Direito Privado no Common Law

Há responsabilidade civil da empresa de consultoria que transmite informações sobre um inimigo político a um governo autoritário que posteriormente pratica ilícito contra ele?

A polêmica possui uma série de nuances e demonstra quão complexa é a tarefa da responsabilidade civil na resolução de conflitos sociais.

8/8/2022

Fascinante o caso Abdulaziz v. McKinsey & Co., Inc. Em fevereiro de 2021, o demandante Omar Abdulaziz apresentou uma queixa na Suprema Corte de Nova York alegando reclamações contra o réu McKinsey & Company, por Inflição com negligência de Angústia Emocional. As alegações de Abdulaziz surgem de um relatório preparado pela McKinsey identificando o autor como um dos três críticos mais influentes do Reino da Arábia Saudita (“KSA”) e Mohammad Bin Salman (“MBS”). O demandante é um dissidente político do Reino da Arábia Saudita que recebeu asilo político do Canadá porque enfrenta perseguição depois do assassinato de seu amigo Jamal Khashoggi. Enquanto estudava em Montreal, o Autor começou a usar o Twitter e outras plataformas de mídia social para publicar comentários políticos sobre a Arábia Saudita. Assuntos frequentes das críticas do autor são a forma como o regime administrava o país, as violações desenfreadas dos direitos humanos, a família real, a corrupção e a política externa equivocada.

Lado outro, a McKinsey possui uma longa história de assessoria regular e extensiva às agências governamentais da Arábia Saudita, a ponto de o Ministério do Planejamento daquele país ter adquirido o apelido de “Ministério da McKinsey” por alguns sauditas, incluindo a corte real. No final de 2016, a McKinsey preparou um relatório na forma de uma apresentação em PowerPoint que identificou os três dissidentes mais influentes que se valem do Twitter para criticar o plano de austeridade do príncipe herdeiro Mohammad Bin Salman ( “Relatório McKinsey”) . O autor foi um dos três indivíduos que a McKinsey identificou em seu Relatório. O demandante Abdulaziz alegou que, depois de receber o relatório, o governo saudita respondeu com tentativas de assassinato e prendeu, torturou e assediou seus familiares e amigos que vivem atualmente na Arábia Saudita.

Em setembro de 2021, o tribunal distrital rejeitou a queixa na íntegra. Abdulaziz apelou da decisão e, em julho de 2022, o Segundo Circuito da United States Court of Appeals, concluiu que a McKinsey carecia de um dever de cuidado sob a lei de Nova York, em grande parte com base no fato de que “geralmente, não há dever de controlar a conduta de terceiros para evitar que causem danos a outros'”

A McKinsey possui um processo de revisão ou gerenciamento de risco para avaliar projetos de negócios em potencial com estrangeiros governos que poderiam levar a potenciais abusos de direitos humanos ou outras consequências adversas? o demandante estava processando a McKinsey não por sua falha em controlar o governo saudita, mas por suas próprias ações, tendo fornecido informações ao governo saudita que supostamente ajudaram a causar o prejuízo a ele. O tribunal lidou com isso concluindo que, além da previsibilidade do risco, Abdulaziz não forneceu nenhuma razão pela qual compartilhar o relatório foi em si uma violação de um dever de cuidado reconhecível que vai da McKinsey a Abdulaziz, somado ao fato que o demandante não conseguiu distinguir esse suposto dever de outros semelhantes rejeitados pelos tribunais de Nova York. Neste sentido, o precedente Valeriano v. Rome Sentinel Co1 (“sem dever de não publicar informações pessoais de outra pessoa, sem um dever estatutário, contratual ou fiduciário de proteger a confidencialidade das informações pessoais do autor"). Assim, mesmo que a McKinsey soubesse ou devesse saber que o governo saudita teria como alvo Abdulaziz depois de ter conhecimento de sua atividade dissidente no relatório, Abdulaziz não alegou plausivelmente uma violação de um dever de cuidado reconhecível sob a lei de Nova York.

