Direito Privado no Common Law

O Direito Comportamental: Uma introdução

O Direito Comportamental: Uma introdução.regime jurídico

14/3/2022

Os direitos influenciados pela norma dispositiva inicial, pelo enquadramento psicológico e pela previsão afetiva.

Introdução

No final de 2005, após uma visita de professores da USP à rede globo para assistir à produção do Jornal Nacional, ocorreu uma polêmica entre o jornalista Laurindo Lalo Leal Filho e o jornalista Willian Bonner devido ao padrão adotado para a elaboração daquele programa jornalístico. Lalo Leal criticou as escolhas jornalísticas da programação pela sua superficialidade, referindo-se ao fato de que a referência de telespectador médio brasileiro seria a personagem de desenho animado Homer Simpson, um preguiçoso comedor de rosquinhas.1 Em nota, William Bonner defendeu a necessidade de ser rigorosamente claro e didático para o público brasileiro de todos os níveis sociais e todos os graus de escolaridade, atingindo também os pais de família, trabalhadores, sem curso superior, e que assistem à televisão depois da jornada de trabalho para se informar sobre os fatos mais relevantes do dia de maneira clara e objetiva, a exemplo de Homer Simpson ou da personagem Lineu de “A Grande Família”.2 Essa polêmica sobre como o comportamento humano afeta as dinâmicas de comunicação também poderia servir de ponto de partida para uma reflexão sobre como o direito poder ser influenciado pela necessidade de ser aplicado ao ser humano médio, que possui limites temporais, cognitivos e sociais, mas está sujeito a um regime jurídico de normas e de sanções para influenciar sua conduta na sociedade contemporânea.

Como o direito também pode ser visto como um sistema comportamental por sua pretensão de influenciar o comportamento humano, a academia tem buscado compreender o direito comportamental e como o comportamento humano pode ser influenciado por mecanismos como incentivos econômicos, efeitos psicológicos e normas sociais. O estudo do direito comportamental tem como ponto de partida a consciência de que a teoria clássica explicativa do comportamento humano – a teoria da escolha racional – possui limitações significativas, especialmente diante de uma vasta literatura acadêmica que evidencia que o processo de decisão humana não segue o modelo típico de maximização de resultados preconizado pela teoria da escolha racional.3 O objetivo dessa coluna será fazer uma introdução do tema da importância do direito comportamental, preparando o terreno para o aprofundamento de alguns debates sobre o direito e a economia comportamental no futuro. Apesar de ter se popularizado a partir do conceito de Nudge, desenvolvido por Richard Thaler e Cass Sunstein,4 existe uma gama variada de debates na academia anglo-americana que merece ser apresentada ao nosso leitor.

Descobertas Comportamentais: Norma Dispositiva Inicial (‘Default Rule’), Enquadramento Psicológico (‘Framing’) e Previsão Afetiva (‘Affective Forecasting’).

Refletindo sobre a importância do direito comportamental, Thomas Ulen considera que as habilidades mais importantes são de identificar, avaliar e criticar o alinhamento entre os métodos e os objetivos. Em sua tipologia dos diferentes modos de uso dos estudos comportamentais no direito, destacam-se a capacidade de informar modelos preditivos e descritivos, a persuasão de pessoas para alterar o seu comportamento, a avaliação da qualidade do processo decisório e a prescrição de alterações na política pública que irão levar a mudanças de comportamento.5 Ulen apresenta pontos centrais sobre as características do direito comportamental, salientando que se trata de um fenômeno empírico e não estritamente teórico, já que são experimentos que evidenciam como as pessoas realmente se comportam e não uma mera hipótese sobre como seres humanos poderiam tomar certas decisões sob certas condições.6 Além disso, deve ser esclarecido que a literatura comportamental proporciona uma série de exemplos pródigos de que os resultados desses experimentos empíricos falham em confirmar as previsões traçadas pela teoria da escolha racional. Isso não significa que o comportamento humano seja imprevisível ou caótico, já que os experimentos comportamentais indicam uma certa previsibilidade, sendo que a maioria dos seres humanos atua de modo semelhante sob circunstâncias semelhantes – somente não se trata dos padrões hipotéticos formulados pela teoria da escolha racional.7 Por outro lado, se é possível dizer que as pessoas cometem “erros” em suas escolhas, tal vez seja exagerado se referir a “irracionalidades” quando as pessoas tipicamente adotam decisões que não aumenta seu bem estar como seria possível.

