Direito Privado no Common Law

O conflito de valores absolutos: O debate acadêmico sobre Roe v. Wade

Na presente coluna, o objetivo consiste em apresentar os termos do debate acadêmico estadunidense com base na perspectiva doutrinária do professor Laurence Tribe sobre o aborto.

19/9/2022

Introdução

Na coluna anterior foi feita uma apresentação do caso Roe v. Wade com uma descrição da decisão e análise inicial da fundamentação judicial daquele julgamento histórico de 1973.1 Na presente coluna, o objetivo consiste em apresentar os termos do debate acadêmico estadunidense com base na perspectiva doutrinária do Professor Laurence Tribe sobre o aborto. O ponto de partida será a discussão apresentada no seu Tratado de Direito Constitucional, em que o Professor de Direito Constitucional da Harvard Law School produziu análise ampla e abrangente das bases teóricas, princípios normativos e da jurisprudência constitucional estadunidense. Ademais, será apresentada também sua visão mais específica sobre os direitos reprodutivos nos Estados Unidos desenvolvida em uma monografia escrita sobre esse tema.

A presente coluna será dividida em quatro partes. Além dessa introdução, a segunda parte explica como a análise relativa à existência de direitos reprodutivos pode ser construída no contexto do direito à privacidade e da personalidade. A terceira parte discute os termos do conflito entre valores absolutos contrapostos que têm caracterizado o debate. Finalmente, a última parte indicará a existência de questões políticas entre partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice) a serem exploradas na próxima coluna, que irá tornar a revisitar esse caso a partir de outros desdobramentos.

A Análise Teórica do Direito Reprodutivo: Sua Emergência a Partir do Direito da Privacidade e da Personalidade

O ponto de partida para a compreensão da perspectiva do Professor Laurence Tribe deve ser inevitavelmente o tratamento dado ao tema no seu Tratado de Direito Constitucional intitulado American Constitutional Law. Conhecido como o constitucionalista mais citado nos Estados Unidos e por seu sucesso profissional como advogado perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, o Professor da Harvard Law School consolidou sua reputação através dessa obra de referência, que o posicionou como o principal intérprete contemporâneo da Constituição estadunidense.2 Foi o seu tratado que o projetou como alguém capaz de dar sentido coerente e harmônico não somente ao texto constitucional, mas ao conjunto de decisões da jurisprudência constitucional daquele país.3 Com a publicação da obra em 1978, Laurence Tribe passou a ser convidado para a defesa de grandes casos perante a própria Suprema Corte dos Estados por conta de seu vasto conhecimento sobre os precedentes judiciais e as possibilidades interpretativas dos casos difíceis a serem decididos pelos Justices.4

Na estrutura original do tratado de 1978, no capítulo sobre ‘Direitos da Privacidade e da Personalidade’, existe uma análise sobre o controle governamental sobre o corpo e decisões sobre nascimento.5 O início dos debates sobre a decisão íntima de o corpo ser um veículo para a criação de uma vida humana teria surgido a partir do caso Griswold v. Connecticut, em que a Suprema Corte decidiu que o Estado não poderia tipificar como um crime o uso de material contraceptivo por pessoas casadas e nem punir quem fornecesse tais contraceptivos com a devida informação sobre o seu uso.6 A regulação estatal foi condenada por invadir uma área de liberdades protegidas e que incluía uma zona de privacidade criada por inúmeras garantias constitucionais.7 A opinião do Justice Douglas foi bem firme ao sugerir que a polícia não deveria ser autorizada a realizar busca e apreensão nos sagrados recintos dos cômodos matrimoniais com a pretensão de localizar evidências de uso de anticoncepcionais.8 Anteriormente, na decisão de 1942 em Skinner v. Oklahoma, a corte já tinha invalidado uma lei estadual que obrigava a esterilização de alguém condenado duas ou mais vezes por delitos sexuais, considerando que o direito reprodutivo era um dos direitos civis básicos do homem e que o Estado não poderia exercer controle sobre a liberdade individual e o poder de escolha sobre como e quando gerar uma criança.9

Para Laurence Tribe, a conjugação dessas duas decisões impõe a conclusão de que a decisão sobre se e quando um corpo de uma pessoa será a fonte de uma outra vida deve ser uma decisão deixada para a escolha exclusiva daquela pessoa e somente dela.10 Mesmo se a inseminação original tiver sido voluntária, considerando difícil imaginar situação mais clara de intrusão corporal do que na restrição ao aborto, a Suprema Corte teria reafirmado o direito à privacidade reconhecido em casos anteriores como suficientemente amplo para abranger uma decisão de uma mulher sobre se termina ou não a sua gravidez.11 Apesar de coerente com a jurisprudência anterior sobre o direito à privacidade, Laurence Tribe já reconhecia a existência de argumentos críticos contundentes como feitos por John Hart Ely naquele mesmo ano de 1973,12 identificados como ponto de partida para a teoria constitucional sobre controle de constitucionalidade das leis posteriormente desenvolvida no livro Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.13