Todavia, o precedente “Valeriano” lidou apenas com o suposto dano de publicar informações pessoais do demandante, sendo que a corte de Nova York geralmente não reconhece delitos de privacidade. Todavia, em Abdulaziz v. McKinsey & Co, a alegação é a de danos decorrentes das supostas tentativas de assassinato e lesões físicas a familiares e amigos.

Estamos diante do universo de casos que envolvem o ato de facilitar ou induzir a transgressão de outros. Daí indagamos: se eu der uma arma a alguém, quando deveria saber que ele provavelmente a usaria para fins criminosos, eu seria culpado de negligência? Se eu der informações a alguém, quando deveria saber que ele provavelmente as usaria para fins criminais, isso também não seria uma alegação de negligência presumivelmente válida, ou uma possível regra sem dever decorrente do status especial da informação, e não de uma teoria do “não dever de controlar terceiros”?

A propósito, no caso Remsburg v. Docusearch2, o tribunal permitiu um processo de negligência contra um investigador particular que encontrou informações de que um perseguidor utilizou para matar seu alvo: “A parte que percebe ou deve perceber que sua conduta criou uma condição que envolve um risco irracional de dano a outrem tem o dever de tomar cuidado razoável para evitar que o risco ocorra. A ocorrência exata ou lesões precisas não precisavam ser previsíveis. Assim, se a divulgação de informações por um investigador particular ou corretor de informações a um cliente criar um risco previsível de má conduta criminal contra o terceiro cuja informação foi divulgada, o investigador tem o dever de tomar cuidado razoável para não sujeitar a terceira pessoa a um risco irracional de dano”.

Vale dizer, normalmente as pessoas têm o dever de cuidar de outras pessoas quando sabem ou devem razoavelmente prever que sua conduta pode causar danos físicos a essas pessoas ou seus bens. A previsibilidade razoável de dano físico é geralmente suficiente para impor um dever de cuidado a uma pessoa que sabe ou deveria razoavelmente prever que dano físico é um resultado provável de sua conduta. No caso Abdulaziz v. McKinsey & Co, era possível - mas não normal - que a divulgação das informações conduzisse a danos injustos. O dano era previsível, mas é razoavelmente previsível? Creio eu que confiar negligentemente em alguém com uma arma envolve uma maior probabilidade de dano.

Mas se realmente fosse assim, haveria um dever de evitar lidar ou prestar serviços a governos desonestos? Um fornecedor de armas para os sauditas enfrentaria/deveria ser responsabilizado por um infeliz cidadão iemenita na capital Saná? Ou então, se um amigo diz a outro que sua esposa o está traindo, e ele previsivelmente a ataca (ou seu amante). Serei responsável por negligência? Ou digamos, uma mulher conte ao namorado que alguém a estuprou (ou de outra forma a maltratou), e ele previsivelmente ataca o agressor. Ela responderia por negligência?

Todavia, a justificativa para isso não teria que ser uma limitação de dever, em vez de previsibilidade? Afinal, se estou violando uma lei de trânsito e sofro um acidente, o acidente seria visto como previsível, embora, provavelmente, eu sofra um acidente apenas uma pequena fração das vezes em que violei uma lei de trânsito. Não seria assim a probabilidade de que um homem informado da infidelidade de sua esposa atacar o seu amante ainda maior? Observe que acabei de escrever “atacar” e não “matar” – pois para se cogitar de previsibilidade, teria que haver uma probabilidade suficiente de algum ataque físico. Obviamente, eu gostaria de pensar que você seria mais cuidadoso ao dizer a um regime tirânico que sou um dissidente do que ao dizer ao meu cônjuge que estou tendo um caso. Mas a difícil questão nesses casos é se está certo (legalmente) ser tão descuidado quanto você quiser, porque você não tem obrigação de cuidar em primeiro lugar.

