Direito Privado no Common Law

Algumas questões relevantes para o atual debate sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet – Parte 1

Algumas questões relevantes para o atual debate sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet – Parte 1.

4/4/2022

Este ano o STF deverá finalmente decidir sobre a constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI), segundo o qual "o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário." A regra, como o próprio trecho inicial do dispositivo prevê, teria "o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura".

Nesta e na próxima colunas, com base nas experiências americana e alemã, apresento algumas questões que me parecem relevantes para o debate atual sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI.

Transformação da responsabilidade dos intermediários na internet

Em primeiro lugar, está a transformação da responsabilidade dos intermediários na internet. Na década de noventa e início dos anos 2000, em diversos países, as leis aprovadas previam regimes abrandados de responsabilidade aos provedores com o fim de incentivar a tecnologia.

Nesse contexto, pode-se referir, nos EUA, a Section 230 do Communications Decency Act (CDA), de 1996, segundo a qual "no provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider". Essa regra consolidou a percepção dos provedores como plataformas neutras, que não fariam moderação de conteúdo e que, portanto, não deveriam ser responsabilizadas pelos danos decorrentes de postagens feitas pelos seus usuários1.

Na Alemanha, entre outras leis, pode-se citar os §§ 8-11 da Lei dos Serviços à Distância – Teleserviços (Teledienstegesetz) – de 1997. Segundo Martin Eifert, professor catedrático da Humboldt-Universität zu Berlin, "o objetivo – nas palavras da justificativa e fundamentação da lei – era primeiramente alcançar 'a superação de obstáculos para o livre desenvolvimento das forças do mercado no âmbito dos novos serviços de informação e comunicação e a garantia de condições conjunturais econômicas uniformes para a oferta e para o uso destes serviços'."2.

Mas essa realidade, já há alguns anos, tem mudado. Hoje, em âmbito internacional, vive-se uma tendência de atribuição de maior responsabilidade das plataformas digitais, imposição de deveres, sobretudo das grandes plataformas.

Nos EUA, a referida Section 230 tem sido objeto de muitas controvérsias. Por exemplo, durante o seu governo, o presidente Donald Trump teve as suas contas do Twitter e Facebook suspensas e chegou a ser banido dessas redes sociais por decisão das próprias plataformas, sob alegação de que publicações do ex-presidente tinham violado as suas "condições de uso, serviços e políticas de conteúdo". Na época, Trump chegou a editar uma medida ou ordem executiva (executive order) para limitar a proteção jurídica oferecida pela Section 230. A ideia subjacente era a de que, se as plataformas são mesmo neutras, elas não deveriam moderar conteúdo, de modo que a supressão de postagens e a suspensão ou banimento de contas seria censura. Há também um movimento dos democratas para alterar a Section 230, mas por outros motivos: entende-se que essa moderação já acontece e que ela deveria ser ainda maior. Apenas para se ter uma ideia da extensão do debate e da controvérsia, hoje, há nada menos do que 19 projetos (bills) que visam a alterar a Section 230. Dentre eles, há desde projetos mais radicais que visam à sua completa supressão, a outros menos radicais que propõem apenas a sua alteração3.

Na Alemanha, Martin Eifert refere-se à "tendência fundamental de que se imponham de forma crescente obrigações aos intermediários. A fase dos incentivos à tecnologia foi claramente substituída por uma nova fase. Os intermediários são identificados como estrangulamentos ou afunilamentos com uma função estruturadora e sofrem uma maior e reforçada incidência de responsabilidade." Por exemplo, a Lei Alemã para a Melhoria da Aplicação da Lei nas Redes Sociais (NetzDG) "desenha a obrigação de retirada de conteúdos por meio da responsabilidade indireta de monitoramento (Störerhaftung) e contém requerimentos para o procedimento de sua admissibilidade."4

O MCI, por sua vez, é de abril de 2014. O art. 19, portanto, pode ser enquadrado como um fruto tardio da referida "regulação dos intermediários por imunidade surgida nos Estados Unidos na década de noventa sob o manto de incentivo à inovação."5 Nesse sentido, segundo Ricardo Campos, docente assistente na Goethe Universität Frankfurt am Main:

De fato, o art. 19 do Marco Civil é um produto reproduzido de um determinado e particular momento de promoção à inovação, e por isso de certa forma seria uma lei que já nasceu anacrônica, na medida que emerge de um abismo temporal de 18 anos da legislação americana. De fato, o momento atual é completamente diferente da década de noventa. O que antes era promoção à inovação hoje virou um mercado de monopólio pelas “big five”. Jeff Kosseff assinala, num balanço dos 20 anos da criação da nova responsabilidade por imunidade [no contexto americano], que a consequência dessa forma de responsabilidade foi que os intermediários propriamente ditos passaram a bloquear e excluir voluntariamente conteúdos seguindo exigências do mercado nos termos de condições de uso. A exclusão das contas do "revoltados online" (na época maior plataforma da direita) e MBL nos últimos anos se deram nesse contexto de autoregulação que possui um viés intransparente, na medida em que a exclusão apresenta-se de certa forma como uma censura fática.6

Se, então, no Brasil, o modelo de isenção de responsabilidade das plataformas digitais já nasceu desatualizado, insistir em uma interpretação e aplicação textual rigorosa do art. 19 do MCI pode manter o país por mais tempo em descompasso com as melhores tendências internacionais.

Efeito resfriador (chilling effect)

Um outro ponto central é o seguinte: uma das teses centrais de defesa da constitucionalidade do art. 19 do MCI é a de que, sem esta regra, prevaleceria uma tendência por parte das plataformas a bloqueio excessivo e, portanto, uma violação à liberdade de expressão. Trata-se do tão propalado efeito resfriador ou chilling effect. Afirma-se que o receio da responsabilização por descumprimento de notificação extrajudicial faria com que os provedores adotassem postura favorável à supressão das postagens objeto de queixa de algum usuário e que isso seria incompatível com a liberdade de expressão.

