A característica mais marcante da legislação sobre danos climáticos nas jurisdições do common law é a escassez de responsabilidade civil para obter compensação dos agentes negligentes e punição em face daqueles que, de forma imprudente ou intencional, causam danos. É consenso científico que a queima de carvão, petróleo e gás provoca o aquecimento global. No entanto, a responsabilidade civil possui um histórico excepcionalmente tíbio em sancionar os poluidores ambientais. Por exemplo, derramamentos de óleo no porto de Sydney e uma explosão subsequente foram considerados danos muito “remotos”.1 Derramamentos químicos poluindo as águas subterrâneas de Cambridge também foram reputados como consequência demasiadamente “remota” para gerar compensação de danos.2 Vale dizer, qualquer demanda contra emissores enfrenta profundos desafios doutrinários, em cada etapa do processo.
Em matéria de responsabilidade civil, no tradicional ilícito de negligência, surgem três questões principais: houve dano, violação ao dever de cuidado e nexo de causalidade, que não seja muito remoto? Primeiro, há um número crescente de eventos que resultam em danos climáticos, cada vez mais extremos: inundações no Reino Unido, incêndios florestais na Austrália, furacões na América. Isso resulta em danos à propriedade, lesões a integridade psicofísica e morte. Em segundo lugar, há uma violação a um dever de cuidado? Isso depende se o dano é razoavelmente previsível, há proximidade, e é justo, justo e razoável impor um dever.3 Danos climáticos já estavam previstos em 1965, e empresas de combustíveis fósseis como a Exxon realizam extensa pesquisa sobre o assunto desde 1977. Se uma pessoa sensata deveria saber que sua ação poderia causar danos, mas age de qualquer maneira, há uma violação do dever.4
Terceiro ponto, as ações de uma empresa de combustíveis fósseis causam danos ao clima? Vários agentes poluem a atmosfera em diferentes quantidades, contudo apenas 90 empresas são responsáveis ??por 63% de todas as emissões históricas.5 Há incerteza científica sobre a ligação entre qualquer fonte de emissões e os danos resultantes, porque as emissões em um só lugar levam a padrões globais desiguais de aquecimento. Todavia, em face de tal incerteza, foi estabelecido em Fairchild v Glenhaven Funeral Services Ltd que um infrator é responsável pela ampliação material do risco que ele causa.6 O princípio preferível parece ser que os infratores são solidariamente responsáveis, embora um teoria alternativa é que eles podem ter responsabilidade proporcional, uma regra que importa onde algumas empresas se tornaram insolventes.7 A regularidade e gravidade desses eventos aumenta gradativamente, o que significa que a probabilidade percentual de que qualquer evento seja causado por danos climáticos se acentua. Quanto à indagação se a cadeia causal é muito “remota”, a resposta deve ser negativa, já que os danos climáticos dos combustíveis fósseis são esperados e bem compreendidos.
Provavelmente, quando demandados, os emissores de combustíveis fósseis colocarão maior peso no argumento da causalidade. No tribunal estadual alemão de Essen, um caso em andamento chamado Lliuya v RWE AG admitiu que uma grande empresa de energia, a RWE AG, poderia ser responsabilizada em princípio por danos a uma geleira no Peru. A aldeia de Lliuya, Huaraz, ficava perto de uma geleira montanhosa derretida, aumentando o tamanho do lago Palcacocha e exigindo defesas contra inundações. Foi alegado que a RWE contribuiu com 0,47% das emissões globais de carbono e, portanto, deveria ser responsável por 0,47% do custo da proteção contra inundações. Enquanto o Tribunal Estadual indeferiu o pedido, argumentando que não havia 'cadeia casual linear', em novembro de 2017 o Tribunal Superior admitiu a passagem para a fase probatória no tocante à ameaça de deslizamentos de terra, e a contribuição exata da RWE, a ser avaliada por peritos.8 Evidentemente, se um caso estabelece a responsabilidade de uma empresa por danos climáticos, todas as empresas sob a jurisdição da Alemanha podem ser processadas por sua contribuição: isso provavelmente tornaria as empresas de combustíveis fósseis insolventes. Uma simples aplicação dos princípios vigentes no direito inglês conduz ao mesmo resultado.
