Na influente obra “uma teoria da justiça” (1971), John Rawls revisita e remete a um nível mais alto de abstração a teoria do contrato social – encontrada em Hobbes, Locke, Rousseau. Em sua crítica ao utilitarismo e valorização dos imperativos da dignidade e inviolabilidade da pessoa humana, a teoria da justiça como equidade se revela a mais influente perspectiva de justiça liberal existente. Rawls acrescenta muito mais da ética Kantiana em sua teoria política do que o próprio Kant: a pessoa como um fim em si é uma ideia central de toda a estrutura rawlsiana. Nada obstante, as regras de justiça surgem como um arranjo institucional para atender uma racionalidade idealizada em um público específico de homens livres, iguais em capacidade e capazes de atividades produtivas que, para sair do estado de natureza, concebem um esquema de cooperação para vantagens mútuas. Restam excluídos do pacto as pessoas com deficiência física e psíquica, que terminam escondidas em instituições ou abandonadas. Por não contarem com representantes no desenho do princípio da justiça, culminam por não serem contempladas com medidas que atendam às suas necessidades específicas. O paradoxo é que mesmo pessoas com necessidades normais – aquinhoadas pela teoria do contrato social - também passam por momentos de sua vida em que necessitam da assistência de outra pessoa, como na infância e velhice. Eventualmente, a dependência assimétrica resulta de um acidente ou uma crise e depressão podem se tornar temporária ou permanentemente improdutivas, demandando cuidados especiais.
Em contrapartida, vários outros teóricos iluministas, adotaram abordagens comparativas endereçadas às realizações sociais. Ou seja, compararam sociedades que já existiam com as que poderiam surgir. Tal comparação tem como principal interesse a remoção de injustiças evidentes no mundo que viam (Smith, Bentham, Marx, Stuart Mill). Essas teorias substantivas não indagam o que seriam instituições perfeitamente justas, porém “como a justiça seria promovida” na sociedade em que vivem, de forma a prevenir e mitigar inaptidões. Trata-se de uma visão de justiça focada em realizações e feitos e não em arranjos, pois a justiça não pode ser indiferente as vidas que as pessoas podem viver de fato. Neste rol de pensadores, mais recentemente se encontram Amartya Sen e Martha C. Nussbaum. A ela dedicaremos maior espaço, homenageando sua obra intitulada “Fronteiras da Justiça” (Trad. Susana de Castro, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2013).
Partindo da concepção aristotélica do ser humano como ser social e político que se realiza através de suas relações com outros e da virtude como habilidade em inculcar atitudes corretas nas pessoas que apoiarão mudanças amplas na distribuição dos bens existentes, Martha Nussbaum apresenta o enfoque das capacidades – como espécie de enfoque dos direitos humanos - muito mais apto a determinar qual a justiça que cabe às pessoas com impedimentos sérios e incomuns do que a teoria da justiça procedimentalista de Rawls. Para ele, a escolha dos melhores princípios de justiça depende unicamente da determinação de um procedimento justo de escolha. Neste “institucionalismo transcendental” os sujeitos primários de justiça são os mesmos que escolhem os princípios. Já para Nussbaum, não é o procedimento, mas sim as consequências a serem atingidas que devem guiar a escolha dos princípios. Trata-se de uma teoria orientada para resultados, uma complementação necessária para a linguagem nem sempre “transparente” dos direitos humanos, na qual a incorporação de pessoas com necessidades especiais requer princípios que levem em consideração aquilo que elas possuem em comum com todos os outros seres humanos, a saber o desejo de florescer fazendo uso de suas capacidades humanas de modo adequado.
Partindo do princípio básico de que cada pessoa é um fim, Nussbaum, segue o enfoque das capacidades humanas para explicar o que as pessoas são de fato capazes de fazer e ser instruídas. Ao rejeitar as concepções políticas de pessoa fundadas em uma racionalidade idealizada, fornece a base filosófica sobre as garantias humanas centrais que devem ser implementadas por qualquer governo como um mínimo social básico do que o respeito pela dignidade humana requer. Em sociedades liberais plurais as “capacidades” introduzem um consenso entre pessoas que possuem concepções amplas de bem muito diferentes entre si. Mesmo se reconhecendo esta ínsita diversidade, há um nível mínimo para cada capacidade, abaixo do qual se acredita que aos cidadãos não está sendo disponibilizado um funcionamento verdadeiramente humano. Parafraseando Marx (Manifestos Econômicos e Filosóficos,1844), uma vida que tenha “funcionamentos verdadeiramente humanos”, requer uma rica pluralidade de atividades vitais e capacidades para as quais todas as pessoas estão autorizadas, sendo que a racionalidade não é o único aspecto pertinente à noção de funcionalidade verdadeira humana.
