Direito Privado no Common Law

Paradigmas pedagógicos do ensino jurídico: Oxford e os professores analíticos

Paradigmas pedagógicos do ensino jurídico: Oxford e os professores analíticos

8/2/2022

1. Introdução: a importância da clareza conceitual da filosofia analítica.

Nas minhas últimas duas colunas, apresentei o paradigma pedagógico da Harvard Law School a partir de uma discussão do método socrático1 e o paradigma pedagógico da Stanford Law School a partir de uma discussão do método científico da pesquisa empírica interdisciplinar.2 Na ocasião da publicação do primeiro artigo, informei na introdução do texto que meus professores em Stanford seriam científicos e Oxford teria um perfil analítico. Após o encorajamento do nosso Presidente do IBERC e colega de coluna, o eminente Professor Nelson Rosenvald, decidimos que seria escrita uma trilogia com uma série de colunas a partir das minhas experiências no curso de LLM - Master of Laws em Harvard, de JSM - Master of the Science of Law em Stanford e no DPhil - Doctor of Philosophy em Oxford. Nas colunas anteriores, os textos também serviram como tributo aos meus professores e aos pesquisadores pela contribuição para o desenvolvimento da ciência jurídica. É importante esclarecer ao leitor que esses textos são confessionais, no sentido de que foram escritos a partir da minha experiência pessoal e que certamente outros autores ressaltariam outros temas ou aspectos distintos ao leitor.

Aproveitando o sabor confessional desta trilogia de artigos, gostaria também de homenagear meu pai, Zeca Borges, falecido em 03 de dezembro de 2021 e que, mesmo sem ter cursado mestrado e doutorado, foi para mim um grande professor.Foi ele quem me levou pela primeira vez a visitar a cidade de Cambridge, em Massachussetts, para conhecer o campus de Harvard e do MIT quando eu ainda era adolescente, plantando sementes que iriam cultivar a minha formação acadêmica. Por ocasião da conclusão do meu curso de LL.M. em Harvard, ele fez questão de comparecer na cerimônia de formatura, quando Oscar Tan, meu colega de LL.M., fez uma menção especial ao meu pai no discurso de formatura. O entusiasmo dele pelo ensino e pesquisa levou seu instituto a celebrar convênios e parcerias com instituições de ponta, tal como, por exemplo, a Universidade de Stanford. Quando estivemos juntos logo antes de minha viagem para cursar meu doutorado na Universidade de Oxford em 2012, meu pai confidenciou um temor de que sua saúde falhasse durante esse meu período de estudos e pesquisas. Ainda aproveitamos cerca de dez anos até sua morte recente. Seu legado, as lições de vida e sua contribuição institucional irão nos acompanhar.           

2. O DPHIL - Doctor of Philosophy e a filosofia analítica do Direito.

Assim como me perguntam sobre a nota distintiva entre Harvard e Stanford, as pessoas também possuem curiosidade sobre as características do ensino jurídico na Universidade de Oxford. Na área do direito em particular, a influência da filosofia analítica é enorme, merecendo destaque a importância que tem na Faculdade de Direito de Oxford o estudo de jurisprudence ou juris – como os tutores e professores não raro chamam pelo apelido abreviado de quem tem intimidade com o tema. A figura marcante para o posicionamento da disciplina em Oxford foi o notável jurista Herbert Hart,4 que estabeleceu os principais debates da filosofia analítica do direito a partir da produção da sua obra-prima sobre o conceito do direito5  e das discussões fundacionais com professores expoentes do jusnaturalismo como Lon Fuller6 7 ou do interpretativismo como Ronald Dworkin.8 9 No período de meu doutorado entre 2012 e 2017, a influência do legado de Herbert Hart e sua filosofia analítica do direito continuava enorme na faculdade de Direito da Universidade de Oxford.

Mesmo na área de pesquisas interdisciplinares de caráter sócio-jurídico, a importância de Herbert Hart era enorme, especialmente devido à influência reconhecida do trabalho de Max Weber em sua obra, do seu posicionamento sobre o conceito do direito como um trabalho também de caráter sociológico e no desenvolvimento de teses com influência da ideia de intersubjetividade como seu conceito da ‘regra de reconhecimento’ (‘rule of recognition’) para caracterização do direito positivo em uma determinada comunidade.10 Nesse sentido, a teoria sócio-jurídica em Oxford possui uma inspiração clara na filosofia analítica, o que é evidenciado pelos debates de inspiração Hartiana formulados, por exemplo, nos trabalhos de sociologia do direito do Professor Denis Galligan11  e de antropologia do direito da Professora Fernanda Pirie.12