Uma outra questão pode ser acrescentada: Magistrados devem decidir questões profundamente políticas? Deixando de lado a guerra e o holocausto nuclear, nenhuma questão é tão importante quanto o futuro da vida na Terra. Isso levanta a questão da “justiciabilidade”, como forma específica de exigibilidade em juízo. Nas jurisdições do common law, o fundamental ilícito de “negligence”, requer que se pondere se é justo, e razoável impor um dever de cuidado por dano climático. Pode-se argumentar que o Acordo de Paris de 2015, ou a Lei de Mudanças Climáticas de 2008, deveria substituir a legislação sobre responsabilidade civil aplicável às emissões de gases de efeito estufa. Nos EUA, um argumento semelhante teve sucesso. Em 2007, a Suprema Corte dos EUA decidiu por 5 a 4 que sua Agência de Proteção Ambiental tinha o dever de regular as emissões de gases de efeito estufa sob a Lei do Ar Limpo de 1963.9 Essa aparente vitória durou pouco, pois no caso American Electric Power Co v Connecticut, decidiu-se por 8 a 0 que, dada a jurisdição da EPA, impediu-se a aplicação da lei federal de responsabilidade civil. A lei inglesa não replica esse raciocínio: em questões ambientais não há impedimento à aplicação da responsabilidade civil em nenhum nível, sem que hajam palavras explícitas no estatuto. A Suprema Corte dos EUA sugeriu que as leis estaduais de responsabilidade civil fossem aplicadas,10 contudo, em casos subsequentes tribunais podem concluir que, como os reflexos danosos cruzam as fronteiras estaduais, leis estaduais se tornam inoperantes, tornando a ação do poder executivo necessária no EUA para controlar a poluição em nível federal, posição esta incompatível com um sistema de justiça eficaz.
É cada vez mais aceito que o sistema do common law deve ser interpretado à luz dos direitos humanos, particularmente sob a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Por esse motivo, a decisão da Suprema Corte Holandesa em Urgenda v Estado da Holanda tornou-se influente. Ela sustentou que o governo holandês tinha que reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 25% antes de 2020, um padrão retirado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em 2007 na qual são listados os países desenvolvidos que devem reduzir as emissões entre 25% e 40% até o final de 2020 para ficar 2 graus abaixo do limite para danos climáticos.11 A Suprema Corte Holandesa considerou que o não cumprimento até mesmo do limite inferior dessa meta violou tanto o direito à vida no artigo 2 da CEDH quanto o direito à vida privada e familiar no artigo 8.26 da CEDH. Em 2021, em um caso semelhante de Mudança Climática em 2021, o Tribunal Constitucional alemão considerou que o governo tinha o dever de acelerar suas medidas de proteção climática, como parte de seu dever constitucional de proteger os direitos à vida e ao meio ambiente sob a Grundgesetz 1949, artigos 2 e 20a.12 O significado de uma decisão com base nestes fundamentos é que, se seguido por outros tribunais em toda a Europa, os tribunais do Reino Unido terão fortes fundamentos para interpretar as normas do common law de modo compatível com a proteção do direito à vida e à privacidade. Há então uma escolha a ser feita sobre a aptidão da responsabilidade civil desempenhar um papel positivo, auxiliando a mitigar os danos causados ??pelos combustíveis fósseis.
No litígio Friends of the Earth v Royal Dutch Shell plc, o Tribunal Distrital de Haia considerou que, de acordo com o Livro 6, seção 162(2), do Código Civil Holandês o não cumprimento do artigo 2(1) do Acordo de Paris de 2015 seria ilícito: que é “o que, de acordo com a lei não escrita, deve ser considerado como conduta social adequada”. Ao interpretar este dever geral de responsabilidade civil, a Corte levou em consideração os artigos 2 e 8 da CEDH sobre os direitos à vida e à vida privada, familiar e doméstica. vida. Observou-se que “as consequências graves e irreversíveis das perigosas mudanças climáticas na Holanda... representam uma ameaça aos direitos humanos dos residentes holandeses”. Frisou-se que a Shell tinha o dever de reduzir suas emissões de acordo com as obrigações do Acordo de Paris em 45% até 2030, fossem elas geradas diretamente por seu grupo corporativo ou indiretamente pelos compradores de seus produtos.13 Após o caso, a Shell plc excluiu “Royal Dutch” de seu nome e anunciou a mudança de sua sede para Londres, presumivelmente na esperança de escapar do julgamento, embora previsivelmente suas operações de relações públicas negassem tal fato.
O episódio mais recente no universo do common law se encontra na Nova Zelândia, em Smith v Fonterra, cujo objetivo é processar 7 dos maiores emissores por negligência e incômodo público (public nuisance). Alega-se que essas grandes corporações violaram o dever de cuidar dos neozelandeses ao contribuir materialmente para a mudança climática. Evidentemente, há muita teoria de responsabilidade civil no argumento dos réus, concentrado na falta de conexão causal entre os emissores e o Sr. Smith. O Interessante no caso é a interação do Tikanga Maori (lei consuetudinária Maori) com a legislação de responsabilidade civil, pois o Sr. Smith representa pessoas da maior tribo na Nova Zelândia. Não é todo dia que você vê uma pessoa processando um grupo de grandes corporações no valor de dezenas de bilhões de dólares sobre danos a propriedades costeiras. Ele argumentou que o prejuízo foi causado pelo maior minerador de carvão da Nova Zelândia, uma refinaria de petróleo, uma usina de energia e outros emissores.
