Direito Privado no Common Law

Economia comportamental e responsabilidade civil: revisão da literatura e alguns temas emergentes

O papel da análise comportamental nos regimes de danos na literatura acadêmica.

6/6/2022

O papel da análise comportamental nos regimes de danos na literatura acadêmica.

Introdução

Nas três últimas colunas sobre o direito privado na common law, discutimos o direito comportamental com uma perspectiva propedêutica, com uma perspectiva empírica e sob a perspectiva dos direitos reais a partir de textos publicados no The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. A presente coluna revisa e sumariza o texto elaborado pelos Professores Yoed Halbersberg e Ehud Guttel, que se trata de uma análise aplicada do behavioral law and economics para à área da responsabilidade civil.1 Trata-se de mais um capítulo do manual de Oxford sobre direito e economia comportamental com a discussão específica de aplicação a uma área jurídica em particular. Aliás, o próprio capítulo traz logo a recordação de que o próprio campo interdisciplinar da análise econômica do direito se iniciou a partir de trabalhos seminais publicados sobre tort law por Ronald Coase e Guido Calabresi na década de 1960, a saber, The Problem of Social Cost2 e Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts3.

O texto atualiza a discussão sobre a análise econômica comportamental da responsabilidade civil a partir da perspectiva da variedade de vieses que podem afetar a avaliação que as pessoas fazem da probabilidade, até mesmo porque os acidentes são, por sua própria natureza, probabilísticos, o que significa que tanto os indivíduos devem considerar sua avaliação ao eleger suas preferências de ação, quanto os planejadores sociais (legisladores e tribunais) devem considerar as avaliações das partes no desenho e implementação dos regimes de responsabilidade civil. No caso dos tribunais estadunidenses, por exemplo, foi desenvolvida a chamada fórmula Learned Hand que estabelece a natureza estocástica dos acidentes e determina que devem ser feitas estimativas probabilísticas para a definição da responsabilidade em casos de conduta negligente, conforme articulado no precedente judicial de United States v. Caroll Towing Co, 159 F. 2 169 (2d Circ. 1947): "a falha em adotar uma precaução é negligente (...) se o custo da precaução (...) é menor do que a probabilidade de um acidente do que a precaução teria prevenido multiplicado pela perda que o acidente teria causado, se tivesse ocorrido".4

Os remédios para danos – especialmente para danos não-patrimoniais – são particularmente complexos, envolvendo estimativas abertas, avaliações de probabilidades de eventos futuros incertos e julgamentos morais, sendo que a análise de concessão de danos para a dor e o sofrimento exige que as cortes entrem em avaliações psíquicas das vítimas, estando mais suscetível a questões heurísticas e vieses do que a determinação de sanções no direito penal e a estimativa de prejuízos decorrentes de quebras contratuais. Além disso, as partes em um litígio decorrente de um ato ilícito civil extracontratual são mais heterogêneas do que as partes de um litígio contratual ou de um litígio corporativo típico. No caso dos Estados Unidos, o modo de financiamento dos litígios de responsabilidade civil através de honorários contingenciais também pode ter uma influência sobre os resultados dos casos, tornando-os mais suscetíveis a heurísticas e vieses do que outras áreas do direito, o que torna especialmente relevante a análise da economia comportamental.5

A aplicação da Economia Comportamental para a Responsabilidade Civil

O modelo da economia comportamental se distancia do modelo básico neoclássico de análise econômica do direito dos acidentes. A análise tradicional considerava que a responsabilidade civil deveria minimizar três tipos de custos: os custos primários que consistem na soma dos prejuízos esperados do acidente somados aos custos das precauções tomadas pelas partes antes do acidente; os custos secundários decorrentes do processo de compartilhamento do risco; os custos terciários derivados da administração do regime de responsabilidade civil. Para essa perspectiva tradicional, o principal objetivo da responsabilidade civil não é a obtenção da compensação das vítimas – uma função mais bem cumprida pelos seguros contra acidentes – mas o estabelecimento de um regime de incentivos para os atores sociais relevantes alinhado com o bem-estar social agregado e que minimize o custo social dos acidentes. Nesse sentido, o regime de responsabilidade civil deveria estimular o potencial causador de um prejuízo a internalizar os seus custos, de modo a minimizar a soma do prejuízo esperado e os custos das precauções. As premissas básicas são de que os agentes são racionais e neutros com relação a risco e podem ter níveis perfeitos de informação, mas os custos de transação são proibitivos e impedem que as partes venham a negociar antes da ocorrência da conduta ilícita.6

