Direito Privado no Common Law

Algumas questões relevantes para o debate sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI – Parte 2

Neste ano o STF deverá finalmente decidir sobre a constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI).

2/5/2022

Esta é a segunda parte de um texto que iniciei na coluna do mês passado. Como lá dito, neste ano o STF deverá finalmente decidir sobre a constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI). Desde a coluna passada, propus-me a apresentar, com base nas experiências americana e alemã, algumas questões relevantes para o debate atual sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI.

Na primeira parte tratei dos temas da transformação da responsabilidade dos intermediários na internet e do efeito resfriador (chilling effect). No texto atual, abordarei as questões das restrições graves a direitos da personalidade e aplicação privada do direito.

Restrições graves a direitos da personalidade

Um ponto central para a presente discussão é o de que o art. 19 do MCI implica restrição gravíssima aos direitos da personalidade das vítimas de postagens com conteúdo ilícito.

Essa questão pode ser esmiuçada em diversos argumentos. Em primeiro lugar, a exigência de uma ordem judicial como pressuposto da responsabilidade dos provedores é, por si só, um ônus gravíssimo para a vítima. Ingressar com uma ação judicial não é tarefa simples, isenta de esforço ou desgaste. Pelo contrário, pode envolver um considerável dispêndio de tempo, dinheiro e energia, que envolvem por exemplo contratação de advogado, pagamento de custas, comparecimento em audiência etc. Mesmo que a vítima requeira concessão de gratuidade da justiça ou recorra aos Juizados Especiais, ela não estará isenta de todos os referidos encargos. Além disso, grande parte da população, sobretudo a mais pobre, tem dificuldades agravadas por desconhecer os meandros da burocracia do Poder Judiciário.

Sem levar nada disso em conta, o art. 19 do MCI inverte totalmente a lógica habitual das coisas. O ingresso no judiciário, que normalmente é o último recurso para tutela do direito do lesado, à luz do art. 19 passa a ser requisito básico para a responsabilização das plataformas digitais. Nesse sentido, afirma Anderson Schreiber:

na dicção literal do art. 19, o descumprimento de ordem judicial passa a ser condição necessária para a responsabilização dos provedores. Nesse contexto, a propositura de ação judicial deixa de ser mero instrumento de proteção dos direitos da vítima e de obtenção da reparação para se tornar uma condição sine qua non da responsabilidade civil. A vítima, que antes propunha ação judicial como seu último recurso, para obter a responsabilização do réu, agora precisa propor a ação judicial e pleitear a emissão e uma ordem judicial específica, para que, só então e apenas em caso de descumprimento da referida ordem judicial, a proprietária do site ou rede social possa ser considerada responsável.1

Vale ressaltar que essa centralização da regra do Marco Civil no Poder Judiciário está em total descompasso com as tendências atuais de "desjudicialização" dos litígios, em face de um judiciário tradicionalmente sobrecarregado, mal equipado e excessivamente lento. No caso, a celeridade e dinamismo do ambiente digital fazem com que seja ainda mais ineficiente e criticável a necessidade de recurso ao judiciário.2

Por fim, é importante ter em conta o fato de que o ambiente das redes sociais é um ambiente mais propenso às violações de direitos fundamentais, o que gera uma necessidade de maior, e não de menor, tutela. Em relação a esse ponto, leciona o jurista alemão Martin Eifert:

A comunicação em redes sociais trouxe consigo, acima de tudo, uma nova e particular dinâmica. A discussão mundial sobre massivas manifestações misantrópicas e racistas (hate speech) nos meios sociais suporta a impressão amplamente difundida de que as fronteiras do discurso público se deslocaram e a diminuição dos custos de interação, a desconstrução de mecanismos de gatekeeping, bem como a evasão de controles sociais pelo anonimato tenham retirado o tabu de preconceitos e incendiaram sua difusão. Essa dinâmica própria e particular fortalece a necessidade de proteção de direitos de personalidade.3

Nessa linha, conclui Eifert que "tratar-se-ia de uma perspectiva unilateral e limitada", caso se optasse "por fixar a força relativa da liberdade de expressão em relação aos direitos de personalidade" tal como tradicionalmente se desenvolveu "no âmbito dos meios de comunicação em massa e da comunicação off-line"4.

Aplicação privada do direito

Um último argumento central, utilizado por aqueles que defendem a constitucionalidade do art. 19, é o de que não caberia às redes sociais decidir sobre a licitude ou não das manifestações dos seus usuários e, consequentemente, sobre a supressão ou não das suas postagens. Essas decisões seriam de competência privativa do poder judiciário5.

Aqui, em especial, convém atentar para a experiência na Alemanha. Como a Lei Alemã para Aplicação da Lei nas Redes Sociais prevê que as redes sociais devem decidir sobre a retirada de postagens ofensivas de seus usuários, uma das acusações centrais recebidas pela lei foi a de que ela "violaria os fundamentos do Estado de Direito, pois privatizaria as competências privativas do Estado de aplicar o direito."6 Tanto lá quanto aqui essa acusação não se sustenta.