A demanda chegou à Suprema Corte depois que os tribunais inferiores se recusaram a ouvir o caso de Smith. Os juízes entenderam que o resultado buscado por Smith representa uma mudança dramática na política nacional de mudança climática, e que ao parlamento democraticamente eleito incumbe a mudança de rumos, não os tribunais. Perante o Supremo Tribunal os demandados sustentam que os danos climáticos ocorreriam de qualquer maneira, que as suas emissões coletivas seriam “minúsculas” e que pessoas razoáveis ??no lugar dos réus não poderiam ter previsto o dano. Ademais, tal dano seria um resultado improvável ou distante das emissões dos réus.14 Esse raciocínio contradiz o famoso precedente Rookes v Barnard, no qual a House of Lords estabeleceu que punitive damages são aplicáveis quando a conduta é calculada para gerar lucro: “Onde um Réu com um desrespeito cínico pelos direitos de um Autor”, disse Lord Devlin, “calculou que o dinheiro a ser ganho por seu delito provavelmente excederá os danos em risco, é necessário que a lei mostre que não pode ser quebrado impunemente”.15
Contudo, o demandante solicita ao tribunal que seja ousado: Talvez a questão mais importante, se os tribunais não vão fazer isso, o que eles vão fazer? Com efeito, nesta batalha sem precedentes de 'Davi e Golias', esticam-se as cordas legais na tentativa de forçar uma intervenção sobre as mudanças climáticas. O fato é que os sete grandes emissores que Smith levou ao tribunal atuam tecnicamente dentro de seus poderes, sem violar nenhuma lei escrita aprovada pelo parlamento. O caso de Smith apela para a responsabilidade civil por atos ilícitos e solicita ao sistema de direito consuetudinário da Nova Zelândia que determine que os grandes emissores estão causando danos e não devem continuar com os negócios como de costume. Em uma analogia com a acepção clássica do delito de negligência, se você está andando de bicicleta, não presta atenção e bate no carro de uma pessoa rica: você é responsável por negligência pelos danos causados. Ademais, no que tange ao ilícito de incômodo público, há um comportamento que interfere na vida e no prazer público. Se tudo isto falhar, propugna-se pela criação de um novo tort: o ilícito por mudança climática, um convite para os juízes inventarem uma forma mais ecológica de tratar o seu próprio direito.
Enfim, é difícil compreender por qual razão os tribunais inferiores da Nova Zelândia não tiveram a presença de espírito de raciocinar de maneira semelhante ao tribunal holandês. Talvez eles simplesmente não se importem com os tratados internacionais de direitos humanos que a Nova Zelândia assinou e ratificou. Porém, a premente questão do câmbio climático impõe outro questionamento: quanto à capacidade institucional dos Tribunais de fazer políticas amplas. Isso não quer dizer que medidas urgentes não devam ser tomadas neste tema. Em vez disso, é indagar se os Tribunais estão em posição de tomar e ordenar as medidas necessárias.
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1 The Wagon Mound (No 2) [1961] UKPC 2.
2 Cambridge Water Co Ltd v Eastern Counties Leather plc [1993] UKHL 12, cf the Environment Act 1995 ss 5-6.
3 Caparo Industries plc v Dickman [1990] UKHL 2, adopting the reasoning of Bingham LJ [1989] QB 653.
4 Donoghue v Stevenson [1931] UKHL 3, per Lord Atkin.
5 R Heede, ‘Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil fuel and cement producers, 1854–2010’ (2014) 122 Climatic Change 229.
6 Fairchild v Glenhaven Funeral Services Ltd [2002] UKHL 22. McGhee v National Coal Board [1972] UKHL 7. In the US, see Sindell v Abbott Laboratories 26 Cal 3d 588 (1980).
7 Barker v Corus (UK) plc [2006] UKHL 20.
8 2015 Case No. 2 O 285/15 Essen Oberlandesgericht.
9 Massachusetts v Environmental Protection Agency, 549 US 497 (2007), under 42 USC §7521(a)(1).
10 564 US 410 (2011) Ginsburg J, leaving ‘the matter open for consideration on remand.’
11 UN Framework Convention on Climate Change 1992, Annex I, and recommendation from the IPCC Working Group III, Climate Change 2007: Mitigation of Climate Change (2007) Contribution to the Fourth Assessment Report, ch 13, 776, Box 13.7. Note that the Renewable Energy Directive 2009/28/EC Annex I target for the Netherlands was just 14%.
12 Klimaschutz or Climate Change (24 March 2021) 1 BvR 2656/18.
13 (26 May 2021) C/09/571932 / HA ZA 19-379.
14 Smith v Fonterra Co-Operative Group Ltd. NZHC 419 [2020].
15 Rookes v Barnard [1964] AC 1129, UKHL 1.