A contribuição da economia comportamental é feita através da incorporação de insights próprios no modelo clássico de análise econômica do direito. Assim, por exemplo, a escolha dos tribunais por um determinado modelo de responsabilidade civil pode depender dos vieses cognitivos dos próprios tribunais. O viés do olhar retrospectivo distorce a análise ex-post das pessoas na avaliação da probabilidade ex ante e da previsibilidade de um evento, dado o fato de que o evento já ocorreu, existindo a tendência de se olhar para um resultado negativo que já ocorreu como decorrente de um comportamento menos cuidadoso do que na hipótese de um caso semelhante em que a conduta foi idêntica, mas não ocorreu um resultado negativo. Uma outra situação ocorre com o viés do resultado, em que a divulgação da probabilidade do resultado negativo afeta a percepção das pessoas, isto é, se as pessoas são informadas que uma cirurgia de coração é marcada pelo risco de morte do paciente de 8%, possuem uma tendência a considerar que a decisão do cirurgião de realizar a operação foi muito menos razoável do que se são informadas que a cirurgia do coração possui uma probabilidade de sucesso de 92%.7

A partir da constatação da existência desses vieses e do seu impacto sobre o processo decisório dos julgadores, uma literatura acadêmica tem se desenvolvendo sobre as informações que devem ser compartilhadas antes do julgamento. Por exemplo, Christine Jolls, Cass Sunstein e Richard Thaler chegam ao extremo de sugerir que não seja compartilhada informação com os jurados nos julgamentos civis de casos de responsabilidade civil nos Estados Unidos justamente para evitar os efeitos negativos do viés retrospectivo e do viés do resultado, de modo a se prevenir uma superestimação da probabilidade de ocorrência de um acidente.8 Além disso, outras análises de viés aparecem na literatura, como por exemplo o excesso de otimismo que poderia, em tese, vir a causar uma insensibilidade com relação à probabilidade. Richard Posner, por exemplo, considera que pessoas com altos níveis de otimismo podem adotar um comportamento desprovido dos níveis ótimos eficientes de cuidado e que pessoas com nível moderado de otimismo podem adotar precauções superiores ao nível eficiente de cuidado.9 O modelo apresentado por Posner é teórico e não o resultado de estudos empíricos ou de experimentos em laboratório, tendo sido recebido com ceticismo e sido criticado por que na vida real o excesso de otimismo dificilmente poderia coincidir com níveis excessivos de cautela, eis que a tendência comportamental do indivíduo otimista é de imaginar que “isso nunca vai acontecer comigo.10

Nesse contexto, parece mais interessante a análise de experimentos que tenham capturado os efeitos cumulativos dos vieses comportamentais e da heurística nas mentes dos participantes sob o efeito de uma série de regras diferentes de responsabilidade civil, correspondentes ao que acontece com os agentes do mundo real. Assim é que Kornhauser e Schotter realizaram experimentos laboratoriais que indicaram que os participantes tendiam a tomar cautela ora excessiva e ora insuficiente nas situações de responsabilidade civil objetiva, ao passo que os níveis de cautela seriam mais eficientes e adequados nas situações de responsabilidade civil subjetiva, o que fez com que suscitassem a hipótese de que os participantes tem maior dificuldade em avaliar como devem se comportar em situações sob o regime de responsabilidade estrita do que nas situações de responsabilidade culposa, em que consideram mais fácil entender o nível eficiente de cuidado que devem ter.11 Estes artigos deram início a uma série de trabalhos para avaliar a eficiência dos regimes de responsabilidade civil objetiva e subjetiva, tendo sido desenvolvido cenários com regimes de responsabilidade estrita, culposa e de não-responsabilidade para aferir as condutas adotadas e o nível de cuidado dos participantes de tais experimentos laboratoriais.12

A consideração sobre a economia comportamental também é relevante para o debate sobre a preferência por um regime jurídico de responsabilidade civil ou por um mecanismo de regulação, sendo que a literatura tradicional de law and economics considera que a análise depende dos seguintes fatores: nível de informação da parte, dos reguladores e dos tribunais (quanto maior a informação das pessoas, maior a preferência pela responsabilidade civil ao invés da regulação); capacidade de solvência das partes (quanto menor a capacidade de solvência das partes, maior a preferência por um regime regulatório apoiado em tributação ou uma modalidade de seguro obrigatório); a probabilidade de as partes buscarem uma solução judicial (quanto menor a possibilidade de aplicação privada do direito, maior a preferência por um regime regulatório); os custos relativos do regime de responsabilidade civil em comparação com os custos do sistema regulatório (se os custos de coleta de evidências não for muito alto, regulação pode ser relativamente barata). A contribuição da economia comportamental para essa discussão decorre do fato de que o regime regulatório pode ser mais estruturado contra certos vieses decorrentes das decisões individuais das partes, induzindo uma aplicação mais coerente de standards com base em normas técnicas e uma aplicação com eficácia dissuasória maior do que o regime de responsabilidade civil. Também é possível que a estrutura de aplicação de sanções econômicas com base em multas regulatórias seja mais estruturada do que as sanções decorrentes de ações judiciais ajuizadas conforme as preferências individuais dos autores de ações judiciais de responsabilidade civil. Por outro lado, existem outros fatores que podem levar a uma preferência pelo regime de responsabilidade civil ao invés da regulação. Como a regulação resulta de uma demanda pública, o viés do excesso de otimismo pode reduzir a regulação do risco e, por exemplo, os consumidores podem se sujeitar ao consumo de produtos perigosos e inseguros por subestimar a necessidade de regulação. Aliás, existem estudos que evidenciam que a regulação pode ser ineficiente justamente por ser afetada por considerações de ordem política e por vieses de percepção do risco.13