Além disso, a influência da filosofia analítica está presente no ensino jurídico em geral, especialmente pela exigência de clareza conceitual. Nos debates em Oxford, é comum que se faça a pergunta ‘what do you mean by that?’, isto é, ‘o que você quer dizer com isso?’, de um modo em que se exige enorme rigor intelectual na seleção dos termos do debate, no desenvolvimento dos conceitos e na explicação do raciocínio lógico adotado. É importante lembrar que a formação acadêmica básica dos estudantes em Oxford se desenvolve no interior de dezenas Colleges, sendo que cada estudante possui sessões semanais de estudo com seus tutores através de um método tradicional de ensino.

O ponto de partida para as sessões tutoriais é a leitura de uma grande quantidade de textos sobre um tema específico, sendo que cada aluno possui a obrigação de preparar um ensaio longo com base nos textos, propondo a discussão de um dos temas da leitura. Os ensaios são enviados para os tutores com antecedência e servem de matéria-prima para as sessões, sendo que a pergunta ‘what do you mean by that?’ é recorrente, cabendo às estudantes a apresentação de esclarecimentos, a defesa de seus argumentos e o desenvolvimento de habilidades e competências para se tornar um debatedor qualificado.

Apesar de os doutorandos não serem submetidos às sessões tutoriais, nós fomos treinados para nos tornar tutores, caso surgisse uma oportunidade. Como parte do meu aprendizado, tive a oportunidade de acompanhar em absoluto silêncio como observador sessões tutoriais de Jurisprudence ministradas pelo caríssimo amigo Andrea Dolcetti, então também doutorando em Oxford.13  A partir do segundo ano de doutorado, tive a oportunidade de me tornar responsável por uma série de cursos de ensino de alunos da Universidade de Stanford que cursavam o intercâmbio na Stanford House in Oxford, tendo lecionado ‘direito constitucional comparado’, ‘direito e desenvolvimento’ e ‘filosofia do direito’ como tutor. O tutor prepara um acompanhamento personalizado de seus alunos e, não por acaso, acabei escrevendo posteriormente cartas de recomendação para que meus ex-alunos fossem cursar seus cursos de direito (Juris Doctor) em Universidades como Yale e Stanford.

Uma outra experiência extremamente única foi me tornar um coordenador de um grupo de discussão (‘discussion group’). A tradição da importância desses grupos de discussão na Universidade de Oxford tem sua origem histórica nos famosos debates promovidos pela tradicionalíssima Oxford Union Society, a famosa sociedade de debates.14 Além dos grandes debates sobre temas mais amplos no âmbito da Universidade, na Faculdade de Direito existem grupos de discussão temáticos que são coordenados por alunos, sob a orientação de professores, e que tem a missão de recrutar palestrantes para apresentar trabalhos interessantes e inovadores sobre temas atuais.

Após realizar uma apresentação no Law and Public Affairs Discussion Group no meu primeiro ano de doutorado, fui convidado pelo seu então coordenador, o então doutorando Francisco Urbina, para ser um dos coordenadores do Grupo de Discussão. Ao longo de três anos, convidamos uma série de doutorandos e professores para discutir os mais variados temas, incluindo uma série de renomados acadêmicos brasileiros como os Professores Marcelo Neves, Flávio Luiz Yarshell, Mariana Prado, Eduardo Jordão e Cléber Francisco Alves, dentre outros. A estrutura dos grupos de discussão era inspirada novamente pela tradição da filosofia analítica do direito e nossa referência era o renomado Jurisprudence Discussion Group, grupo de debates formado em 1997 por Timothy Endicott, que posteriormente viria a se tornar o diretor da Faculdade de Direito de Oxford.15 As apresentações dos trabalhos originais são relativamente curtas, seguidas por longas discussões conceituais com a busca pela clareza conceitual, coerência teórica, integridade argumentativa e rigor analítico. Ao longo dos meus quatro anos como doutorando, tive a oportunidade de acompanhar inúmeros debates de altíssimo nível.