Dentre as descobertas comportamentais importantes, merece destaque o exemplo relativo aos efeitos da Norma Dispositiva Inicial (‘Default Rule’), que diz respeito à regra inicial que estará em efeito, salvo se a parte ou as partes sob sua influência resolverem mudar a regra. Se os custos de transação são os mesmos e não existem obstáculos econômicos para a mudança de uma regra inicial, a Teoria da Escolha Racional indicaria que os agentes racionais deveriam alterar as regras até que se obtivesse um regime jurídico mais favorável e que maximizasse seus resultados, independentemente do ponto de partida original. Contudo, na prática, não é isso o que acontece, existindo uma série de estudos de caso empíricos que demonstram o poder de influência da inércia da situação de status quo da posição original de uma Norma Dispositiva Inicial (‘Default Rule’).

Possivelmente o exemplo mais notório seja o estudo de caso da doação de órgãos, em que a escolha da Norma Dispositiva Inicial (‘Default Rule’) possui um enorme impacto no número de órgãos doados. Nos Estados Unidos, por exemplo, apesar de 85% das pessoas aprovarem a doação de órgãos e expressar uma intenção de doar os seus órgãos, menos da metade acaba tomando uma decisão concreta nesse sentido e, ao final, somente cerca de 28% acaba assinando um cartão de doador ou formalizando por qualquer outro meio de um modo explícito a sua intenção de ser doador de órgãos.8

A rigor, a melhor arquitetura normativa em termos de preservação da liberdade individual e maximização do bem-estar social consiste em uma política pública de presunção de consentimento com a possibilidade de se optar pela exclusão (‘opt out’), na medida em que existe respeito pelas preferências individuais e se assegura um volume maior de órgãos a serem doados, que é socialmente desejável. Evidências empíricas demonstram o baixo índice de doação de órgãos nos países sem o regime de consentimento presumido, em que é necessária a expressa opção de adesão (‘opt in’) ao programa, atingindo 27,5% na Holanda, 17,17% no Reino Unido, 12% na Alemanha e 4,25% na Dinamarca. Já em países com consentimento presumido e possibilidade de optar pela exclusão (‘opt out’), como Áustria, Bélgica, França, Hungria, Portugal, Polônia e Suécia, os percentuais de doação são muito mais altos, variando de 85,9% a cerca de 99%.9 O fato é que a Norma Dispositiva Inicial (‘Default Rule’) é decisiva para o processo de escolha e a maioria das pessoas segue esse padrão original em um determinado processo de escolha.

Já a influência do efeito de Enquadramento Psicológico (‘framing’) pode ser verificado através da estratégia de consulta e de formulação de questões ao público-alvo. Em um experimento em que se buscava compreender a percepção dos entrevistados sobre um determinado programa aplicável a um grupo de 600 pacientes, que teria uma eficácia de sucesso de 33,33% e de fracasso de 66,67% sobre o universo de pessoas tratadas, são decisivos os termos de formulação do debate. Embora o conteúdo lógico-racional seja idêntico, os entrevistados dão apoio ao programa diante da afirmação de que irá salvar 200 vidas, mas não dão apoio ao programa diante da informação de que irá resultar na morte de 400 pessoas.