Uma simplificação grosseira do cenário parece ser a seguinte: se alguém causar danos corporais a outrem que você poderia ter previsto como uma possibilidade real de antemão, provavelmente será responsável por negligência, a menos que: a) Você tenha sido legalmente autorizado a fazê-lo; b) O dano que você causou resultou de uma falha em fazer algo (uma omissão) e não um ato comissivo; c) O dano foi causado pelas ações de algum outro ator responsável que você não conseguiu controlar;

Essas razões “políticas” para negar um dever não parecem estar presentes neste caso, pois não é alegado que a McKinsey não conseguiu controlar os sauditas, simplesmente que eles revelaram informações que previsivelmente levaram a uma reação saudita. Possivelmente isso se aplicaria a qualquer dano físico direto causado a Abdulaziz.

A responsabilidade civil nos EUA tem duas maneiras básicas de conceber a previsibilidade. Uma maneira é a “Hand Formula”. A previsibilidade é apenas a probabilidade de algum evento acontecer – para alguma classe de referência que, intuitivamente, achamos que sabemos. Mas há outra maneira, mais antiga, mas ainda vibrante, de pensar sobre a previsibilidade. Essa outra forma está incorporada na doutrina da pessoa medianamente razoável e pergunta, basicamente, o que esperamos que aconteça. Nesse caso, indaga como esperamos que o cônjuge informado reaja. Isso tende a ancorar a investigação sobre a previsibilidade em torno do que “normalmente acontece”. Posso imaginar um tribunal dizendo que “normalmente, um cônjuge informado da infidelidade de seu cônjuge não ataca fisicamente o cônjuge ou seu amante”. Isso pode levá-los a dizer “não previsível por uma questão de direito”. De qualquer forma, o ponto é o mesmo: o que é previsível parece diferente quando você o vê através do prisma da doutrina ARP (average reasonable person), em vez do prisma da Hand formula.

Subjacente a essa discussão se encontra a questão comunicativa. O discurso sempre apresenta uma questão especial de responsabilidade. A pessoa com quem se fala tem que agir de acordo com o que é dito. Em princípio, você pode pensar que alguém que apenas diz algo a outra pessoa nunca é responsável por danos subsequentes causados pela pessoa com quem se fala. Ou seja, tratamos a decisão da pessoa com quem se fala como uma causa substitutiva de dano em todos os casos. Contudo, por vezes, a informação parece mais um instrumento que permite que alguém faça algo errado, do que uma ferramenta que permite que eles decidam por si mesmos o que desejam fazer. A agência da pessoa com quem se fala não surge como um problema significativo quando a informação é apenas uma ferramenta que permite que essa pessoa cometa um ilícito que tem a intenção de cometer, mas de outra forma não poderia. Nada obstante, entre “informação a ser processada pela pessoa com quem se fala” e “instrumento” estão os casos de indução intencional ou negligente de alguém a fazer algo prejudicial a si mesmo ou a outros.

De forma contrária ao aspecto comunicativo, podem ser fornecidos outros argumentos. A título ilustrativo, o caso é análogo à responsabilidade dos anfitriões sociais pela condução embriagada daqueles a quem forneceram bebida anos, como no caso Childs v Desormeaux3. Uma abordagem acadêmica dominante no common law é focar no demandado: O réu, por sua ação negligente, causou razoavelmente a lesão do autor? Sim. Fim da história. Outra forma de endereçar a questão consiste em indagar que mal sofreu o demandante? Ele foi atropelado por um motorista bêbado [anfitrião social], baleado [vendedor de armas], sofreu tentativas de assassinato/ tortura de familiares e amigos [Abdulaziz v. McKinsey].

Se A adquirir, autoriza ou ratifica as ações de B, ou conspira com B para praticar um ilícito, a conduta antijurídica de B será atribuída a A. Todavia, se A apenas facilita as ações de B, isso é insuficiente para lhe atribuir responsabilidade. Anfitriões sociais, vendedores de armas e a consultoria McKinsey, em comum, todos figuram na categoria de facilitação. Isso é suficiente para responsabilizá-los pelos ilícitos alheios? A ação que constituiu o ilícito foi a ação do réu?