Com esse ponto de partida, Nussbaum justifica uma lista – aberta e sujeita a contínua revisão - de um consenso sobreposto de dez capacidades como exigências centrais para uma vida com dignidade, com espaço para diversas possibilidades de realização: 1) Vida. Ter a capacidade de viver até o fim de uma vida humana de duração normal; não morrer prematuramente ou antes que a própria vida se veja tão reduzida que não valha a pena vivê-la; 2) Saúde física. Ser capaz de ter boa saúde, incluindo a saúde reprodutiva; de receber uma alimentação adequada e dispor de um lugar adequado para viver; 3) Integridade física. Ser capaz de se movimentar livremente de um lugar para outro; estar protegido contra ataques de violência, inclusive agressões sexuais e violência doméstica; dispor de oportunidades para a escolha em questões de reprodução; 4) Sentidos, imaginação e pensamento. Fazer essas coisas de um modo verdadeiramente humano, um modo informado e com educação adequada. Ser capaz de usar a imaginação e o pensamento em conexão com o experimentar. Usar a própria mente de modo protegido por garantias de liberdade de expressão; 5) Emoções. Ser capaz de manter relações afetivas com coisas e pessoas fora de nós mesmos. Não ter o desenvolvimento emocional bloqueado por medo e ansiedade; 6) Razão prática. Ser capaz de formar uma concepção de bem e de ocupar-se com a reflexão crítica sobre o planejamento da própria vida; 7) Afiliação. Ser capaz de viver voltado para os outros, reconhecer e mostrar preocupação com outros seres humanos. Ter as bases sociais de autorrespeito e ser capaz de ser tratado como um ser digno cujo valor é igual ao dos outros. Isso inclui disposições de não discriminação com base em raça, sexo, orientação sexual, etnia, casta, religião, origem nacional; 8) Outras espécies. Ser capaz de viver uma relação próxima e respeitosa com animais, plantas e o mundo da natureza; 9) Lazer. Ser capaz de rir, brincar, gozar de atividades recreativas; 10) Controle sobre o próprio ambiente, seja ele político – participando efetivamente das escolhas políticas que governam a própria vida – ou material, sendo capaz de ter propriedade, candidatar-se a emprego, participando de relacionamentos significativos de reconhecimento mútuo com os demais trabalhadores.
A abordagem das capacidades aponta para um foco informacional sobre a vantagem individual, julgada com relação à oportunidade e não um design específico de como uma sociedade deva ser organizada. Concentra-se na vida humana e não em rendas ou mercadorias que a pessoa possua. Bens primários são apenas meios para outras coisas, em especial para satisfazer os fins e a liberdade substantiva para realizá-los. Não se trata apenas do que uma pessoa realmente acaba fazendo, mas também o que ela é de fato capaz de fazer, quer escolha aproveitar ou não uma oportunidade. A métrica das capacidades é superior à métrica dos recursos, pois se concentra nos fins e não nos meios, lidando melhor com discriminações em face de pessoas incapacitadas, sendo sensível às variações individuais em funcionamentos. Enfim, uma vida com apropriada dignidade humana é constituída, pelo menos em parte, pela posse de um nível mínimo para cada qual das 10 capacidades da lista, abaixo do qual não há uma vida decentemente digna. Uma vez identificado esse limite extremo, procuramos um limite mais alto, aquele acima do qual não apenas a mera vida, mas a boa vida se torna possível.
