Direito Privado no Common Law

Revisitando Roe v. Wade: Os termos da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos

Nas nossas colunas sobre o direito privado na common law, até o presente momento, ainda não se tinha discutido o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos no reconhecimento de direitos reprodutivos.

22/8/2022

Introdução

Nas nossas colunas sobre o direito privado na common law, até o presente momento, ainda não se tinha discutido o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos no reconhecimento de direitos reprodutivos. O presente texto busca explicar os termos da decisão original proferida em 1973 na famosa decisão proferida no julgamento do caso Jane ROE, et al, Apelantes, v. Henry WADE, 410 U.S. 113, 93 S. Ct. 705, 35 L.Ed.2d 147, por se tratar de uma decisão essencial para a reflexão sobre as transformações no direito estadunidense ao longo dos últimos cinquenta anos.1 O objetivo da presente coluna é modesto, na medida em que pretende apenas sumarizar os pontos principais daquela decisão para uma audiência brasileira. Nas próximas colunas, os termos do debate serão aprofundados a partir dos desdobramentos do caso, tanto em termos dos posicionamentos doutrinários, quanto em termos da discussão sobre o próprio papel do Poder Judiciário no reconhecimento de direitos fundamentais.

A presente coluna será dividida em quatro partes. Além dessa introdução, será feita uma explicação sobre os fatos relativos ao caso concreto que resultaram no julgamento da Suprema Corte, bem como uma análise inicial da fundamentação jurídica adotada pela Suprema Corte para que o leitor brasileiro tenha maiores detalhes sobre a justificação adotada pelos votos vencedores e vencidos naquela decisão. Finalmente, a última parte indicará questões doutrinárias e interdisciplinares a ser exploradas nas próximas colunas, que irão tornar a revisitar Roe v. Wade e aprofundar a análise a partir dos desdobramentos do caso.

A Origem do Caso: Uma Ação Coletiva Pela Defesa dos Direitos de Realização de um Aborto Seguro no Estado do Texas

O ponto de partida para a compreensão desse caso deve ser a compreensão de que se tratava de uma ação coletiva, ajuizada a partir do modelo da Class Action estadunidense, em que um único indivíduo pode ajuizar uma determinada ação judicial, afirmar que se trata de uma questão coletiva, postulando que aquela demanda seja certificada como uma demanda de interesse de toda uma classe de pessoas e não apenas de um único indivíduo.2 Um esclarecimento inicial importante é que o nome ‘Jane Roe’ é uma identidade fictícia, adotada para que a demandante pudesse ingressar em juízo e simultaneamente preservar sua privacidade. Por outro lado, a Suprema Corte fez questão de afirmar que se trata de um nome fictício, mas que existia uma mulher solteira grávida que residia em Dallas em 1970 e que tinha a pretensão concreta de obter uma interrupção de gravidez através de um procedimento de aborto realizado de modo oficial por um médico oficial em condições clínicas seguras. Logo, tratava-se de um caso concreto real de negativa de aborto, ainda que o nome fosse fictício.

Como a continuação da gravidez não causava risco para a vida da demandante, o Estado do Texas não autorizava o procedimento. Além disso, sua condição econômica impedia que ela viajasse para outros Estados em que o aborto era reconhecido como um direito reprodutivo da mulher. Segundo os termos de sua petição, a redação das leis penais incriminadoras do aborto era inconstitucionalmente vaga e violaria seus direitos constitucionais à privacidade, conforme os termos das 1ª, 4ª, 5ª, 9ª e 14ª Emendas à Constituição dos Estados Unidos. Um detalhe interessante do caso é que somente através de uma emenda à petição inicial que ‘Jane Roe’ afirmou que litigava em seu ‘próprio nome e de todas as mulheres em situação similar’.

