."

No Código Civil, em vão se procurará por uma base creditícia tão clara e bem delineada como essa. Na verdade, não há dispositivo que preveja um tal dever de devolução do mandatário ao final do contrato. O mais próximo a que se chega disso é com o art. 681, segundo o qual "o mandatário tem sobre a coisa de que tenha a posse em virtude do mandato, direito de retenção, até se reembolsar do que no desempenho do encargo despendeu." A base creditícia que tenho de utilizar para proceder à referida análise acaba sendo uma leitura a contrario sensu desse dispositivo: a ideia é que, se o mandatário não despendeu nada, ele não tem direito a reembolso nem de retenção da coisa. Ou seja, consequentemente teria o dever de devolver a coisa ao final do contrato quando requerido pelo mandante. Mas note-se que é uma construção bem mais indireta e sinuosa do que a presente no BGB.

Conclusão

Há obstáculos para aplicação de um método estruturado de resolução de casos no Brasil, mas esses obstáculos são transponíveis. Em primeiro lugar, a percepção generalizada que não há resposta "correta" pode ser combatida pela própria adoção de um método que requeira uma aplicação mais rigorosa das normas legais vigentes.

A aversão ao método pode ser combatida pela sua própria utilização – inicialmente exigida impositivamente nos bancos das faculdades -, que leva o aluno a paulatinamente perceber a sua razão e sentido.

E, por fim, a inferior inadequação do Código Civil pode ser contornada com alguma criatividade e flexibilidade do intérprete-aplicador. E, no longo prazo, a disseminação de um método analítico entre os intérpretes-aplicadores acaba influenciando a própria elaboração futura de leis, que acabam passando a ser mais bem elaboradas.

___________

1 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (Parte 3). Revista Consultor Jurídico (Conjur), 11 fev. 2015. 

2 GHERINGER, Max. O pulo do gato em vendas. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022. Agradeço a João Manoel de Lima Jr. pela indicação da existência desse áudio.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.