Também tive a oportunidade de aprender muito sobre a filosofia analítica em sala de aula nos cursos que acompanhei durante o período de doutorado. Ao contrário dos artigos sobre minha experiência em Harvard e Stanford, limitações de espaço me impedem de transmitir ao leitor uma visão enciclopédica e detalhada de todos os cursos de que participei em Oxford. Porém, a Faculdade de Direito de Oxford possui um currículo com enorme variedade de cursos e professores de Jurisprudence e tem orgulho em se apresentar como a primeiro do ranking dos países de língua inglesa nessa disciplina.16 Apesar do recente artigo crítico de Brian Leiter no sentido de que a era de domínio de Oxford em Jurisprudence teria se encerrado em 2021 com a aposentadoria de Leslie Green, a alteração da agenda de pesquisa de Timothy Endicott para direito administrativo e a prematura morte de John Gardner,17 a influência da filosofia analítica do direito está na tradição, no currículo, na cultura e na estrutura da Faculdade de Direito de Oxford.

Seu impacto é tão forte que influencia também os professores de direito positivo e de outras disciplinas. Por exemplo, o Professor Stefan Vogenauer, atualmente Diretor do Instituto Max Planck de Frankfurt, foi meu Professor de Direito Comparado em Oxford e iniciava seu curso com a discussão Hartiana sobre a proibição de veículos no parque, a partir da perspectiva comparativa. No caso da disciplina de responsabilidade civil, a influência Hartiana também era muito forte devido às incursões no tema, notadamente no magistral livro sobre causalidade escrito em co-autoria com Toni Honoré.18 A influência da filosofia da linguagem, a exigência por clareza conceitual e uma busca pelo conhecimento típico do senso comum da experiência prática do direito na sociedade contemporânea são marcas registradas do ensino jurídico de Oxford e de seus professores analíticos.                            

3. Considerações finais: um convite à análise e à lembrança.

A experiência acadêmica no curso DPHIL - Doctor of Philosophy na University of Oxford também contribuiu para a minha formação acadêmica, pela exigência de contínua reflexão sobre o uso da linguagem e a pretensão da escrita clara, simples e em linha reta. Ao contrário de escolas de pensamento herméticas, obscuras e sintéticas, a Faculdade de Direito de Oxford convida à análise em busca de descrições precisas, explicações esclarecedoras e análises significativas. Essas lições contribuíram muito para meu posicionamento na academia internacional a partir de redes de pesquisa na SLSA - Socio-Legal Studies Association, na LSA - Law and Society Association e no RCSL - Research Committe of Sociology of Law, bem como no início da produção de artigos em periódicos internacionais.

Um doutorado costuma ser o ponto decisivo na formação acadêmica de um professor e a influência da filosofia analítica do direito também marcou a minha formação como acadêmico, debatedor e autor de livros e artigos. Se alguma vez eu vier a pergunta-lo ‘what do you mean by that?' em algum debate acadêmico, tenha certeza que não é nada pessoal, mas resultado dessa experiência com o paradigma pedagógico de ensino jurídico de Oxford e seus professores analíticos.

Finalmente, não posso concluir esse texto sem fazer uma referência especial ao meu pai, que mesmo autodidata, foi a primeira pessoa a me apresentar à filosofia analítica de Oxford a partir da leitura de um de seus autores favoritos, Isaiah Berlin, que integrava o círculo de amigos do próprio Herbert Hart. Agradeço também a ele por sempre exigir clareza conceitual e que eu não me refugiasse na ambiguidade ou na obscuridade. Para mim, além de pai e mesmo sem ter cursado formalmente um mestrado ou um doutorado, foi um grande mestre e faz enorme falta. Mas quero acreditar nas palavras que um professor grego me escreveu por ocasião da morte do Zeca: as pessoas vivem enquanto nós mantemos acesas as lembranças delas...

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

LACEY, Nicola. A life of HLA Hart: the nightmare and the noble dream. OUP, Oxford, 2004.

5 HART, Herbert. The concept of law. oxford university press, 2012.

6 FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to law--A reply to Professor Hart. Harv. L. Rev., v. 71, p. 630, 1957.

7 CANE, Peter (Ed.). The Hart-Fuller debate in the twenty-first century. Bloomsbury Publishing, 2010.

8 DWORKIN, Ronald. Hard cases. Harv. L. Rev., v. 88, p. 1057, 1974.

9 RONALD, Dworkin. Taking rights seriously. Harvard University Press, 1977.

10 HART, Herbert. The concept of law. OUP, Oxford, 2012.

11 GALLIGAN, Denis. Law in modern society. OUP, Oxford, 2006.

12 PIRIE, Fernanda. The anthropology of law. OUP, Oxford, 2013.

13 Disponível aqui.

14 Disponível aqui.

15 Disponível aqui.

16 Disponível aqui.

17 Disponível aqui.

18 HART, Herbert Lionel Adolphus; HONORÉ, Tony. Causation in the Law. OUP, Oxford, 1985.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.