Nas demandas coletivas nos Estados Unidos, existe uma prática recorrente de intervenção de terceiros, que posteriormente aderem ao caso concreto com o objetivo de participar da produção de provas, apresentar seus argumentos jurídicos e de se beneficiarem dos efeitos da decisão proferida naquela ação de classe. No caso de Roe v. Wade, o médico James Hulbert Hallford se apresentou como um terceiro e buscou intervir na ação, alegando que já tinha sido preso e processado pela prática de aborto, que estava respondendo a investigações e que as leis penais do Texas violavam não somente os direitos dos pacientes, mas também a própria relação entre médico e paciente e o seu direito ao livre exercício da medicina. Igualmente, um casal identificado ficticiamente como ‘John Doe’ e ‘Mary Doe’ tinha ingressado com uma ação em busca do reconhecimento ao direito de um aborto legal e seguro. Apesar de se tratar de um casal sem filhos em que a mulher não estava grávida, devido a uma desordem temporária neurológica, a mulher tinha recebido a recomendação médica de interromper o uso de pílulas anticoncepcionais e de não engravidar devido aos riscos de potencial gravidez naquele momento. Tanto o caso do médico, quanto o do casal foram excluídos do âmbito da decisão da Suprema Corte. Com relação ao médico, decidiu-se que ele deveria buscar a proteção dos seus direitos no âmbito de eventual investigação ou processo penal em que fosse investigado ou réu, mas não naquela ação coletiva. Com relação ao casal, considerou-se que se tratava de uma pretensão especulativa, já que não existia nenhum risco concreto a bem jurídico a ser tutelado, mas apenas um risco indireto insuficiente para que fosse reconhecido o interesse processual.

Finalmente, deve ser salientada a discussão sobre se ainda existiria interesse processual no caso de ‘Jane Roe’, já que o caso tinha se iniciado em 1970 quando a mulher por trás da identidade fictícia estava grávida, mas a situação fática do caso tinha se alterado ao longo da via processual. A Suprema Corte adotou como parâmetro decisório o fato de que uma gestação humana dura, em média, cerca de 266 dias e, nesse caso, seria inviável qualquer julgamento completo a respeito dessa questão. É que se o término da gravidez também implicasse a perda superveniente do interesse, jamais o processo coletivo chegaria a um julgamento definitivo pela Suprema Corte. Segundo o voto vencedor do Justice Blackmun, “nosso direito não pode ser assim tão rígido”, especialmente porque “a gravidez costuma ocorrer mais de uma vez na vida da mulher, e na população em geral, se a raça humana sobreviver, estará sempre conosco”. Portanto, a Suprema Corte decidiu que se tratava de um caso em que não poderia ser reconhecida a perda superveniente do interesse processual.

Os Termos da Decisão e uma Análise Inicial da Fundamentação Judicial

O principal ponto do caso para a demandante é que as leis penais do Texas invadiriam de modo impróprio um direito da mulher grávida de escolha pela interrupção da gravidez. Tal direito seria decorrente do conceito de liberdade pessoal embutido na 14ª Emenda à Constituição. Também seria protegido a partir de uma longa série de precedentes judiciais que reconhecem o direito à privacidade sexual, familiar e marital na Carta de Direitos Fundamentais (na terminologia estadunidense, o ‘Bill of Rights’) e, segundo uma expressão adotada pelo voto do Justice Blackburn, nas suas ‘penumbras’, isto é, nos desdobramentos lógicos e implícitos dos direitos reconhecidos pela própria jurisprudência da corte. O voto vencedor também fez um tour de force pela história, com referência à prática de abortos na antiguidade grega e romana, analisando também a questão a partir da tradição da Common Law. Historicamente, a prática de aborto até a 16ª semana de gestação não era considerada como um crime nos termos da Common Law inglesa. Somente no século XIX é que tal panorama teria sido alterado com a promulgação de leis penais incriminadoras da prática do aborto.

Interessante, o voto também apresenta uma análise da evolução da posição da Associação Médica Americana - American Medical Association (AMA) sobre esse tema, informando que a postura da entidade de classe médica era contrária ao aborto no século XIX, mas que ocorreu uma mudança de perspectiva sobre a questão, que se tornou mais polarizada a partir dos pronunciamentos na década de 60 e 70 do século XX. Uma resolução definiu o aborto como um procedimento médico a ser realizado por médico licenciado em hospital acreditado após consulta a outros dois médicos e conforme a legislação estatal, sendo que nenhuma parte desse procedimento deve ser vista colocada em uma posição de violação a seus princípios morais e pessoais. No mesmo sentido, a posição da Associação Americana de Saúde Pública - American Public Health Association – cujo Conselho Executivo aprovou padrões para serviços de aborto em outubro de 1970, recomendando que procedimentos rápidos e seguros de aborto estivessem prontamente disponíveis nos estabelecimentos de saúde locais e estaduais, públicos e privados. O voto também destaca que a Ordem dos Advogados – American Bar Association (ABA) – tinha aprovado por maioria (com 17 votos contrários) a elaboração de um projeto de lei uniforme de aborto em 1972.

