Há um movimento palpável nos tribunais dos EUA para ampliar as indenizações em casos de dor e angústia emocional, nas hipóteses de homicídio culposo. O Tribunal de Apelações de Nova York, no caso Greene v. Esplanade,1 proferiu uma decisão em fevereiro de 2021 para expandir o direito à indenização a um avô sob o pálio da doutrina da "zona de perigo" (zone-of-danger rule).2 O caso envolvia a morte trágica de uma criança de 2 anos resultante de pedaços da fachada de um prédio que se partiram e caíram sobre ela. No momento do acidente, a avó estava ao lado da neta quando os destroços caíram repentinamente do prédio, e a própria avó – demandante - foi atingida por destroços. Ela incialmente havia exercida sua pretensão com base em duas causas de ação ("causes of action"): negligência e homicídio culposo ("wrongful death"). Posteriormente, a demandante acresceu uma terceira causa de pedir, fundada na negligente imposição de sofrimento emocional de acordo com a doutrina da zona de perigo.
A doutrina da zona de perigo prevê um remédio indenizatório consequente a um sofrimento emocional quando alguém é ameaçado de um dano corpóreo como consequência de negligência do réu, decorrendo exclusivamente do fato de se presenciar o momento da morte ou grave lesão física de um membro da família imediata daquele que testemunho a tragédia." A expressão "família imediata" estava no cerne do debate no caso Greene. A demandante argumentou que ela deveria ser incluída em tal conceito com base na "natureza única e especial" da relação entre um avô e um neto. A Corte de Kings County concedeu a ela o acesso à doutrina da zona de perigo, inclusive observando o reconhecimento específico de direitos de guarda dos avós em relação aos netos.
Os réus apelaram argumentando que os avós estão excluídos da designação de "família imediata". A segunda instância reverteu a decisão primeva, sustentando que a avó não era parte da "família imediata", com base na tradição da doutrina da zona de perigo. Para tanto, baseou-se no caso Bovsun v. Sanperi3 de 1984, que restringia a “família imediata” apenas ao cônjuge e filhos. Com efeito, Em Trombetta v. Conkling,4 o Tribunal considerou que uma sobrinha não poderia obter indenização por inflição negligente de sofrimento emocional ao testemunhar a morte de sua tia, mesmo se considerando que a mãe da demandante havia falecido quando esta tinha 11 anos de idade e a tia era a sua única figura materna. Além disso, em Jun Chi Guan v. Tuscan Dairy Farms,5 o tribunal rejeitou o argumento de uma avó, em lamentável circunstância na qual seu neto foi morto em um carrinho que ela empurrava, mesmo sendo ela que passava a maior parte do tempo com o bebê em suas horas de vigília.
Voltando ao caso Greene, o voto divergente forneceu uma abrangente visão histórica dos danos emocionais, examinando os resultados aparentemente injustos que se seguiram da aplicação da expressão "família imediata" nos referidos precedentes judiciais. O voto de dissenso frisa que o estado atual da lei não reflete as estruturas familiares contemporâneas e as normas sociais atuais. Além disso, a dissidência fez referência ao conceito do common law como um mecanismo vivo – que sempre responde de forma a se adaptar à realidade das condições alteradas. Portanto, quando uma regra produz resultados arbitrários, é dever do tribunal investigar a sua viabilidade e, se for o caso, reformulá-la ou aboli-la completamente.
Não é de surpreender que a definição de "família imediata" aplicada pelos tribunais nos últimos anos tenha suscitado controvérsias, pois enquanto muitas famílias ainda se enquadram na estrutura tradicional de dois cônjuges e filhos, outras famílias se enquadram em modelos não tradicionais que incluem crianças sendo criadas por avós, tios, irmãos, padrastos e outros arranjos não convencionais.
A questão foi objeto de um terceiro julgamento, desta feita pelo Tribunal de Apelações, cuja decisão foi no sentido de que a avó deveria ser classificada como um membro da "família imediata" do neto falecido, baseando sua decisão no crescente reconhecimento legal do status especial dos avós, na mudança das normas sociais e no bom senso. Todavia, a maioria dos julgadores enfatizou fortemente que a decisão não estabelece "limites externos" à definição de "família imediata", tendo tão somente determinado que no caso particular a avó se amoldava a classificação como membro da "família imediata". Interessante, que os magistrados do bloco minoritário concordaram com a decisão da maioria, contudo repreenderam a decisão afirmando que o "Tribunal perdeu o momento", pois a Corte poderia ter descartado completamente a exigência de "família imediata", baseada em definições antiquadas, modeladas estritamente na instituição do matrimônio e graus de consanguinidade.
O significado da decisão é que ficou evidente que o tribunal está disposto a revisar a classificação de tipos adicionais de membros da família do requerente elegíveis para danos emocionais. Vários demandantes tentarão testar os "limites externos" da definição de "família imediata". Notadamente, vários estados como Califórnia, Oregon, Texas e Nova Jersey já abandonaram a regra da “família imediata” ou expandiram para regras mais permissivas sobre quem pode obter indenização em tais circunstâncias. Ao considerar as nuances do que constitui afeição familiar e laços que compõem a família, é compreensível que os tribunais aceitem um teste mais permissivo e inclusivo para considerar a natureza do relacionamento de um espectador com uma vítima.
Mas por qual razão o Tribunal de Apelações de Nova York tem sido relutante em estabelecer os "limites externos" da expressão "família imediata"? Alguns argumentariam que ao descartar completamente a regra o Tribunal permitiria uma "abertura de que comportas" para todos os tipos de demandantes, com afeições ou sentimentos potencialmente tênues para com a vítima. Outros consideram que a natureza diferenciada dos laços e relacionamentos familiares são de árdua definição, sendo preferível uma interpretação casuística aberta como a melhor solução para avaliar o relacionamento espectador-vítima, ao invés de uma mudança radical de abordagem.