Se pensarmos que o ilícito consiste na exposição de outros ao risco de lesão, então o anfitrião social, o vendedor de armas e a McKinsey cometeram um ilícito. Assim como o motorista, o atirador e o governo saudita. Todavia, se acreditarmos que o ilícito é constituído pela lesão (ser atropelado, ser baleado etc.) isso nos fornece uma resposta diferente, pois o anfitrião social, o vendedor de armas e a McKinsey não fizeram essas coisas. Em vez disso, eles fizeram algo que levou outra pessoa a fazer essas coisas. De qualquer forma, em ambos os pontos de vista, pode haver outro tipo de ilícito constituído pela violação de um suposto dever de cuidar.

Talvez, a diferença de posicionamentos seja em grande parte semântica. Para aqueles que assumem o protagonismo do nexo de causalidade, em um caso em que o réu negligentemente cria um perigo, mas o requerente se expõe de forma imprudente a esse perigo e sofre danos, os tribunais eximem o réu de responsabilidade porque a única causa legal do dano foi o fato exclusivo da vítima. O mesmo raciocínio se aplica à terceiros intervenientes negligentes.

Enfim, retornando ao caso em análise, a McKinsey tinha o dever para com Abdulaziz de não o colocar em perigo, identificando-o como um dos três críticos mais eficazes da Arábia Saudita? Pode ser que a resposta do tribunal de Nova York consistiu em estabelecer uma regra de “não dever” decorrente de política pública. As ações do réu previsivelmente causaram o dano ao autor, mas por várias razões podemos concluir que eles devem, no entanto, ser imunes. É assim que conceituamos a regra americana contra a responsabilidade do anfitrião social – por razões de política pública, não queremos colocar pessoas comuns em uma posição em que tenham que policiar o consumo de álcool de seus hóspedes. Da mesma forma, pode haver razões de política pública semelhantes pelas quais não queremos impedir as pessoas de contar a seus amigos sobre eventos em suas vidas, mesmo quando sabem que os amigos podem ficar com raiva e ferir alguém como resultado.

Em suma, pode haver algum outro princípio fundamental em jogo – especificamente a liberdade de expressão. Especialmente na lei norte-americana, a preocupação com a liberdade de expressão pode ser incluída na estrutura de delitos. Aqui está um trecho dos comentários ao Restatement (Third) of Torts (Physical & Emotional Harm sec. 7) que articula bem a análise da decisão do Segundo Circuito: “Comentário c. Conflitos com as normas sociais sobre responsabilidade. Ao decidir se adotam uma regra de não dever, os tribunais geralmente se baseiam em normas sociais gerais de responsabilidade. Por exemplo, muitos tribunais têm considerado que os estabelecimentos comerciais que servem bebidas alcoólicas têm o dever de ter cuidado razoável para evitar danos a outras pessoas que possam ser feridas por um cliente embriagado, mas que os anfitriões sociais não têm um dever semelhante àqueles que podem ser feridos. feridos por seus convidados.... Regras isentas de deveres são apropriadas apenas quando um tribunal pode promulgar regras de direito relativamente claras, categóricas e claras aplicáveis a uma classe geral de casos”.

Enfim, a polêmica possui uma série de nuances e demonstra quão complexa é a tarefa da responsabilidade civil na resolução de conflitos sociais.

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1 842 N.Y.S.2d 805, 806 (4th Dep't 2007)

2 149 N.H. 148 (2003): “o risco de má conduta criminosa é suficientemente previsível para que um investigador tenha o dever de exercer o cuidado razoável na divulgação de informações pessoais de terceiros a um cliente. E nós assim seguramos. Isso é especialmente verdadeiro quando, como neste caso, o investigador não conhece o cliente ou o propósito do cliente ao buscar as informações”. 

3 https://www.stevehedley.com/odg/admin/2006.htm 

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.