Segundo o voto, as leis incriminadoras do aborto se explicam pelo conservadorismo dos costumes da era vitoriana, pelos riscos decorrentes de procedimentos abortivos não tão seguros e pela existência de um interesse legítimo do Estado na proteção da vida pré-natal. Contudo, ao realizar a ponderação dos interesses em questão, o voto considera que existe um direito à privacidade que é suficientemente amplo para incluir a decisão da mulher de interromper ou não a sua gravidez. A proibição de aborto causaria prejuízo direto e específico para a mulher não somente em termos de sua saúde física e emocional, mas também na questão de ter que manter uma criança não desejada e do estigma relativo com a condição de ser uma mãe solteira. Apesar de considerar que existe um direito de realizar o aborto, o voto majoritário impôs limites temporais ao seu exercício, estabelecendo uma gradação entre o primeiro, o segundo e o terceiro trimestre da gestação, de modo que existe maior margem para a escolha da mulher na primeira etapa, para a regulação estatal na segunda etapa e para a proibição do procedimento na terceira etapa.

O voto contrário do Justice Rehnquist criticou de modo sucinto a proibição de que os Estados pudessem intervir na questão e impor proibição à realização do aborto no primeiro trimestre. Apesar de considerar que existem direitos fundamentais não expressos na 14ª Emenda à Constituição e de não ter dúvida de que seriam inconstitucionais leis penais que proibissem o aborto em casos de gravidez de risco para a saúde da gestante, sua opinião é de que não seria justificada a partir da cláusula do devido processo legal uma invalidação tão ampla de todas as leis estaduais incriminadoras do aborto durante o primeiro trimestre da gestação, nos termos da decisão proferida pela Suprema Corte. Tanto o voto vencido, quanto o voto vencedor fizeram referência ao emblemático voto vencido de Oliver Wendell Holmes no caso Lochner v. New York (1905), amplamente identificado como um exemplo de crítica contundente ao uso equivocado do devido processo legal substantivo.3 Para o Justice Rehnquist, a maioria teria citado Holmes de modo indevido, já que o voto emularia a maioria naquela decisão por se tratar de um novo caso em que a Suprema Corte estaria atuando como espécie de legislador judicial ao criar uma distinção entre os graus de proteção nos três trimestres da gestação. Finalmente, Rehnquist criticou o fato de que a lei texana estava sendo considerada totalmente inconstitucional, se a própria decisão admitia a possibilidade de gradações e mesmo de proibição de aborto no último trimestre da gestação.

Considerações Finais

No final, a decisão foi formada por sete a dois, estando vencido também o Justice White. Além de concordar integralmente com o voto vencedor, o Justice Stewart fez questão de acrescentar um complemento ao voto em defesa do amplo escopo do direito à liberdade embutido na 14ª Emenda à Constituição. O caso Roe v. Wade merece nossa atenção especial nesse momento não apenas por ter sido derrubado recentemente, mas também pelo seu impacto para os debates sobre a proteção aos direitos fundamentais pela Suprema Corte e sobre a legitimidade moral e política das decisões judiciais, o que será objeto de debate em colunas futuras. Posteriormente, uma coluna deve também apresentar os termos da decisão com a descrição e análise inicial da fundamentação judicial do caso Dobbs, State Health Officer of The Mississippi Department of Health, et al, v. Jackson Women’s Health Organization et al, com o sumário da decisão proferida em 24 de junho de 2022. Por ora, o objetivo da coluna dessa semana era mais modesto: apresentar um caso extremamente conhecido e muito citado da jurisprudência estadunidense, de modo a torná-lo mais acessível para o nosso leitor.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.