Assim, o enfoque das capacidades explica a cooperação como justiça e inclusão como fins de valor intrínseco, para o qual seres humanos se unem por laços altruísticos e não por vantagens mútuas. Somos seres animais necessitados e temporários e o bem dos outros não é apenas um limite à busca dessas pessoas pelo próprio bem: faz parte de seu próprio bem. Assim, ao invés de ser um tema restrito às concepções individuais de bem – como na teoria de Rawls – um forte compromisso com o bem alheio faz parte da concepção pública compartilhada de pessoa. Relações não simétricas podem conter reciprocidade e verdadeira funcionalidade humana. A final, não somos obrigados a ser produtivos para ganharmos o respeito dos outros, pois a sociedade se une em função de um campo de afetos e compromissos, somente alguns dos quais dizem respeito à produtividade. A dignidade não é definida antes e independentemente das capacidades, mas sim de modo imbricado com elas e com suas definições.
“A capacidade é um aspecto da liberdade e se concentra especialmente nas oportunidades substantivas”. Como coloca Amartya Sen, a vantagem de uma pessoa é considerada menor que a de outra se ela tem menos capacidade – menos oportunidade real – para realizar as coisas que tem razão para valorizar. A ideia de liberdade substancial diz respeito a sermos livres para determinar o que queremos, o que valorizamos e, em ultima instância, o que decidimos escolher. O conceito de capacidade está, portanto, ligado intimamente com o aspecto de oportunidade de liberdade. Ao propor um deslocamento fundamental do foco de atenção, passando dos meios de vida para as oportunidades reais de uma pessoa, a abordagem das capacidades altera bastante a compreensão dos autores e destinatários de políticas públicas.
Nenhuma Constituição protege a capacidade de forma abstrata. Deve haver uma avaliação prévia que estabeleça quais são boas e quais são as mais centrais, posto claramente envolvidas na definição das condições mínimas para uma vida humana digna. Aqui entra o cuidado como concepção de justiça. Conceber o cuidado como um direito social primário, significa refletir sobre um campo amplo de necessidades do lado tanto do que cuida, quanto daquele que é cuidado. A boa assistência aos dependentes, sejam eles crianças, idosos ou pessoas com deficiência, coloca o apoio às capacidades no âmbito da vida, da saúde e da integridade física no centro das atenções. Um bom apoiador para uma pessoa com vulnerabilidade psíquica – e boas políticas públicas que apoiem o cuidado individualizado – deve conhecer e adequar-se à natureza particular do impedimento da pessoa, alimentando sua necessidade estímulo cognitivo e seu interesse em não estar confinada em um único ambiente físico.
Um ponto fulcral sobre impedimentos e deficiências nasce da seguinte pergunta: deve-se promover apenas a capacidade em cada uma das dez áreas ou a efetiva funcionalidade? Os funcionamentos e as capacidades são diversos, porque tratam de diferentes aspectos de nossa vida e nossa liberdade. Talvez forçar todos os cidadãos a realizar essas funcionalidades seria antiliberal, mesmo em se tratando de objetivos sociais apropriados (como participação política e atividade religiosa). Por razões pessoais, alguém pode renunciar à funcionalidade concreta em questão. Lado outro, é apropriado para o planejamento político promover a saúde efetiva como um objetivo social. Se, por um lado, não é correto excluir escolhas pessoais de condução de vida que envolvam atividades arriscadas – sendo as pessoas previamente informadas do risco -, quando se trata de pessoas com impedimentos mentais, várias dessas não poderão fazer escolhas sobre sua assistência de saúde, consentir em relações sexuais, ou avaliar o perigo de uma ocupação. Assim, haverá muitas áreas para muitas dessas pessoas nas quais a funcionalidade em vez da capacidade, deverá ser o objetivo apropriado.
Vale dizer, a lista de capacidades permanecerá a mesma quando considerarmos pessoas com impedimentos mentais? E o nível social mínimo também permanecerá o mesmo? A resposta é positiva. Todos devemos ter a chance de desenvolver o âmbito total das faculdades humanas em qualquer nível que a condição pessoal permita, não por causa da produtividade social, mas porque isso é humanamente bom. Nada obstante, muitas pessoas com déficits cognitivos extremos jamais serão colocadas em uma posição em que certas capacidades assumam um nível significativo. A despeito dos melhores esforços alguns encontram extraordinárias barreiras em sua realização que nem sempre serão removidas por uma ação social inteligente. Onde a outorga direta de poder não for possível a sociedade deve oferecer a pessoa as capacidades por um sistema de apoios. O tipo de apoio deve ser estritamente adaptado para atender a pessoa onde a assistência for necessária, de modo que convide a pessoas a participar o quanto possível na tomada de decisão.