Contudo, apesar do caráter polarizado do tema, da inevitável dimensão espiritual relativa ao mistério da vida e da insuficiência da justificativa para a ponderação de interesses do feto antes do período de viabilidade devido à incapacidade de sobrevivência fora do útero, Laurence Tribe considera que deve ser colocado em perspectiva o argumento de que a corte deveria ter sido deferente ao processo político. Afinal de contas, na Alemanha, proponentes da posição Pró-Vida e da crença que o aborto é um homicídio ingressaram com uma ação no Tribunal Constitucional para derrubar uma legislação aprovada pelo Parlamento e que autorizava a interrupção da gestação pelas mulheres naquele país.14 Em outras palavras, a judicialização decorreu muito mais da insatisfação com o resultado da decisão final relativa aos direitos reprodutivos do que pela legitimidade democrática de eventual reconhecimento de direitos reprodutivos pelo poder legislativo. Aliás, exemplo pródigo brasileiro provém da ação contrária às pesquisas realizadas com células-tronco, em que a legislação autorizava o uso de embriões para fins de pesquisa científicas, o que foi questionado pelos que vislumbravam ali uma vida humana a ser juridicamente protegida.

Laurence Tribe abandonaria o projeto de manter atualizado o seu tratado após 27 anos, tendo anunciado que as mutações jurídicas no início do século XXI teriam inviabilizado a possibilidade de interpretação harmônica e coerente à jurisprudência constitucional estadunidense.15 Para ele, em 2005, não existia mais a possibilidade de dar unidade ao corpus do direito constitucional, que refletisse criticamente sobre os grandes temas e direções dos movimentos e decisões do Poder Judiciário.16 Existiam tantas encruzilhadas multidirecionais e conflitos sobre premissas constitucionais básicas que não se vislumbrava uma grande teoria unificadora que justificasse a atualização do seu tratado lançado em 1978, tarefa que talvez coubesse à geração de sua neta.17

É interessante notar que a parte essencialmente contestada e que provocou sua decisão de não mais atualizar sua obra dizia respeito justamente à teoria dos direitos fundamentais, eis que a parte relativa à separação dos poderes, federalismo e organização do poder político tinha sido recentemente atualizada, quando o Professor tinha decidido dividir o seu tratado em dois volumes e lançado um primeiro volume com tal temática.18 A segunda parte relativa aos direitos fundamentais era justamente o objeto de contestação, conflito e falta de perspectiva uniforme e coerente.19 Laurence Tribe considerava correta a orientação dada pela Corte Warren e, na sequência, pela Corte Burger, que deu continuidade à mesma perspectiva liberal progressista.20 Por outro lado, a própria decisão da Corte em Roe v. Wade viria a galvanizar a direita religiosa, mobilizar o movimento conservador e abrir uma série de fissuras no corpo constitucional que viria a desestabilizar a uniformidade ideológica e a coerência interpretativa da ordem constitucional estadunidense.21

O Conflito de Valores Absolutos e o Debate Doutrinário sobre Aborto

Em sua monografia sobre o aborto como um conflito entre valores absolutos, Laurence Tribe identifica uma guinada na jurisprudência constitucional da Suprema Corte dos Estados Unidos. Inicialmente, legislações com medidas restritivas antiaborto seriam questionadas e, na maioria dos casos, invalidadas por inconstitucionalidade.22 Após uma série de respostas políticas para a Suprema Corte, chegou-se ao caso Webster v. Reproductive Health Services, em que a corte manteve Roe v. Wade como precedente judicial válido, mas iniciou uma bifurcação a partir da ampliação do interesse governamental na proteção da potencial vida humana intrauterina.23 O peso do interesse jurídico da mulher de escolher se interrompe a gravidez passou a ser ressignificado como um mero “interesse de liberdade”, reproduzindo a terminologia que tinha sido adotada pelo voto vencido do Justice William Rehnquist na decisão de Roe v. Wade em 1973.24

A partir daquela decisão, a opinião da Justice Sandra O’Connor passou a ser decisiva para a proteção dos direitos reprodutivos em uma corte dividida entre conservadores e liberais progressistas. Sua opinião era de que eventuais regulações seriam inconstitucionais se fossem impostos ônus indevidos (‘undue burden’) na decisão de uma mulher de realizar um aborto, tendo decidido naquele caso concreto que a legislação de Missouri com suas exigências de um teste de viabilidade não entrava em conflito com os precedentes judiciais e nem impunha tal ônus excessivo à liberdade decisória das mulheres.25