Esses experimentos de Enquadramento Psicológico (‘framing’) desconstroem a premissa da Teoria da Escolha Racional de que as escolhas dos decisores não variam conforme a maneira em que a informação lhes é apresentada. Conforme as lições empíricas da economia comportamental aplicáveis ao direito, as escolhas podem depender de modo decisivo do modo como a informação é enquadrada, sendo que alguns enquadramentos podem ser arquitetados para a vantagem de uma das partes que irão estruturar o processo de escolha para facilitar a obtenção de um resultado que lhes seja favorável, enquanto irão dar ao decisor a ilusão de que chegaram à escolha livremente.10

Uma outra descoberta comportamental relevante diz respeito à Previsão Afetiva (‘Affective Forecasting’), isto é, a habilidade humana de prever os futuros estados emocionais, que consistem justamente no prazer ou na dor que algum evento ou bem ainda não experimentado irá nos dar. Um exemplo pesquisado empiricamente diz respeito à redução da capacidade da visão que pode importar em uma redução de bem-estar inicial, mas o nível subjetivo de sensação de bem-estar deverá retornar ao padrão prévio após o decurso de cerca de um ano desde a ocorrência da perda.11

Existem consequências importantes para a política pública e para o direito a partir de nossas dificuldades para prever o prazer e a dor decorrente dos futuros eventos. Assim é que se forem deixados à sua própria sorte, muitas pessoas irão elaborar planos de vida, realizar ações e consumir bens que não irão torná-los melhores no longo prazo. Por outro lado, eles poderiam incorrer em despesas para evitar perdas que eles considerariam catastróficas para o seu bem-estar, mas que não seriam empiricamente tão devastadoras como imaginado. Tais descobertas comportamentais são extremamente importantes para a arquitetura normativa e para o desenho institucional de regimes de seguro e de previdência, políticas públicas de educação e de saúde, bem como na definição de subsídios e de tributos.

No plano da responsabilidade civil, a Previsão Afetiva (‘Affective Forecasting’) está relacionada com a possibilidade de que o decisor possa se perguntar sobre como ele se sentiria em termos de dor, sofrimento e prejuízos sofridos, caso tivesse sido a vítima de um determinado ato ilícito e tivesse direito à indenização pelos danos sofridos. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, em que o julgamento da responsabilidade civil é realizado por um júri composto por jurados leigos, a literatura indica para o risco de que a justiça corretiva compense a vítima sem levar em conta a capacidade humana de readaptação, vindo a fixar a indenização em valores superiores aos necessários para a real composição do dano psicológico sofrido, o que poderia justificar algumas regras mais rígidas de limites judiciais para os valores de indenização fixados.12

Considerações Finais

A economia comportamental apresenta uma série importante de descobertas empíricas sobre a realidade do direito na sociedade contemporânea e sobre como o processo decisório e as escolhas humanas são realizadas conforme limites temporais, cognitivos e sociais que influenciam a conduta das pessoas. Visto como um sistema comportamental com a pretensão de influenciar o comportamento humano, o direito define mecanismos de incentivos econômicos, de efeitos psicológicos e de normas sociais. Nesse contexto, como a arquitetura normativa e o desenho institucional devem ser poder ser formados para serem aplicados ao ser humano médio, sujeito a um regime jurídico de normas e de sanções para influenciar sua conduta na sociedade contemporânea.

Como fenômeno social aplicável a pessoas de todos os níveis sociais, graus de escolaridade, gêneros, raças, orientação sexual e origem, atingindo também trabalhadores sem curso superior como Homer Simpson e Lineu de “A Grande Família”, o direito comportamental deve ser informado empiricamente sobre os fatos mais relevantes do cotidiano de maneira clara e objetiva, incorporando ao seu repertório os conceitos de Norma Dispositiva Inicial (‘Default Rule’), Enquadramento Psicológico (‘Framing’) e Previsão Afetiva (‘Affective Forecasting’), dentre outros conceitos relevantes para a compreensão da realidade do comportamento humano e que não correspondem às hipóteses formuladas pela perspectiva clássica da Teoria da Escolha Racional.

*Pedro Fortes é professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

__________

1 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1112200505.htm

2 https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u55781.shtml

3 Thomas Ulen, The Importance of Behavioral Law, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 93.

4 THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness. Penguim, 2009.

5 Thomas Ulen, The Importance of Behavioral Law, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 94-95.

6 Idem.

7 Idem.

8 Idem, p. 97-99.

9 Idem, p. 99-100.

10 Idem, p. 96-97.

11 Idem, p. 101-102.

12 Idem, p. 107-108.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.