No entanto, é provável que haja um componente histórico na relutância da Corte em descartar ou estabelecer "limites externos" da regra da "família imediata". Embora a doutrina da zona de perigo seja inerente às jurisdições do common law, ainda é fruto de uma época em que os tribunais e o Legislativo consideravam como contrário à ordem pública a reparação de danos puramente de psíquicos ou a angústia na ausência de danos físicos. Em 1961, o tribunal reconheceu pela primeira vez que um demandante poderia obter indenização em virtude de um sofrimento mental, independentemente de dano corporal. No entanto, tal reconhecimento se referia apenas à vítima direta. Indenizações derivadas de espectadores, independentemente de sua conexão familiar, não foram abrangidas, não obstante o sofrimento como resultado de testemunhar grave lesão ou a morte de outrem. O precedente Bovsun v. Sanperi em 1984 abriu uma brecha para a negativa geral de indenização derivada de sofrimento emocional ou angústia nas circunstâncias em que o espectador (“bystander”) era um membro da "família imediata" e foi confrontado com o ferimento ou a morte de um ente querido. O componente do perigo físico viabiliza a pretensão.
Já no caso Greene, os juízes concordantes instaram o tribunal a usar seu poder para mudar tanto as suas antigas regras quanto as desatualizadas regras do common law, citaram o caso Woods v. Lancent, que estabeleceu: "enquanto os corpos legislativos têm o poder de alterar antigas regras de direito, no entanto, quando eles deixam de agir, é dever do tribunal adaptar a lei aos padrões atuais de justiça, ao invés de dar guarida às regras antiquada do passado". No entanto, a hesitação da maioria nos casos Greene, Bovson e Trombetta em redefinir os "limites externos" da "família imediata", ou em rejeitar tal limitação por completo, pode estar enraizada na circunstância histórica de que o cenário jurídico no que diz respeito às áreas de angústia mental e sofrimento emocional, é amplamente baseada em uma estrutura de limitação àqueles que podem obter indenização e também a o que pode ser objeto de indenização.
A título de comparação, no direito alemão se concede aos familiares do falecido o chamado "dano de choque nervoso" ("schockschaden"), que é fruto de uma interpretação elástica dos tribunais sobre o conceito de dano à saúde, contido no §823 do BGB.6
Ao contrário do que ocorre nas jurisdições do Common Law, na qual se exige a proximidade temporal e espacial e que a vítima do choque tenha observado diretamente o acidente (Aftermath Doctrine), como bem explicam Guilherme Reinig e Rafael Peteffi7 no direito alemão não é necessário que a pessoa afetada pelo choque tenha presenciado o acidente. Há, portanto, uma maior flexibilidade nesse ponto, com responsabilização mesmo na hipótese de choque nervoso sofrido por ocasião do recebimento da notícia do acidente. A razão para isso seria a circunstância de o § 823 I do BGB não estabelecer nenhuma exigência especial quanto à maneira pela qual o choque foi provocado.
Todavia, no Brasil não contamos com uma reparação autônoma em favor de familiares que presenciaram o momento da morte e efetivamente sofreram um abalo psíquico pelo evento em si, fato que transcende a perda pelo falecimento do ente querido, igualmente experimentada pelos demais parentes ou pessoas de sua intima relação. Enfim, em razão do receio quanto à indiscriminada abertura de comportas para múltiplas indenizações por danos consequentes à imediata verificação de um único evento, até o momento os tribunais optam por restringir o número de demandantes.8
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1 Disponível aqui.
2 "The zone-of-danger rule, which allows one who is himself or herself threatened with bodily harm in consequence of the defendant's negligence to recover for emotional distress resulting from viewing the death or serious physical injury of a member of his or her immediate family, is said to have become the majority rule in this country. It is premised on the traditional negligence concept that by unreasonably endangering the plaintiff's physical safety, the defendant has breached a duty owed to him or her for which he or she should recover all damages sustained including those occasioned by witnessing the suffering of an immediate family member who is also injured by the defendant's conduct".
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Seção 823 - Responsabilidade por danos (1) A pessoa que, intencionalmente ou por negligência, lesar ilegalmente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outra pessoa é responsável por indenizar a outra parte pelos danos daí decorrentes.
7 REINIG, G. H. L.; SILVA, R. P. DA. Dano reflexo ou por ricochete e lesão à saúde psíquica: os casos de “choque nervoso” (Schockschaden) no direito civil alemão. civilistica.com, v. 6, n. 2, p. 1-34, 30 dez. 2017.
8 "É certo que a solução de simplesmente multiplicar o valor que se concebe como razoável pelo número de autores tem a aptidão de tornar a obrigação do causador do dano demasiado extensa e distante de padrões baseados na proporcionalidade e razoabilidade. Por um lado, a solução que pura e simplesmente atribui esse mesmo valor ao grupo, independentemente do número de integrantes, também pode acarretar injustiças. Isso porque, se no primeiro caso o valor global pode se mostrar exorbitante, no segundo o valor individual pode se revelar diluído e se tornar ínfimo, hipóteses opostas que ocorrerão no caso de famílias numerosas. 6. Portanto, em caso de dano moral decorrente de morte de parentes próximos, a indenização deve ser arbitrada de forma global para a família da vítima, não devendo, de regra, ultrapassar o equivalente a quinhentos salários mínimos, podendo, porém, ser acrescido do que bastar para que os quinhões individualmente considerados não sejam diluídos e nem se tornem irrisórios, elevando-se o montante até o dobro daquele valor" ( REsp 1127913/RS Relator p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão 4.T DJe 30/10/2012).