Com sua eloquência tradicional, Laurence Tribe encontra um direito não-enumerado ao aborto nas penumbras da Constituição dos Estados Unidos: “A Suprema Corte nunca teve a oportunidade de declarar que jovens amantes tem um direito constitucional fundamental a se abraçar luxuriosamente enquanto dançam de noite, mas esse direito também está esperando para ser proclamado contra qualquer Estado ou municipalidade que seja pudica ao ponto de insistir que o jovem casal se conduza com grande decoro”.26 Ao definir analiticamente os elementos jurídicos, interesses protegidos e princípios normativos por trás da questão do aborto, o Professor da Harvard Law School salienta o papel relevante dos direitos à liberdade, à privacidade, à integridade corporal e à igualdade para o reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres.27 Para ele, existiria também uma discriminação de gênero pela colocação de um ônus real e substancial para a habilidade da mulher de participar como igual na sociedade.28

O outro lado da equação diz respeito à proteção do feto como uma vida em potencial. Como defensor da constitucionalidade dos direitos reprodutivos, Laurence Tribe inicia sua análise com a visão típica do realismo jurídico de que restrições não terão o poder de salvar os fetos, mas apenas forçarão mulheres desesperadas a realizar abortos inseguros em que não é protegida nem a vida fetal e tampouco a vida das mulheres.29 Por outro lado, o direito protegido por Roe v. Wade não pode ser um direito de necessariamente matar o feto, já que esse ponto seria apenas uma consequência que não pode ser evitada devido à falta de viabilidade fetal se a mulher for exercer o seu direito.30 Existe uma dificuldade em se caracterizar o embrião ou o feto como uma pessoa, porque a fertilização é classificada pela embriologia moderna não como um momento, mas como um processo.31 Uma grande parte da questão envolve a possibilidade de demanda pelo Estado de sacrifício humano forçado – seja através da lembrança de que o direito anglo-americano não exige que ninguém seja um bom samaritano e tenha a responsabilidade civil de se sacrificar pessoalmente para salvar outrem, seja pela surreal vinheta filosófica de Judith Jarvis Thomson de uma pessoa que acorda com seu corpo ligado a um famoso violonista que teve uma falência de órgãos e durante o seu sono foi ligado ao seu sistema circulatório para que pudesse sobreviver.32 O Professor da Harvard Law School considera que o direito não poderia impor tais sacrifícios aos direitos e liberdades individuais constitucionalmente protegidos, mas que esses exercícios de argumentação decorrem da própria decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade, que salientou que deveriam ser reconhecidos tanto os interesses do feto, quanto os interesses da mulher grávida.33 Essa é a razão desse conflito de absolutos.

Considerações Finais

No final, sob a perspectiva argumentativa, o caso Roe v. Wade se tornou um caso tão proeminente, porque trata de questões seminais para a experiência humana, social e jurídica. Todos nós passamos pelo processo de fertilização, concepção, desenvolvimento embrionário e nascimento, sendo que desenvolvemos socialmente nossas visões e opiniões sobre a proteção da vida ou a proteção da escolha sobre a vida. Além da argumentação com base no conflito de valores absolutos e do debate doutrinário sobre o reconhecimento de um direito constitucional à interrupção da gravidez em Roe v. Wade, existe uma discussão política entre partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice), cujas questões devem ser exploradas na próxima coluna.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui

3 Idem.

4 Idem.

5 Laurence Tribe, American Constitutional Law, New York: The Foundation Press (1978), p. 921.

6 Idem.

7 Idem.

8 Idem.

9 Idem, p. 922-923.

10 Idem, p. 923.

11 Idem, p. 924.

12 John Hart Ely, The Wages of Crying Wolf: A Comment on Roe v. Wade, 82 Yale Law Journal (1973).

13 John Hart Ely. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Harvard University Press, 1980.

14 Laurence Tribe, American Constitutional Law, New York: The Foundation Press (1978), p. 929.

15 Disponível aqui

16 Idem.

17 Idem.

18 Idem.

19 Idem.

20 Idem.

21 Idem.

22 TRIBE, Laurence H. Abortion: The clash of absolutes. WW Norton & Company, 1992. P. 15.

23 Idem, p. 15-22.

24 Idem, p. 22.

25 Idem, p. 23.

26 Idem, p. 99.

27 Idem, capítulo 5.

28 Idem, p. 105.

29 Idem, p. 113.

30 Idem, p. 115.

31 Idem, p. 115-123.

32 Idem, p. 129-135.

33 Idem, 135-138.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.