Infelizmente, a tendência persistente de todas as sociedades modernas é a de denegrir a competência das pessoas como impedimentos. Impedimentos são “naturalizados” por um cálculo econômico que nega o investimento em políticas públicas que defiram a essas pessoas atingir em algumas áreas um alto nível de funcionalidade. O ponto correto consiste em utilizar a linguagem da “realização humana” e disponibilizar o cuidado quando as pessoas querem e precisam dele. Por isto é perigoso utilizar uma lista diferente de capacidades para pessoas com impedimentos, mantendo-se uma lista única como conjunto não negociável de diretos fundamentais, para trazer todos, dentro do possível, aos limites mínimos de capacidade estabelecido para os outros cidadãos.
Talvez, um dos maiores méritos da abordagem das capacidades seja o de eliminar o descordo filosófico de direitos humanos sobre o conceito de “dignidade da pessoa humana”. Pode-se argumentar plausivelmente que as premissas gerais subjacentes à teoria dos direitos humanos já abrangem muito do paradigma da deficiência, mas na prática não impõem esses padrões com eficácia. Para Nussbaum a posse efetiva de um conjunto de capacidades básicas não se baseia no talento individual de cada pessoa, porém do fio condutor do nascimento de uma pessoa em uma comunidade humana. Por isto que o enfoque das capacidades entende a garantia de um direito como uma tarefa afirmativa no plano material e institucional, o quê concede maior efetividade a sua proposta, ou seja, não se trata apenas de inibir a interferência da ação do Estado sobre certa pessoa. Garantir ao cidadão um direito à participação política e a liberdade de expressão significa colocá-lo em posição de capacidade de agir e de funcionar nessas áreas, como algo intrínseco à condição humana.
Paradoxalmente, o virtuosismo da tese de Nussbaum da abordagem das capacidades pode ser a sua maior fragilidade. O paradigma dos direitos humanos enfatiza a igual dignidade das pessoas com deficiência e reconhece sua autonomia para dirigir seu próprio desenvolvimento, independentemente de atingirem os níveis de funcionamento típico da espécie exigidos em cada uma das dez capacidades centrais de Nussbaum. A estrutura da deficiência, portanto, continua a se concentrar no papel da dignidade pessoal como um elemento-chave no discurso dos direitos humanos, enquanto a abordagem das capacidades de Nussbaum torna o grau de sua inclusão contingente à capacidade funcional que justifica suficientemente receber consideração. Ademais, talentos são mais específicos ao indivíduo do que as capacidades e, por definição, não são universalmente compartilhados. Assim, enquanto Nussbaum se concentra nas capacidades que são comuns aos seres humanos, uma estrutura de direitos das pessoas com deficiência aborda talentos que são cruciais para o florescimento humano individual e não na falta de capacidade geral medida em relação a uma linha de base funcional. O desenvolvimento de algum talento é um imperativo moral devido a cada pessoa, e para alguns pode ser menor do que para outros. Assim, a visão dos direitos humanos da deficiência da vida humana não é “apenas” sobre o florescimento individual, mas também sobre a dignidade e, portanto, necessita de uma visão maior de todas as pessoas que contribuem e estão presentes na sociedade.
Historicamente as pessoas com deficiência estão entre os membros mais politicamente marginalizados, economicamente empobrecidos e menos visíveis da sociedade. Muitas sociedades viram (e muitas continuam a ver) esta exclusão social como uma consequência “natural” das incapacidades inerentes às pessoas com deficiência e, portanto, justificada. Adotar um modelo de direitos humanos da deficiência e, em seguida, estendê-lo para outros grupos, reposiciona a deficiência como um conceito universal e inclusivo de sua posição de outsider para grupos tradicionalmente reconhecidos. Como seres humanos, cada um de nós tem pontos fortes e fracos, habilidades e limitações. Uma estrutura de direitos humanos para pessoas com deficiência valoriza o potencial sobre a função existente. Também reconhece o valor de cada indivíduo para seu próprio fim e avalia a eficácia da proteção dos direitos humanos à luz de fatores exógenos que afetam o desenvolvimento de cada pessoa. Fazer isso abraça a deficiência como uma variação humana universal, e não como uma aberração.