Particularmente com relação ao tema dos danos sofridos na responsabilidade civil, existem duas importantes tendências comportamentais na literatura que mostram como os julgadores são afetados na fixação dos valores de indenização a serem pagos pelos responsáveis pelos prejuízos decorrentes de atos ilícitos. Em primeiro lugar, os efeitos de enquadramento ("framing effects") influenciam as avaliações de indivíduos com relação ao montante adequado de compensação pela dor e sofrimento. Se o enquadramento for feito com base no cenário anterior, o foco será em perdas ao passo que seria enfocado nos ganhos, se fosse realizado a partir do cenário posterior. Em segundo lugar, existe uma falha dos julgadores em identificar que as vítimas podem se adaptar ao seu novo cenário, o que pode induzir uma excessiva compensação para a vítimas às custas dos responsáveis pelos prejuízos. Como as pessoas possuem uma capacidade de se readaptar às novas circunstâncias de vida, a caracterização da perda como uma tragédia a partir de uma visão hedonista dos danos pode expandir a compensação dos danos pagos para as vítimas como se tivesse ocorrido uma perda do prazer de viver que é, não raro, uma descrição exagerada do que realmente acontece, já que as pessoas possuem uma capacidade comportamental de se readaptar às circunstâncias de vida após o seu acidente.14

Considerações finais

Em seu texto para o Manual de Oxford sobre a Economia Comportamental e a Responsabilidade Civil, os Professores Yoed Halbersberg e Ehud Guttel elaboraram uma revisão da literatura sobre as contribuições da análise econômica comportamental do direito com relação à análise econômica neoclássica do direito, apresentando impactos decorrentes do viés retrospectivo, do viés do resultado, da análise dos regimes de responsabilidade civil e do regime regulatório e das tendências comportamentais relativas aos efeitos de enquadramento e à capacidade de readaptação das vítimas de acidente. Além disso, os autores apontaram áreas com escassez de pesquisa e potencial para novas contribuições, identificando a necessidade de desenvolvimento de uma análise comportamental da responsabilidade vicarial e da heterogeneidade das vítimas de acidentes. A presente coluna pretende apresentar mais esse capítulo do Manual de Oxford de Análise Econômica Comportamental do Direito para estimular pesquisas de autores brasileiros e a nossa academia a refletir sobre as possibilidade e limites do behavioural law and economics dentro do contexto dos debates sobre o direito privado na tradição da common law.

__________

1 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud. Behavioral Economics and Tort Law. The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law, 2014.

2 COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. Palgrave Macmillan, 1960.

3 CALABRESI, Guido. Some thoughts on risk distribution and the law of torts. Yale Lj, v. 70, p. 499, 1960.

4 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud, p. 406.

5 Idem.

6 Idem.

7 Idem.

8 SUNSTEIN, Cass R.; JOLLS, Christine; THALER, Richard H. A behavioral approach to law and economics. Stanford Law Review, v. 50, p. 1471, 1998.

9 POSNER, Eric A. Probability errors: Some positive and normative implications for tort and contract law. Supreme Court Economic Review, v. 11, p. 125-141, 2004.

10 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud, p. 414.

11 KORNHAUSER, Lewis; SCHOTTER, Andrew. An experimental study of single-actor accidents. The Journal of Legal Studies, v. 19, n. 1, p. 203-233, 1990; KORNHAUSER, Lewis A.; SCHOTTER, Andrew. An experimental study of two-actor accidents. CV Starr Center for Applied Economics, New York University, 1992.

12 GHOSH, Sanmitra; KUNDU, Rajendra Prasad. Efficiency of Liability Rules: An Experimental Analysis. Available at SSRN 1684009, 2010; ANGELOVA, Vera; ATTANASI, Giuseppe Marco; HIRIART, Yolande. Relative performance of liability rules: Experimental evidence. 2012.

13 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud, p. 418-419.

14 Idem, p. 420-423.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.