Algumas vozes já têm questionado a robustez esse raciocínio7. No Brasil, Anderson Schreiber apresenta ceticismo em relação à abrangência desse argumento do chilling effect, afirmando que um tal efeito ocorre comumente apenas nas notificações baseadas na violação de direitos autorais, mas não naquelas que tem por base a lesão a direitos da personalidade como a honra, privacidade e imagem. Nas palavras do autor:

Em sua pátria de origem, o notice and take down é alvo de críticas por conta de uma espécie de “efeito resfriador” (chilling effect) que o seu uso abusivo pode provocar no exercício da liberdade de expressão. Tais críticas, todavia, atrelam-se normalmente às notificações fundadas na proteção de direitos autorais, que, por sua própria natureza, acabam exercendo um papel defensivo da indústria do entretenimento, minando formas de expressão artísticas típicas do ambiente virtual, como os melánges, sampleamentos e colagens. Em matéria de tutela dos direitos fundamentais à honra, à privacidade e à imagem da pessoa humana, o argumento do “efeito resfriador” da liberdade de expressão não apenas menos usual, mas também menos convincente, ao menos na maior parte dos casos concretos, que envolvem divulgação não autorizada de imagens íntimas, mensagens discriminatórias, incitação ao ódio, xingamentos grosseiros e outras situações em que o exercício da liberdade de expressão revela-se nitidamente abusivo.8

Embora de maneira mais ampla, Ricardo Campos também questiona a força deste suposto efeito resfriador para violar a liberdade de expressão dos usuários de mídias sociais. Nesse sentido, ele critica uma postura de “sacralidade” em relação ao art. 19 do MCI, como se a sua alteração levasse inevitavelmente a uma violação da liberdade de expressão:

O grande desafio em enfrentar a temática decorre primeiramente de fugir do maniqueísmo que domina o debate brasileiro em torno do tema. Maniqueísmo esse que se expressa no tom quase catastrófico de uma certa "sacralidade" do art. 19, como se a mera aproximação e mudança de forma regulatória levaria inexoravelmente a uma situação de restrição extrema da liberdade de expressão. Ao menos não foi isso que ocorreu em outros países que não optaram pela simplória defesa de interesses das plataformas digitais sem balancear com as deformações causadas nos pilares da constituição democrática, ou seja, o interesse público9.

Além desses, há outros pontos a serem levados em consideração na discussão, os quais serão abordados na coluna do próximo mês. A título de conclusão, deixo aqui desde já a seguinte questão: uma forma de fugir do referido maniqueísmo e de dar uma resposta mais adequada ao problema não seria por meio de uma interpretação do art. 19 do MCI conforme à Constituição Federal que equilibrasse melhor os direitos fundamentais em jogo? Mas qual intepretação seria essa? A refletir e conferir na próxima coluna.

__________

1 Ver, entre outros, a palestra da minha colega de coluna “direito privado no common law”, Thais Pascoaloto, em Seminário do IBERC sobre responsabilidade civil das plataformas digitais. Disponível em: https://youtu.be/twnvwmoiaau. Acesso em: 2 abr. 2022.

2 "Tal conceito, também adotado pelas regulamentações europeias da Diretiva E-Commerce no ano 2000 e subsequentemente levado adiante nacionalmente de acordo com os §§ 7-10 da TMG (Telemediengesetz – Lei Alemã de Telemedios), é um conceito que dá preferência aos privilégios de responsabilidade e que seguiu, com isso, basicamente um modelo de pensamento voltado para o incentivo à tecnologia." "Os acess-providers foram amplamente liberados de responsabilidade (§ 8f. TMG), pois eles não tinham juridicamente (e naquele tempo tampouco tecnicamente) qualquer acesso qualificado de monitoramento dos conteúdos. Os Host-Providers (§ 10 TMG) – e aqui se trata também de destinatários da NetzDG – já tinham de fato desde sempre um acesso técnico aos conteúdos. O seu desenvolvimento, contudo, não deveria ser obstaculizado por obrigações de grande alcance. Nesse sentido, foram excluídas pelo § 10 da TMG e pelo art. 14 da Diretiva E-Commerce aquelas obrigações de monitoramento de conteúdos que eram particularmente proativas, sendo que a responsabilidade foi vinculada necessariamente ao conhecimento positivo de atividades ilícitas ou a circunstâncias evidentes que indicavam claras ilicitudes."

3 Cf. Thais Pascoaloto, em Seminário do IBERC sobre responsabilidade civil das plataformas digitais. Disponível aqui. Acesso em: 2 abr. 2022

4 Martin Eifert. A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais. In: Abboud, Georges; Nery Jr., Nelson; Campos, Ricardo. Fake news e regulação. São Paulo: RT, 2020, p. 166.

5 Ricardo Campos. A transformação da responsabilidade dos intermediários da internet. In: Democracia, justiça e cidadania: Desafios e Perspectivas Homenagem ao Ministro Luís Roberto Barroso, 2020, p. 387.

6 Campos, A transformação da responsabilidade dos intermediários da internet, cit., p. 391.

7 Na Alemanha, vale conferir as ponderações de Martin Eifert no seguinte tópico: "II. Overblocking como questão dos standards materiais e a estrutura de incentivos" (Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais, cit., versão kindle).

8 Anderson Schreiber. Marco civil da internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: Newton De Lucca et. al. Direito & Internet III, t. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 288.

9 Campos, A transformação da responsabilidade dos intermediários da internet, cit., p. 392.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.