Como explica Martin Eifert, não é patológico defender que o provedor da rede social deva "decidir em primeiro lugar sobre um apagamento ou bloqueio de conteúdos ilícitos." Trata-se, de maneira oposta, "de uma consequência jurídica normal" decorrente da teia de relações "das redes sociais" que têm "caráter de direito privado". Se a decisão parte de um dever jurídico que recai sobre a plataforma para que apague conteúdos ilícitos – ou seja, de uma responsabilidade indireta de monitoramento reconhecida –, deve-se, em primeiro lugar, considerar como normal quando as pessoas que se sentem violadas em seus direitos se voltem contra aqueles (potencialmente) responsáveis para demandar soluções. Isso não é diferente no campo da "difusão dos meios clássicos de comunicação". Além disso, "o caminho jurídico para os tribunais estatais não fica bloqueado, mas sim pode ser subsequentemente trilhado de forma normal e sem problemas."7

De acordo com Martin Eifert, a responsabilização indireta por monitoramento em caso de publicação de conteúdo ilícito é legitimada normativamente e indispensável do ponto de vista fático. Em relação à legitimação normativa, Eifert afirma que a referida responsabilização "corresponde, do ponto de vista normativo, às circunstâncias do compartilhamento, por parte do usuário, de postagens que abrangem quase todos os conteúdos – algo que é possibilitado pela técnica e avançado pelo modelo de comércio – e que, além de suas funções sociais altamente produtivas, podem, correspondentemente, ser utilizados para a difusão de conteúdos ilícitos e danosos para a sociedade." Em seguida, Eifert conclui: "a obrigação para apagamento de conteúdos ilícitos corresponde à anterior facilitação de sua difusão. O fato de que as decisões sobre a ilicitude resultam em difíceis ponderações não pode se desvincular da responsabilidade de tomá-las, ainda que isso seja desde sempre uma carga da difusão de informação."8

Em relação à imprescindibilidade fática, Martin Eifert explica que "os acessos e regulações jurídicas aos intermediários é também indispensável do ponto de vista fático. Considerados como ao mesmo tempo difusores e observadores de conteúdos, eles têm um acesso direto e, em última instância, também os recursos para processar a enorme quantidade de casos trazidos ao seu conhecimento."9

Conclusão

Em seu conjunto, as questões apresentadas na coluna atual e na anterior pesam a favor da conclusão de inconstitucionalidade do art. 19 do MCI, ou melhor, da necessidade de uma interpretação do dispositivo conforme a Constituição Federal. Essa é a conclusão que nos parece mais adequada para o julgamento no STF.

__________

1 Anderson Schreiber. Marco civil da internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: Newton De Lucca et. al. Direito & Internet III, t. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 290-291.

2 Schreiber, Marco civil da internet, cit., p. 290-291 ("Em uma realidade cada vez mais consciente do abarrotamento do Poder Judiciário, a Lei 12.965 toma a contramão de todas as tendências e transforma a judicialização de conflito em medida necessária à tutela dos direitos da vítima no ambiente virtual, ambiente no qual, pela sua própria celeridade e dinamismo, os remédios judiciais tendem a ser menos eficientes e, portanto, mais criticadas.")

3 Martin Eifert. A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais. In: Abboud, Georges; Nery Jr., Nelson; Campos, Ricardo. Fake news e regulação. 2. ed. São Paulo: RT, 2020, p. 180. O autor complementa que essa foi o gatilho, o elemento desencadeador para a promulgação da NetzDG.

4 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais, cit., p. 180.

5 Antônio Jeová Santos. Dano moral na internet. São Paulo: Método, 2001, p. 146 ("não é bom, nem útil, deixar à discrição ou arbítrio do provedor verificar qual página é lícita ou ofensiva, pois seria dar azo ao surgimento da censura se a qualquer provedor fosse dado o direito de tirar de seu serviço a página de alguém por entender que ela é ofensiva e maltrata os bons costumes. Nem sempre o funcionário do provedor que terá de verificar o conteúdo da página estará habilitado para saber se aquele conteúdo é nobre ou ofensivo a uma determinada classe de profissionais, por exemplo".); LAUX, Francisco de Mesquita. Supremo debate o artigo 19 do Marco Civil da Internet (parte 3). ("a intenção do art. 19 é a de evitar que discussões relativas à existência, ou não, de conteúdo difamatório, tivessem que ser, na prática, 'decididas' pelo gestor da rede social e que, nesse contexto, um erro na avaliação do material ensejasse a responsabilização civil do provedor. É daí que vem o intuito de 'assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura' transcrito pela norma."). Nesse sentido, há manifestações do STJ: REsp 1316921/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/06/2012, DJe 29/06/2012, p. 7 do relatório e voto ("há de se considerar a inviabilidade de se definirem critérios que autorizariam o veto ou o descarte de determinada página. Ante à subjetividade que cerca o dano psicológico e/ou à imagem, seria impossível delimitar parâmetros de que pudessem se valer os provedores para definir se um conteúdo é potencialmente ofensivo. Por outro lado, seria temerário delegar esse juízo de discricionariedade aos provedores.").

6 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 186.

7 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 186.

8 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 187.

9 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 187.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.